Quando os 'cães' não ladram


"Atendei, ó estúpidos dentre o povo;  e vós, insensatos, quando sereis prudentes?" (Salmos 94:8)

Enquanto a sombra da guerra paira sobre o mundo e o cerco à liberdade de expressão aumenta em nosso país, sinto-me no dever de retornar a um problema que, nas palavras de Robert Musil, as pessoas geralmente preferem não falar, não discutir, em virtude do domínio violento e vergonhoso que exerce sobre nós.

Refiro-me à estupidez, esse mal sempre presente, cuja existência, por si só, oferece uma justificativa unificadora para a preservação do status quo naquela que deveria ser a comunidade mais sábia e esclarecida: a igreja.

Musil observou que se a estupidez não fosse tão parecida, a ponto de confundir-se, com o progresso, o talento, a esperança ou a melhora, ninguém desejaria ser estúpido.

Ocorre que a estupidez se atreve a realizações a que não tem direito, é ativa em todas as direções e pode vestir-se com todas as roupas da verdade. A verdade, por outro lado, tem para todas as ocasiões apenas um vestido e um caminho, e está sempre em desvantagem.

Ao contrário da estupidez sincera ou simples, que seria totalmente graciosa se não fosse, por vezes, também crédula, confusa e com tamanha dificuldade de aprendizado a ponto de levar ao desespero, a estupidez ambiciosa ou superior não é tanto uma falta de inteligência, porém muito mais uma falha, porque tem pretensão de desempenhar o que não lhe compete. Aqui se vê o elemento de atrevimento, de arrogância espiritual.

Consequentemente, essa forma de estupidez tem muito mais o espírito e a afetividade como adversários do que o intelecto.

A estupidez superior ou inteligente é, de acordo com Eric Voegelin, um distúrbio no equilíbrio do espírito, uma condição em que o espírito se torna o adversário, não a mente. Não é um defeito da mente como nas pessoas simples, mas um defeito do espírito, uma doença da razão e, portanto, a mais letal, perigosa para a própria vida.

Dietrich Bonhoeffer argumenta, da mesma forma, que a estupidez não é essencialmente um defeito intelectual, mas algo que atinge a humanidade do sujeito, sendo mais perigosa que a maldade; o estúpido, ao contrário da pessoa má, sente-se completamente satisfeito consigo mesmo e, por isso, nunca se há de convencer o estúpido pela razão – é inútil e perigoso (ver Provérbios 12:1).

Daí o motivo por que Carlo Cipolla definiu sua quinta lei da estupidez humana nestes termos:

"Uma pessoa estúpida é o tipo mais perigoso de pessoa."

Certamente. E muito mais numa comunidade de crentes cristãos, pois se um pastor for estúpido, pode-se imaginar a extensão dos males que há de provocar em virtude do alcance das consequências funcionais de sua estupidez, determinado pela posição de influência que ocupa e na qual não poderia estar.

A consequência de colocar a própria vontade, a libido, no centro do universo – um fechamento deliberado de si mesmo para o divino – é a perda da realidade pela desumanização, em que os outros são vistos meramente como instrumentos para o autoengrandecimento.

Voegelin assinala que as manifestações típicas dessa perda de realidade são aquelas em que a realidade do homem substitui a realidade divina perdida, que sozinha fundamenta a realidade humana.

O senso da realidade, da relação do homem com Deus, uma vez removido, leva a ideias que buscam transformar a realidade segundo perspectivas puramente humanas. Em vez de se adequar à ordem divina, a visão de mundo deslocada da realidade busca impor a vontade humana sobre todas as coisas.

A esse fenômeno de perda da realidade, do desejo de uma existência autoafirmativa que não é ordenada nem pela razão nem pelo espírito, chamamos de estupidez.

Semelhante aos idólatras referidos em Jeremias 10:8, um líder que sofreu a perda da realidade e vive naquilo que imagina, sempre estará justificado de dizer coisas estúpidas acerca de questões religiosas, pois se ele imagina coisas que são suficientemente estúpidas, sentir-se-á justificado por tudo o que segue como resultado de sua estupidez.

Ora, somente pessoas alheias a esse fenômeno ou que ignoram o número de indivíduos estúpidos em atividade dentro da igreja deixarão de notar que muitos de nossos líderes mais prestigiados e influentes transformaram o adventismo numa visão de mundo, em lugar de se contentarem com a "fé que uma vez por todas foi entregue aos santos" (Judas 3, última parte).

A visão de mundo se refere à realidade concebida pela liderança; uma imagem defeituosa da realidade na qual eles baseiam suas ações e que, como convém a indivíduos estúpidos, opera em perfeito uníssono com a visão de mundo de outras confissões religiosas, de modo que a estupidez de cada um reforça e amplifica a efetividade da estupidez de todos os outros, como se fossem guiados por uma mão invisível.

Sem nenhuma surpresa, a recente explicação de um desses pastores em defesa da "nova forma" de ser igreja é um caso representativo dentro de nossa discussão e dispensa qualquer outro exemplo. O leitor pode conferi-la aqui.

Por ser a quintessência dessa estupidez estreitamente entrelaçada com outras coisas sem que em qualquer lugar sobressaia o fio que desmancha o tecido de uma só vez, este lobo vestido em pele de cordeiro, juntamente com os membros de sua alcateia, tem causado mais danos à igreja do que todos os seus inimigos externos combinados, porque, numa posição da igreja em que não poderia estar, dá ordens e tenta instruir outros.

Nesse ponto, devo explicar em poucas palavras a origem de sua visão de mundo, não para adverti-lo de sua estupidez ou despertar a consciência de seus bajuladores, pois isso seria um exercício de otimismo inútil (ver Jó 11:12).

Minha preocupação é para com as almas sinceras que ainda não sucumbiram à estupidez elevada, muitas das quais ignoram o perigo a que estão expostas quando confiam sua salvação a indivíduos estúpidos.

Pessoas estúpidas em papéis de liderança: o que poderia dar errado?

A visão de mundo incorporada em nosso meio foi extraída diretamente das páginas daquele manual para tolos conhecido como Uma Igreja com Propósitos, de Rick Warren, líder e pioneiro do movimento de crescimento de igrejas, cujas regras para o crescimento são regidas pela contemporização e permissividade pragmática para a obtenção de resultados.

Sua metodologia não nasceu de um estudo criterioso das Escrituras, mas de uma visão pessoal de como o cristianismo deveria ser.

Por esse motivo, em busca de traduções que apoiem os conceitos presentes em sua filosofia, cerca de dois em cada três versos citados por Warren em seu livro provêm de versões modernas da Bíblia, incluindo a The Message (na verdade, uma paráfrase, que altera tanto as palavras como o sentido das Escrituras), e frequentemente ele recorre a traduções diferentes de versos já citados.

A intenção é clara. Já que a espiritualidade de mercado, que se adequa às conveniências do consumidor, demanda a supressão dos aspectos "negativos" do processo espiritual, Warren parece empenhado em minimizar as verdades cortantes da Palavra de Deus, ao mesmo tempo em que procura inflar suas promessas. O resultado é uma meia verdade enganosa, que estimula nossa compreensão centrada no conforto e na conveniência.

A diversidade espiritual desejada requer, de fato, Bíblias simplificadas, parafraseadas, reinterpretadas e embelezadas para atrair a mente carnal, que ama os caminhos do mundo e não está sujeita à lei de Deus (Romanos 8:6-7).

Assim sendo, quando aquele lobo devorador de almas se refere ao "ministério" motociclístico como um ministério de apoio à igreja, ele convenientemente deixa de mencionar aos seus seguidores que a ideia, na melhor das hipóteses, se alinha, e, na pior, foi inspirada no modelo de discipulado orientado para resultados de Rick Warren, Bill Hybels, John Maxwell, Bob Buford e Peter Drucker, este último o pai da administração moderna, que acreditava que o pastor, como um gerente, deve identificar as habilidades e paixões de seus membros e direcioná-las para a missão.

O que esse guru da administração comunitária ensinou às empresas sobre como definir seus negócios de acordo com a perspectiva do cliente passou a ser aplicado às igrejas. E, nestes tempos de fácil credulidade e analfabetismo bíblico, o fenômeno se espalhou como fogo em palha.

Obviamente, esse modelo de discipulado depende mais da engenhosidade humana do que da guia do Espírito Santo; está em uma sintonia muito maior com a espiritualidade comoditizada de nossa época do que com os reclamos da Palavra de Deus; e seu propósito é determinado mais pela vontade coletiva dos membros do que por um "assim diz o Senhor".

De fato, uma igreja que o mundo possa amar e reconhecer como sua se vê obrigada a ceder às muitas variáveis do "mercado" para ter sucesso. Precisa reinventar-se e proporcionar segurança aos seus membros, de modo que se sintam bem consigo mesmos e sem o risco de qualquer "ofensa", como mensagens que despertam a convicção do pecado ou requerem a separação do mundo.

A religião orientada para resultados exige, portanto, a adoção de programas e métodos que atendam aos objetivos estabelecidos para o crescimento e se baseia na filosofia jesuíta de que os fins justificam os meios.

Os jesuítas dispensam prontamente a lei de Deus, se isso lhes convém. Estão habituados a alcançar seus objetivos por qualquer meio que julguem necessário. Como J. A. Wylie observou, todo estratagema, artifício e disfarce são lícitos para homens em cujo favor toda distinção entre o certo e o errado foi abolida e, por isso, "os fins justificam os meios" é sua regra áurea.

Na teologia com propósitos de Rick Warren e cia., o fim é o crescimento da igreja, ao qual os princípios das Escrituras são subordinados e, eventualmente, ignorados quando prejudicam esse crescimento; os meios são escolhidos tendo em vista os resultados e com base não em critérios bíblicos objetivos, mas nas "necessidades percebidas" dos buscadores. Estas são geralmente identificadas e compiladas após uma pesquisa na cidade ou no bairro e a igreja então se organiza e se modela conforme seu público-alvo.

A abordagem é típica dos sistemas gerenciais modernos, em que a coleta, a organização e o tratamento das informações são fundamentais em qualquer promoção de sucesso.

O foco nas necessidades sentidas, e não nas necessidades reais das pessoas na condição de pecadoras, implica mudanças que vão muito além das estratégias e métodos em si, afetando os elementos básicos da fé cristã: graça se torna resultados; fé, sentimento; igreja, equipe dirigida por uma visão; evangelismo, marketing; separação, envolvimento; adoração, autoexpressão, e assim por diante.

Como o membro da igreja orientada para resultados é instruído a formar uma ponte com o mundo sob o pretexto de alcançar os descrentes, ele precisa concentrar-se nas necessidades percebidas desse público, que, por definição, são moldadas pelos valores do mundo.

Trata-se de uma falsificação engenhosa do verdadeiro cristianismo, na medida em que substitui sutilmente as verdades essenciais das Escrituras por técnicas de marketing e da administração organizacional modernas. As primeiras atraem e procuram manter um grande número de pessoas na igreja, enquanto as últimas visam "discipular" os "convertidos" para que produzam transformações na comunidade.

Posto que o evangelho eterno está em conflito com os valores do mundo, é um contrassenso utilizar técnicas que, por sua natureza, refletem e incorporam esses valores!

O discipulado orientado para resultados é facilmente reconhecível:

  • Requer-se a assinatura de pactos ou compromissos em cada nível do discipulado (ver Mateus 5:33-37);
  • A unidade da igreja é sempre enfatizada em conexão com as estratégias e metodologias de crescimento. A avaliação crítica dos programas é considerada um sinal de dissidência;
  • O foco no discipulado é identificar os pontos fortes, as especializações ou até mesmo as ocupações recreativas dos membros, desenvolvê-las e direcioná-las para a missão;
  • Para isso, os membros são incentivados a preencher questionários de avaliação de perfil, para identificar seus "dons espirituais".

Na visão de Rick Warren, Deus usa as pessoas em suas áreas de especialidade e, portanto, é preciso identificá-las e então direcionar os membros para os "ministérios" apropriados.

Embora o propósito seja desenvolver habilidades no serviço a Deus, o discipulado orientado para resultados induz os membros da igreja a dependerem menos do poder de Deus e a confiarem mais em seus próprios recursos, um efeito tipicamente subliminar que confirma a máxima de Herbert Marshall McLuhan de que o meio é a mensagem.

Respostas inconvenientes a perguntas importantes

Uma vez que a função da igreja é o aperfeiçoamento e a edificação dos santos, "à medida da estatura da plenitude de Cristo" (Efésios 4:11-13), é razoável que seus membros se organizem e trabalhem segundo as necessidades percebidas dos incrédulos?

Visto que é o Espírito Santo quem distribui os dons, "visando a um fim proveitoso" (1 Coríntios 12:4-11), é aceitável meramente qualificar as pessoas com base em seus talentos ou pontos fortes, como se Deus pudesse ser glorificado em nossa força (ver 2 Coríntios 12:9)?

Se a resposta a essas questões for um "sim", se Deus mudou e agora Ele usa nossa força em lugar de nossa fraqueza, então o Espírito Santo é um mero coadjuvante, e nós, os protagonistas, porque sempre haverá a necessidade de profissionais e recursos técnicos para, entre outras coisas, avaliar nossas habilidades naturais, que têm pouca ou nenhuma relação com os dons espirituais que Cristo concede à igreja por intermédio de Seu Espírito.

Se, em vez de elevar a mente em direção ao padrão de Deus, rebaixamos o padrão para adequá-lo à mente, nossa religião não é mais espiritual, mas carnal.

Se a porta ou o caminho estreito for alargado, se o evangelho eterno for diluído em água para satisfazer as necessidades subjetivas dos descrentes, mesmo se o trabalho em campo for admirável e a mensagem, edificante em muitos aspectos, na prática não é mais o evangelho.

Uma igreja que baseia suas estratégias de crescimento nas necessidades pessoais, e não nos ensinamentos da Palavra de Deus, é como a "jumenta selvagem, acostumada ao deserto e que, no ardor do cio, sorve o vento. Quem a impediria de satisfazer ao seu desejo?" (Jeremias 2:24).

Uma igreja assim, construída sobre as necessidades que seus próprios membros identificam e que ignora as necessidades reais que somente o Espírito Santo pode trazer à nossa atenção, será espiritualmente vazia, ainda que numericamente cheia.

A esse respeito, Ellen G. White escreveu (por favor, note as palavras):

A aquisição de membros que não foram renovados no coração e reformados na vida é uma fonte de fraqueza para a igreja. Esse fato é muitas vezes passado por alto. Alguns pastores e igrejas acham-se tão desejosos de assegurar um aumento de membros, que não dão testemunho fiel contra hábitos e costumes não cristãos. Aos que aceitam a verdade não é ensinado que eles não podem, sem perigo, ser mundanos em sua conduta, ao passo que de nome são cristãos. Até então, eram súditos de Satanás; daí em diante, devem ser súditos de Cristo. A vida deve testificar da mudança de dirigente. A opinião pública favorece uma profissão de cristianismo. Pouca abnegação ou sacrifício é exigido de uma pessoa para se revestir da forma da piedade e ter o nome registrado na igreja. Daí muitos se unem à igreja sem primeiro se haverem unido a Cristo. Nisto Satanás triunfa. Tais conversos são seus instrumentos mais eficientes. Servem de laço para outras pessoas. São falsas luzes, atraindo os incautos à perdição. É em vão que os homens procuram tornar o caminho cristão amplo e aprazível para os mundanos. Deus não suavizou ou fez mais largo o caminho áspero e estreito. Se quisermos entrar na vida, cumpre-nos seguir o mesmo trilho palmilhado por Jesus e os discípulos – o trilho da humildade, da abnegação e do sacrifício.

Tito 2:11 a 14 destaca o profundo contraste entre as paixões mundanas, que nada mais elevado aspiram que os prazeres deste mundo, e a graça salvadora de Cristo, que elimina as práticas pecaminosas da vida e leva ao cultivo de hábitos novos e dignos.

O trabalho pela salvação das almas requer que essa distinção permaneça clara na mente dos homens e mulheres que consideram um bendito privilégio preparar pessoas para o reino de Deus. Eles entenderão que essa obra demanda humildade, abnegação e sacrifício, não autossuficiência, conveniência ou conforto.

Lembre-se de que os caminhos de Deus não são os nossos caminhos; de que há uma diferença marcante entre ouro, prata e pedras preciosas e madeira, feno e palha (1 Coríntios 3:11-13); e de que as armas da nossa luta não são carnais, mas poderosas em Deus para o cumprimento de Seus propósitos (2 Coríntios 10:4-5).

Os ganhos de fé exigem combustível real. Queira Deus que nosso próprio coração esteja santificado pela verdade, para então trabalharmos de maneira a assegurar os mesmos resultados aos convertidos.


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