De esposa fiel à meretriz (parte 2)



[Revisado em 2 de fevereiro de 2021]

Por suas características, não há dúvida de que a meretriz de Apocalipse 17 simboliza a deplorável condição da igreja cristã.

Como Israel no passado, ela exaltou a si mesma, repudiou a pura verdade do evangelho de Cristo e quebrou Sua aliança, unindo-se ao mundo e devotando a ele sua fidelidade e amor.

Por isso, a igreja se fez uma "grande meretriz que se acha sentada sobre muitas águas, com quem se prostituíram os reis da terra; e, com o vinho de sua devassidão, foi que se embebedaram os que habitam na terra" (Apocalipse 17:1-2).

São suas relações impróprias com o mundo que sacrificam o amor a Deus e à verdade e determinam sua progressiva queda moral e iminente ruína, exatamente como antecipada na mensagem do segundo anjo (Apocalipse 14:8).

Predita a apostasia religiosa


Antes de cair de sua privilegiada condição, a igreja possuía aquela pureza original que caracterizou os primeiros crentes e que é apropriadamente simbolizada pela mulher virtuosa de Apocalipse 12.

Foi pelo abandono da verdade que a igreja institucional se tornou uma meretriz, repetindo o fracasso do antigo Israel, quando este se apartou do Deus verdadeiro e de Sua Palavra.

Paulo advertiu os cristãos tessalonicenses sobre a manifestação dessa apostasia antes da vinda do Senhor Jesus (II Tessalonicenses 2:3-4):

Ninguém, de nenhum modo, vos engane, porque isto não acontecerá sem que primeiro venha a apostasia e seja revelado o homem da iniquidade, o filho da perdição, o qual se opõe e se levanta contra tudo que se chama Deus ou é objeto de culto, a ponto de assentar-se no santuário de Deus, ostentando-se como se fosse o próprio Deus.

Note que a apostasia surgiria dentro do "santuário de Deus", expressão que Paulo aplica à igreja cristã, e não ao templo de Jerusalém, como supõem alguns (ver Atos 20:29-31, I Coríntios 3:16-17; 6:19; II Coríntios 6:16-18; Efésios 2:19-21).

O aparecimento do "homem da iniquidade" marcaria o clímax dessa apostasia (II Tessalonicenses 2:9), mas o "mistério da iniquidade" já estava em operação nos dias de Paulo (verso 7) e deveria desenvolver-se antes do bem-aventurado aparecimento de nosso Senhor.

A origem da profecia de Paulo


É de grande significação que a advertência de Paulo tenha sido estruturada com base no discurso profético de Jesus em Mateus 24 (e nos Evangelhos paralelos), e que tanto o próprio Salvador como Seu servo coloquem em perspectiva o Dia do Senhor à luz das profecias de Daniel!

Paulo usou o mesmo método de Cristo ao aplicar certos aspectos das profecias de Daniel à sua própria geração e aos eventos ainda distantes no futuro, demonstrando que o Dia do Senhor não era então algo iminente, mas que muitos séculos transcorreriam até que o homem da iniquidade se revelasse plenamente e o Senhor Jesus o destruísse "com o sopro de sua boca" e "pela manifestação de sua vinda" (II Tessalonicenses 2:8).

É digno de nota que o esboço profético de Jesus em Mateus 24 é, ao lado do sermão da montanha, Seu discurso mais importante, mas com a singular diferença de que foi dirigido somente aos discípulos, os futuros líderes da igreja!

Nesse sermão profético memorável, Cristo trata de questões que dizem respeito principalmente à igreja.

Ao advertir de que muitos "hão de se escandalizar" (no grego, skandalizó, tropeçar ou ofender-se) e que "levantar-se-ão muitos falsos profetas e enganarão a muitos" (versos 10-11), Cristo não Se refere apenas ao mundo em geral, mas também, e sobretudo, aos Seus professos seguidores, muitos dos quais tropeçariam na fé e se tornariam, eles mesmos, pedras de tropeço na igreja.

Se a predição de nosso Senhor em Mateus 24:12 - "E, por se multiplicar a iniquidade, o amor se esfriará de quase todos"- se aplicasse somente ao mundo, pareceria previsível demais, visto "que o mundo inteiro jaz no Maligno" (I João 5:19).

Mas Cristo está se referindo à Sua igreja, a última comunidade em que alguém esperaria que o amor esfriasse de quase todos (ver Apocalipse 2:2-5)!

É compreensível, portanto, que João tenha se admirado "com grande espanto" ao contemplar em visão o grau de corrupção da igreja (verso 6)!

Afinal, quem poderia imaginar a igreja de Cristo na condição de uma meretriz idólatra e sedenta de sangue?

Similaridades entre as profecias de Cristo e de Paulo


Da mesma forma que Cristo (Mateus 24:4), Paulo inicia sua exortação aos cristãos com esta advertência: "Ninguém, de nenhum modo, vos engane" (II Tessalonicenses 2:3).

Cristo se refere à apostasia vindoura como "o abominável da desolação situado onde não deve estar" (Mateus 24:15; Marcos 13:14), uma referência explícita a Daniel 8:9-13, 9:27, 11:31 e 12:11!

Paulo localiza a mesma apostasia "onde não deve estar", isto é, no santuário de Deus, ao descrever "o homem da iniquidade, o filho da perdição, o qual se opõe e se levanta contra tudo que se chama Deus ou é objeto de culto, a ponto de assentar-se no santuário de Deus, ostentando-se como se fosse o próprio Deus".

A percepção de Cristo e de Paulo sobre o lugar onde começa a apostasia está direta e intencionalmente embasada nas profecias apocalípticas de Daniel, em particular nas que se referem à visão "do sacrifício diário e da transgressão assoladora" (Daniel 8:13).

A maneira como nosso Salvador e Paulo tomam o esboço profético de Daniel para formar seu próprio panorama do futuro demonstra quão essenciais são estas profecias para se estabelecer historicamente o cenário envolvendo a igreja cristã.

Embora Cristo identifique inicialmente o "abominável da desolação" com a destruição de Jerusalém pelos exércitos romanos no ano 70 da era cristã (ver Mateus 24:16-20; Lucas 21:20)), a expressão que Ele usou em referência a Daniel vai além desse evento e do próprio período de Roma imperial.

A palavra hebraica para "abominação", shiqquts, é frequentemente usada nas Escrituras para se referir à idolatria, uma forma grave de rebelião contra Deus (Deuteronômio 29:16-18; II Reis 23:24; Jeremias 4:1; 7:30).

Esse tipo de abominação é evidente em Daniel 8:9-13: A fase religiosa do chifre pequeno - o "abominável da desolação" [1] - de algum modo tira do Príncipe do exército o "contínuo" (a palavra "sacrifício" não se encontra no original) e o substitui por seu próprio sistema de culto (ver Daniel 11:31).

No antigo santuário, o "contínuo" designava o serviço regular ou diário dos sacerdotes no átrio e no lugar santo do tabernáculo, "os quais ministram em figura e sombra das coisas celestes" (Hebreus 8:5; 9:24).

A ambição do homem do pecado


A ambição do poder representado pelo chifre pequeno é muito maior do que a ambição meramente mundana; o chifre pequeno pretende usurpar o contínuo ministério de intercessão do Príncipe do exército no "lugar do seu santuário".

Em outras palavras, esse poder cuida em tomar para si o papel de Jesus Cristo como nosso Sumo Sacerdote no santuário celestial!

Para realizar sua pretensão blasfema, esse poder deve "assentar-se no santuário de Deus, ostentando-se como se fosse o próprio Deus".

Como evidentemente não pode fazê-lo no santuário do Céu, ele o fará no santuário de Deus na Terra. De que forma? Tornando-se a cabeça da igreja no lugar de Cristo (ver Colossenses 1:18).

Não surpreende que a abominação ou idolatria seja chamada desoladora! Ela procura destruir tanto a verdade do santuário celestial como os seus fiéis adoradores.

O chifre pequeno "proferirá palavras contra o Altíssimo, magoará os santos do Altíssimo e cuidará em mudar os tempos e a lei; e os santos lhe serão entregues nas mãos, por um tempo, dois tempos e metade de um tempo" (Daniel 7:25).

Em seu esboço profético, nosso Senhor se refere ao mesmo desenvolvimento histórico ao advertir que, depois da destruição de Jerusalém pelos exércitos romanos e antes da vinda do Filho do Homem, a igreja seria oprimida e perseguida pelo mesmo poder mencionado em Daniel 7:21-26.

De modo que as palavras de Cristo: "porque nesse tempo haverá grande tribulação, como desde o princípio do mundo até agora não tem havido e nem haverá jamais" (Mateus 24:21), vão muito além do cerco romano à cidade dos judeus. Trata-se da mesma tribulação predita em Daniel 7:25 e 12:7 e que envolve a igreja na era cristã.

"Não tivessem aqueles dias sido abreviados", disse Jesus, "ninguém seria salvo; mas, por causa dos escolhidos, tais dias serão abreviados" (Mateus 24:22).

Portanto, a aplicação inicial que Cristo faz da "abominação desoladora", ou seja, no dramático cerco romano a Jerusalém, não é senão um tipo ou prefiguração de uma abominação ainda maior que teria lugar dentro da igreja cristã e que é explicada por Paulo como devendo ocorrer antes do retorno de nosso Senhor.

A natureza da apostasia


Uma vez estabelecidos o tempo e lugar dessa apostasia, passaremos agora a considerar sua natureza.

Assim como nosso amado Salvador, Paulo reconhece nas profecias apocalípticas de Daniel a principal referência para descrever a apostasia então vindoura.

Por isso, há um notável paralelismo entre o ensino apocalíptico de Paulo e o sermão profético de Jesus.

À luz da descrição de Cristo, Paulo se refere até mesmo à fase escatológica (referente aos últimos dias) da apostasia, mencionando o fato de que sua plena manifestação será acompanhada de sinais e prodígios de caráter sobrenatural (comparar Mateus 24:24 com II Tessalonicenses 2:9).

Assim, para Paulo, o "homem da iniquidade" que se assenta no santuário de Deus corresponde à "abominação desoladora" no lugar santo da profecia de Cristo, de maneira que ambos são um e mesmo fenômeno.

Essa apostasia é, então, algo bem definido, uma revolta ou rebelião contra Deus e Sua lei que, a princípio, permanece velada, porém, à medida que amadurece, manifesta o homem da anomia, isto é, o homem da ilegalidade ou do desprezo absoluto pela lei do Senhor e, portanto, a entidade que "cuidará em mudar os tempos e a lei" (Daniel 7:25).

Ele é chamado também de "o filho da perdição", uma expressão que Cristo aplicou a Judas (João 17:12), um discípulo tão próximo do Mestre quanto os demais, mas que O traiu ao permitir que Satanás entrasse em seu coração (João 13:2, 27; Mateus 26:47-50).

O homem do pecado "se opõe e se levanta contra tudo que se chama Deus ou é objeto de culto" (II Tessalonicenses 2:4), exatamente como o "rei" na profecia de Daniel, que "fará segundo a sua vontade, e se levantará, e se engrandecerá sobre todo o deus" (Daniel 11:36).

Ele exalta a si mesmo "a ponto de assentar-se no santuário de Deus, ostentando-se como se fosse o próprio Deus", um pormenor importante que requer nossa atenção.

Pretensão arrogante e blasfema


A menção de Paulo ao fato de o "homem da iniquidade" assentar-se no templo de Deus parece relacionar-se de algum modo com a visão de Daniel sobre Deus em Seu santuário: "Continuei olhando, até que foram postos uns tronos, e o Ancião de Dias se assentou" (Daniel 7:9).

Ao assentar-se em Seu trono, o Ancião de Dias abre a sessão do tribunal divino que julga as pretensões blasfemas do "chifre pequeno" (Daniel 7:10, 21-22, 25-27).

Deus, porém, julga somente na pessoa do Filho do Homem (Daniel 7:13), pois "o Pai a ninguém julga, mas ao Filho confiou todo o julgamento", "e lhe deu autoridade para julgar, porque é o Filho do Homem" (João 5:22 e 27)!

Assim, quando Paulo descreve o homem do pecado assentado no santuário de Deus, "ostentando-se como se fosse o próprio Deus", ele se refere à tentativa deliberada desse poder de usurpar para si as prerrogativas de Cristo como Sumo Sacerdote e Juiz no santuário celestial.

Essa é a pretensão do chifre pequeno, que "engrandeceu-se até ao príncipe do exército; dele tirou o sacrifício diário e o lugar do seu santuário foi deitado abaixo" (Daniel 8:11).

É importante frisar que um ataque dessa natureza ao santuário de Deus na terra (que Paulo aplica ao corpo de crentes) representa um ataque ao santuário celestial, pois ambos estão intimamente ligados em virtude da obra sacerdotal de Cristo na sede de operações no Céu.

Tal é a magnitude da pretensão blasfema do anticristo, que revelar-se-ia dentro da igreja de Deus por causa da apostasia, reivindicaria para si atributos exclusivamente divinos, e cuidaria "em mudar os tempos e a lei" (Daniel 7:25).

A natureza essencial do anticristo manifesta-se, então, em um duplo ataque a Deus: ele muda os "tempos e a lei" (Daniel 7:25) e substitui a adoração verdadeira no templo de Deus pelo seu próprio sistema idolátrico de culto, ao usurpar o sacerdócio de Cristo (Daniel 8:11-13, 25). Trata-se de um ataque simultâneo à lei e ao evangelho.

À luz dessas informações, resta-nos agora estabelecer a relação dessa apostasia com a "grande meretriz" de Apocalipse 17 e encontrar nela as mesmas características do homem do pecado.

Notas e referências


1. Para uma exposição mais detalhada sobre o "chifre pequeno" em Daniel 7 e 8, clique aqui e aqui.



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