Duas "mulheres" em conflito



Em virtude de sua inigualável estrutura literária e de sua unidade interna indissolúvel, nenhum capítulo do Apocalipse deve ser apreciado independentemente de seu contexto.

O livro se divide em seções que se ampliam e se esclarecem mutuamente, e suas partes e contrapartes revelam em traços muito fortes a natureza e o destino de cada um dos atores implicados no grande drama dos séculos.

Um exemplo é a seção do Apocalipse que trata do julgamento de Babilônia e que abrange os capítulos 17:1 a 19:10, e sua contraparte, a seção sobre a Nova Jerusalém, que começa em Apocalipse 21:9 e se estende até o 22:9, ambas apreciadas no artigo anterior.

Ao esclarecer a declaração do anjo das pragas em Apocalipse 17:1, estas seções também ampliam o significado da sétima praga (Apocalipse 16:17-21), o clímax dos juízos divinos contra Babilônia, que prepara o caminho para a posterior descida da cidade de Deus.

Além disso, a seção sobre Babilônia elabora mais plenamente o sentido da segunda mensagem angélica (Apocalipse 14:8), em cuja proclamação é mencionada pela primeira vez a "grande cidade", porém sem oferecer-nos qualquer explicação a seu respeito.

Vemos, portanto, a importância de se considerar o aspecto contextual e estrutural do Apocalipse ao nos aplicarmos à tarefa estimulante de interpretar suas profecias.

Contudo, ao fazê-lo, devemos considerar ainda o ponto de vista teológico de sua mensagem, visto que o Apocalipse emprega expressões e temas típicos do Antigo Testamento.

Cada termo e imagem empregado no último livro da Bíblia para descrever o significado teológico da igreja de Cristo possui uma evidente conexão com as promessas e condenações pronunciadas sob a antiga aliança.

As palavras "Babilônia" e "grande meretriz" são exemplos notórios nesse sentido.

Seu uso no Apocalipse indica uma clara relação com a história do antigo Israel, considerada um protótipo ou modelo que lança preciosa luz tanto sobre a sublime vocação da igreja cristã, como sobre seu fracasso em ser fiel a Deus.

Essa correspondência temática e literária com o Antigo Testamento mostra, então, uma relação baseada em tipo e antítipo, entre a história do antigo Israel e a história da igreja, e é essencial para a correta interpretação de Apocalipse 17.

Esses são os princípios fundamentais que devem nos guiar na busca pelo significado bíblico da "grande meretriz" e dos demais elementos da profecia, ou seja, a necessidade de considerar o enfoque contextual e estrutural do Apocalipse e a perspectiva teológica de sua mensagem à luz do evangelho eterno.

Visões contrastantes


Há algo sobre a mulher de Apocalipse 17 que imediatamente chama a atenção.

Suas características, que são próprias da mais extravagante das meretrizes, diferem grandemente da elevada pureza, divina justiça e fundamento profético que caracterizam a mulher pura de Apocalipse 12.




Necessitamos nos concentrar um pouco na impressionante visão de Apocalipse 12 e em seus antecedentes no Antigo Testamento para melhor compreender o significado profético destas mulheres tão antagônicas.

O conflito dos séculos revelado


As descrições simbólicas de Apocalipse 12 incluem um grande dragão vermelho como a representação do mal, que "se deteve em frente da mulher que estava para dar à luz, a fim de lhe devorar o filho quando nascesse" (verso 4).

A profecia identifica o dragão como "a antiga serpente, que se chama diabo e Satanás, o sedutor de todo o mundo" (verso 9). Esta descrição nos remete imediatamente ao relato de Gênesis 3, à ocasião em que Eva foi enganada pela serpente no Éden.

Com efeito, a visão de João em Apocalipse 12 é um desenvolvimento histórico da figadal inimizade de Satanás contra Cristo e Seu povo, conforme antecipada na primeira promessa de Deus:

Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e o seu descendente. Este te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar. (Gênesis 3:15)

Nesse pronunciamento divino está sintetizado o grande conflito cósmico entre Cristo e Satanás, tema de que se ocupa João em Apocalipse 12!

Essa batalha começou no Céu (Apocalipse 12:7-9), foi motivada pelo orgulho e autossuficiência de Lúcifer (Isaías 14:12-14; Ezequiel 28:12-17) e tem prosseguido na Terra, onde o anjo rebelde foi derrotado pela segunda vez mediante o sangue de Jesus (João 12:31-33; Hebreus 2:14)! No fim do milênio, Satanás e o mal serão erradicados (Apocalipse 20:10)!

A unidade entre o Messias e o Israel de Deus


Partindo da figura de Eva em Gênesis 3:15, a descrição de João se desenvolve para simbolizar não uma mulher literal, mas o povo da aliança de Deus.

Apocalipse 12:2 descreve, aliás, a condição singular desta mulher simbólica recorrendo às palavras do profeta Isaías a respeito de Israel. Note na comparação abaixo:




A visão de João, portanto, não tem em vista Maria, a mãe do nosso Salvador, como muitos cristãos sinceros creem, mas o povo da aliança de Deus, simbolizado pela figura de uma mulher.

Ao se concentrar, porém, no "filho varão" que nasceu da mulher, isto é, o Messias de Israel, o descendente da linhagem do povo escolhido (Ver Mateus 1:1; Apocalipse 5:5-6, 9-10), o profeta de Deus enfatiza o povo da nova aliança, a igreja de Cristo, o verdadeiro Israel de Deus (Gálatas 3:26-29)!

Note que a promessa messiânica de Gênesis 3:15 não menciona os "descendentes" da mulher, porém o seu "descendente", e este não é outro, a não ser Jesus Cristo!

Referindo-se ao concerto de Deus com Abraão, o apóstolo Paulo expressamente diz:

Ora, as promessas foram feitas a Abraão e ao seu descendente. Não diz: E aos seus descendentes, como se falando de muitos, porém como de um só: E ao teu descendente, que é Cristo. (Gálatas 3:16)

A visão de João reafirma essa grandiosa verdade ao destacar quatro grandes fatos acerca do "filho varão" em Apocalipse 12:2 e 5: Sua encarnação e Seu nascimento (I Timóteo 3:16), Sua ascensão (I Pedro 3:22) e Sua segunda vinda como Rei dos reis e Senhor dos senhores (Apocalipse 19:11-16)!

Esse último fato é particularmente significativo. A expressão "que há de reger todas as nações com cetro de ferro" empregada por João em Apocalipse 19 é uma referência direta ao Salmo 2:8-9, uma promessa de natureza messiânica!

A soberania suprema de Cristo é a mensagem fundamental da fé apostólica. Em Apocalipse 12:5, João usa as mesmas palavras do salmista para transmitir-nos a certeza do futuro cumprimento da promessa messiânica conforme antecipado em Apocalipse 19:15!

O triunfo de Cristo


Em Apocalipse 12, João retoma o tema do grande conflito iniciado em Gênesis a partir da encarnação e nascimento de nosso Redentor.

Nesse tempo, Satanás arregimentou suas forças para "devorar" o Filho da mulher quando nascesse. E quão dramática não foi a história do nascimento de Jesus (ver Mateus 2)?

Todavia, a despeito dos esforços de Satanás para matar o Cristo encarnado, o inimigo da verdade não logrou nenhum êxito.

O Filho de Deus venceu! Ele desbaratou os poderes das trevas e "foi arrebatado para Deus até ao seu trono" (Apocalipse 12:5), "assentando-se à direita da Majestade, nas alturas" (Hebreus 1:3), "como ministro do santuário e do verdadeiro tabernáculo que o Senhor erigiu, não o homem" (Hebreus 8:2)!

Jesus Cristo é o Rei da justiça. Ele prevaleceu sobre a morte e subiu ao Céu para nossa justificação e santificação!

Por isso, "quem intentará acusação contra os eleitos de Deus? É Deus quem os justifica. Quem os condenará? É Cristo Jesus quem morreu ou, antes, quem ressuscitou, o qual está à direita de Deus e também intercede por nós" (Romanos 8:33-34)!

Quão grande é, com efeito, a esperança do crente! A aclamação da vitória celestial contra Satanás (Apocalipse 12:10-11) revela que, mediante o precioso sangue de Cristo e Sua infalível palavra, os crentes fiéis podem vencer como Ele venceu!

O alvo seguinte do dragão


Ao passo que o "filho varão" foi arrebatado para Deus até ao seu trono", a mulher "fugiu para o deserto, onde lhe havia Deus preparado lugar para que nele a sustentem durante mil duzentos e sessenta dias" (Apocalipse 12:6), um período acerca do qual voltaremos a tratar oportunamente.

Note que é o "filho varão" quem foi arrebatado para o Céu, tornando-Se o único "Mediador entre Deus e os homens, Cristo Jesus, homem" (I Timóteo 2:5), e não a mulher, que passou a ser o alvo de todo o ódio e crueldade do dragão (Apocalipse 12:13).

Esta é uma evidência adicional de que a mulher da profecia não pode simbolizar Maria, mas a igreja de Cristo, incluindo o seu remanescente final, "os que guardam os mandamentos de Deus e têm o testemunho de Jesus" (Apocalipse 12:17).

Ao se ocupar também da dimensão mais profunda desse dramático conflito (Apocalipse 12:7-9), a visão de João ressalta que a origem das hostilidades contra o povo de Deus não provém meramente dos caprichos de homens ímpios, mas como instigados pelo ódio visceral de Satanás contra Cristo e Sua igreja.

Duas mulheres, duas igrejas diferentes


Assim, Apocalipse 12 deixa irrevogavelmente estabelecido o fato de que, na era cristã, a verdadeira igreja de Deus não é a igreja dominante, aliada aos poderes seculares, "embriagada com o sangue dos santos e com o sangue das testemunhas de Jesus" (Apocalipse 17:6), mas uma igreja perseguida, martirizada e, entretanto, fiel aos mandamentos de Deus e à fé em Jesus (Apocalipse 14:12).

Em Apocalipse 12:1, essa igreja é simbolizada como estando sempre "vestida do sol", ou seja, do "sol da justiça" (Malaquias 4:2), da gloriosa luz de Deus (Salmo 84:11; 104:1-2; Isaías 60:1-2; Mateus 13:43; João 8:12; Romanos 13:12-14), em evidente contraste com as vestes e adornos extravagantes da grande meretriz (Apocalipse 17:4), os quais retratam sua condição moral e espiritual (Jeremias 4:30).

A mulher pura, ou a genuína igreja de Cristo, é também simbolizada com a lua sob os pés, uma figura que representa o firme fundamento da igreja, tal como revelado no Salmo 89:34-37, em que o Senhor declara que Seu concerto e Sua palavra são tão inalteráveis como a lua!

A igreja está estabelecida sobre a Palavra de Deus, ao contrário da grande meretriz, que busca apoiar-se sobre os reis da terra, simbolizados pela besta escarlate (Apocalipse 17:1-3).

Finalmente, a mulher pura tem sobre a cabeça uma coroa de doze estrelas, símbolo de vitória espiritual e de realeza. A verdadeira igreja de Cristo é chamada "sacerdócio real" (I Pedro 2:9). As estrelas simbolizam o fiel povo de Deus como um todo (Daniel 12:3).

Doze é o número do reino de Deus. Havia doze tribos na igreja do Antigo Testamento e doze apóstolos na igreja do Novo Testamento. A Nova Jerusalém tem doze fundamentos e doze portas (Apocalipse 21:12-14). Doze é também o número de tronos na igreja triunfante (Mateus 19:27-28)!

A grande meretriz, por outro lado, diz arrogantemente sobre si mesma: "Estou sentada como rainha. Viúva, não sou. Pranto, nunca hei de ver" (Apocalipse 18:7).

O anúncio de seu julgamento em Apocalipse 17 expõe, todavia, seu verdadeiro caráter e revela o terrível fim que a aguarda, justificando o urgente apelo de Deus ao Seu povo:

Retirai-vos, dela, povo meu, para não serdes cúmplices em seus pecados e para não participardes dos seus flagelos. (Apocalipse 18:4)

Agora nossa investigação deve prosseguir com o objetivo de identificar a origem de sua prostituição, com base nos antecedentes no Antigo Testamento.

[Revisado em 2 de fevereiro de 2021]

Se você gostou desta postagem e quer apoiar o nosso trabalho, não esqueça de divulgá-la em suas redes sociais. Você também pode contribuir com este ministério clicando no botão abaixo. Sua doação permitirá que o evangelho eterno alcance muito mais pessoas em todo o mundo, para honra e glória de nosso Senhor Jesus. Que Deus o abençoe ricamente!

Postar um comentário

0 Comentários