Entre o "não é" e o "aparecerá"


A revelação mais surpreendente de Apocalipse 17 é a declaração de que a besta "está para emergir do abismo", de que ela se levantará outra vez a um domínio universal, em oposição à igreja de Deus no tempo do fim.

A expressão, "mas aparecerá" (verso 8, última parte), denota que, uma vez restaurada a sua condição primitiva, a besta empenhar-se-á ao máximo em mantê-la, por meio de uma extraordinária e poderosa união de todas as forças ideológicas e espirituais.

A intolerância que se vislumbra aqui será muito mais severa e generalizada do que aquela que vemos hoje em relação aos cristãos e outros grupos. Ela não será motivada por questões meramente ideológicas, partidárias ou políticas. Subjacente a essa intolerância está o conflito entre dogmas religiosos pretensamente cristãos e a Palavra de Deus.

Em tais condições, a lealdade a Deus e à Sua Palavra, em vez de aos homens e à tradição será provada até o limite.

Note, porém, que ao subir do abismo, a besta "caminha para a destruição", e por isso a "cabeça" que corresponde a essa nova fase existencial da besta - a sétima - "tem de durar pouco" (versos 8 a 10)!

Apesar do conflito decisivo diante de nós, a declaração do anjo chama a nossa atenção não para o drama em si, mas para a certeza de que a perseguição contra os santos durante esse período será breve, e o destino da besta, certo, final e definitivo!

Suas palavras ecoam a voz dAquele que é "o primeiro e o último, que esteve morto e tornou a viver", a fim de nos transmitir a mesma mensagem de ânimo que endereçou à igreja de Esmirna em Apocalipse 2:10:

Não temas as coisas que tens de sofrer. Eis que o diabo está para lançar em prisão alguns dentre vós, para serdes postos à prova, e tereis tribulação de dez dias. Sê fiel até à morte, e dar-te-ei a coroa da vida.

É de grande significação, portanto, que o interesse do anjo que acompanha João na visão se concentre na última das sete cabeças da besta! Durante o curto protagonismo da sétima cabeça, a própria besta revive e passa a ser identificada como "o oitavo rei, [que] procede dos sete, e caminha para a destruição" (Apocalipse 17:11).

Ora, se "procede dos sete", significa que a besta incorpora a mesma natureza e sentido de direção desses poderes mundiais consecutivos que historicamente a definiram e que a caracterizam como "o oitavo rei".

Deveis notar, contudo, que a besta revive na medida em que "emerge do abismo", segundo declaração do próprio anjo (Apocalipse 17:8), e que somente então é contada como "o oitavo".

Notai também que essas expressões empregadas pelo anjo sugerem uma espécie de paródia ou imitação de Cristo, que ressurgiu no "oitavo dia" depois de Seu descanso na tumba no sétimo dia.

Hans K. LaRondelle observa que "o contar como o 'oitavo' a sétima e final cabeça da besta indica não só que é uma besta ressuscitada, mas também alerta a igreja às demandas enganosas de um poderoso Messias falso, que imitará a morte e ressurreição de Jesus como 'o oitavo' (Apocalipse 17:11). O contraste fundamental não escapará à mente penetrante". [1]

O propósito da mulher em domesticar outra vez a besta


Uma indicação inegável de que a besta escarlate voltará a ser o que foi no passado provém da própria determinação da mulher em domá-la novamente. E como domadora com mais de mil anos de experiência, a Igreja sabe que não será bem-sucedida a menos que convença o animal de que é ela quem manda.

As declarações oficiais do papado que mencionei em minha postagem anterior não são um amontoado de palavras. Quem quer que deseje descobrir o que Roma papal representa de fato e, assim, não ser colaborador ou cúmplice de um sistema que se opõe à norma do governo do Céu necessita considerá-las seriamente.

Em primeiro lugar, porque essas declarações nos remetem ao passado da Igreja e à ordem social e política então em vigor.

Quando Pio IX expressamente condenou "que a melhor forma de governo é aquela em que não se reconheça ao poder civil a obrigação de castigar, mediante determinadas penas, os violadores da religião católica" [2], somos lembrados de Inocêncio III e do Quarto Concílio de Latrão, os quais decidiram: [3]

As autoridades seculares, qualquer que seja o ofício que possam ter, devem ser admoestadas e induzidas e, se necessário, obrigadas pela censura eclesiástica a de tal modo defender a fé, visto que desejam ser estimadas e contadas entre os fiéis, que prestem juramento público de que se empenharão de boa fé e na melhor das suas possibilidades para exterminar nos territórios sujeitos à sua jurisdição todos os hereges apontados pela Igreja...
Porém se um governante temporal, depois de ter sido solicitado e admoestado pela Igreja, negligenciar a purificação de seu território dessa infâmia herética, que seja excomungado pelo metropolita e outros bispos da província. Se ele se recusar a fazer penitência no prazo de um ano, que o assunto seja levado ao supremo pontífice, de modo que ele declare os vassalos livres de sua fidelidade ao referido governante e ofereça o território à administração dos católicos, que, no extermínio dos hereges, tomará posse dele sem impedimentos e o preservará na pureza da fé...
Decretamos que aqueles que dão crédito aos ensinamentos dos hereges, bem como aqueles que os recebem, defendem e patrocinam, sejam excomungados; e declaramos firmemente que, depois de qualquer um deles ter sido marcado com excomunhão, se ele deliberadamente falhar em fazer penitência no prazo de um ano, que incorra ipso jure [por força da lei] no estigma da infâmia e não seja admitido em cargos públicos ou deliberações, e que não participe da eleição de outros para tais ofícios ou exerça o direito de testemunhar em um tribunal de justiça. Que se torne também intestável, a fim de que ele não tenha o livre exercício de fazer um testamento, e que seja privado do direito de herança. Que ninguém seja obrigado a prestar-lhe conta em qualquer assunto, mas que seja estimulado a prestar contas a outros.

As disposições acima foram decretadas por um concílio ecumênico que "foi de longe a mais importante assembleia eclesiástica da Idade Média e [que] marcou o apogeu da vida eclesiástica e do poder papal". [4]

Elas possuem, portanto, caráter autoritativo sobre toda a Igreja. Nenhuma autoridade reconhecida por ela jamais as revogou. E como já tivemos a oportunidade de mencionar em outras ocasiões, foram aplicadas contra os albigenses e outros grupos considerados heréticos. [5]

A segunda razão pela qual as declarações papais não são simples retórica é que elas também nos fazem olhar para o futuro, pois fundamentam a determinação ferrenha do papado de reaver seu antigo poder temporal.

Em consequência da Revolução Francesa e das transformações sociais e políticas que se seguiram, as nações deixaram de ser cristãs, isto é, não reconhecem mais o poder temporal do papado, e agora, na visão de Roma, é preciso convencê-las de que devem retornar às suas raízes para que a ordem da civilização cristã, tal como concebida pela Igreja, seja restaurada.

Roma sempre reivindicou o poder temporal e desejou governar os reis e príncipes da terra. E a ênfase da doutrina católica nisto que ela considera ser o direito divino do papa deveria servir de advertência a todo cidadão e governante sábio o suficiente para prever os seus efeitos sobre nossas liberdades, caso seja novamente reconhecida pela esfera pública.

Se o papa não exerce hoje esse direito em toda a sua extensão, não significa que abriu mão dele. Somente que não é possível exercê-lo em uma sociedade livre e democrática.

Quando João Paulo I recusou a cerimônia de coroação com a tiara papal, em agosto de 1978, ele o fez em harmonia com a ênfase do Concílio Vaticano II no papel pastoral do papado, ao invés de na sua autoridade temporal. Isso não significou, porém, que esta última foi ab-rogada ou deixou de existir.

"Os vigários de Cristo possuem o direito de excomungar reis pelo nome ou depô-los ou de colocar reinos sob interdito", escreveu Edmund Sheridan Purcell, jornalista e biógrafo britânico, em uma obra editada pelo cardeal Manning.

Mas, "devido à ordem da cristandade ter sido alterada, [...] os soberanos pontífices se abstêm de infligir essas terríveis penalidades a príncipes sacrílegos ou a pessoas rebeldes; não obstante, devido a essa desordem [da cristandade], resulta desta sábia conveniência que os papas da época atual não estejam de posse desse atributo supremo de seu poder soberano sobre as nações".

"Sob tais circunstâncias", conclui Purcell, "o não exercício de um direito não é um argumento conclusivo quanto à sua não existência. Escritores argumentam e nações declaram que os papas não têm poder para destituir reis, mas nenhum papa, que eu saiba, aceitou tais argumentos ou endossou tais declarações". [6]

Em vista da firme resistência e recusa taxativa do papado em abrir mão de seus direitos, seria estranho que até mesmo o mais carismático e progressista dos papas renunciasse a eles.

De fato, sempre que tiver a oportunidade, o papado não hesitará em usar seu papel pastoral para a promoção de sua ambição temporal, da mesma forma que os jesuítas não têm escrúpulos ao usar as necessidades religiosas do homem como um meio para realizar suas ambições políticas.

E com a energia incansável e a astúcia de quem conhece a si mesma e o caminho que pretende percorrer, Roma tem se servido de todos os artifícios possíveis para insuflar naquela besta indócil, símbolo das nações modernas, uma forma de vida mais suscetível aos seus comandos e, assim, retomar o controle total que um dia teve sobre ela.

Uma Roma infalível quer governar o mundo


Um sinal claro nessa direção, como o primeiro estalar de um chicote para intimidar uma fera que não quer ser domada, veio na forma de um dogma controverso que reconheceu o papa como infalível. Esse dogma foi proclamado durante o Concílio Vaticano I, no dia 18 de julho de 1870, portanto em meio à perda dos últimos vestígios do poder temporal do papado.

O Capítulo III, intitulado "Do Poder e da Natureza do Primado do Pontífice Romano", dispõe que "a Santa Sé Apostólica e o Pontífice Romano têm [e não "pretendem ter"] o primado sobre todo o mundo [e não "sobre um território em particular"], e que o mesmo Pontífice Romano é [e não "presume ser"] o sucessor de S. Pedro, o príncipe dos Apóstolos, o verdadeiro vigário de Cristo", etc.

E o Capítulo IV: "Do Magistério Infalível do Romano Pontífice", proclama: [7]

Por isso Nós, apegando-nos à Tradição recebida desde o início da fé cristã, para a glória de Deus, nosso Salvador, para exaltação da religião católica, e para a salvação dos povos cristãos, com a aprovação do Sagrado Concílio, ensinamos e definimos como dogma divinamente revelado que o Romano Pontífice, quando fala ex cathedra, isto é, quando, no desempenho do ministério de pastor e doutor de todos os cristãos, define com sua suprema autoridade apostólica alguma doutrina referente à fé e à moral para toda a Igreja, em virtude da assistência divina prometida a ele na pessoa de São Pedro, goza daquela infalibilidade com a qual Cristo quis munir a sua Igreja quando define alguma doutrina sobre a fé e a moral; e que, portanto, tais declarações do Romano Pontífice são por si mesmas, e não apenas em virtude do consenso da Igreja, irreformáveis.

Vede que o que se ensina e se define aqui não está aberto à objeção da consciência, nem da parte dos fiéis cristãos que estão obrigados a observá-lo, nem da autoridade civil cujo dever é garantir a liberdade da Igreja de fazê-lo.

Considerando a extensão do primado e a natureza da autoridade papal reconhecidas e definidas pelo papa e pelo Concílio, não é de surpreender que a pretensa infalibilidade do pontífice romano nas definições ex cathedra sobre a fé e a moral fosse proclamada como "dogma divinamente revelado". Ambos se complementam, e sua linguagem não abre espaço à incerteza.

Como R.W. Thompson observa: [8]

Não é necessária uma compreensão precisa desta proclamação oficial além do que sua linguagem permite explorar. É uma afirmação enfática e óbvia de completa jurisdição pontifical sobre as nações, e a tudo relacionado com suas medidas de política interna que pertence aos interesses e fé da Igreja, ou coloca a mínima limitação aos poderes e prerrogativas dos papas. Reduz todos os povos a uma condição de inferioridade absoluta e reconhece o papa como o árbitro comum de todos os assuntos humanos e não subordinado a qualquer tribunal humano. Seu objetivo principal era unir Igreja e Estado tão intimamente que nunca poderiam ser separados, de modo a tornar impossível qualquer forma de governo popular, como a dos Estados Unidos.

Avaliar, porém, o peso desse decreto conciliar somente pelas palavras ainda parece insuficiente para apreender todo o seu significado real. Convém expor suas implicações por meio da reação que provocou, tanto dentro como fora da Igreja.

No púlpito, uma das vozes discordantes mais eloquentes a propósito do novo dogma foi a do padre Hyacinthe.

A despeito de seu prestígio e de sua devoção ao papa, Hyacinthe não hesitou em protestar "contra as doutrinas e práticas que se dizem romanas, mas não são cristãs" e contra o que chamou "usurpações cada vez mais ousadas e fatais" e "divórcio, tão ímpio, quanto louco, que os homens estão se esforçando para realizar entre a Igreja... e a sociedade do século XIX". [9]

Em uma carta dirigida aos bispos católicos, Hyacinthe se referiu à infalibilidade papal "como uma doutrina desconhecida da antiguidade eclesiástica e que tem seus fundamentos apenas em documentos apócrifos sobre os quais a crítica se pronunciou além de qualquer apelo". Mais adiante, ele complementa: [10]

É esta política do poder temporal e do braço secular que se apossa de certas províncias na Itália e de certos privilégios na Europa a condição essencial do império das almas, o eixo de toda a estrutura espiritual? Uma política tão fatal para a Igreja e para o mundo...

Aos protestos vigorosos do padre Hyacinthe contra o novo dogma, uniu-se a voz não menos ativa do teólogo e sacerdote alemão Ignaz von Döllinger. Escrevendo ao seu arcebispo em resposta à convocação para renunciar a seu posicionamento anti-infalibilista, o Dr. Döllinger apresentou uma série de argumentos em sua defesa, concluindo com este: [11]

Finalmente, como cidadão, devo rejeitar essa doutrina, porque, por sua pretensão de sujeitar estados e monarcas e toda a ordem política ao poder papal, e pelas isenções da lei que reivindica para o clero, prepara o caminho para discórdias infinitamente perniciosas entre Estado e Igreja, entre clero e leigos, pois não posso esconder de mim mesmo que essa doutrina, em consequência da qual o antigo império alemão foi arruinado, se uma vez se tornasse dominante na parte católica da nação alemã, implantaria também no império recém-constituído os germes de uma desordem incurável.

Outra carta, desta vez endereçada aos bispos, foi publicada em junho de 1871 e assinada não somente por Döllinger, mas por várias personalidades eminentes da igreja, do estado, da literatura e da ciência. Desta carta, cito os seguintes extratos (notai, por favor, as palavras):  [12]

Nunca, até agora, foi parte da doutrina da igreja ou da fé católica que todo cristão reconheça no papa um mestre absoluto e soberano a quem ele está direta e imediatamente sujeito, e a quem emissários e núncios devem obediência incondicional em tudo o que diz respeito à fé e moralidade prática. [...] Pelos novos decretos, o papa está não apenas investido de domínio sobre todo o campo da moralidade, mas determina - unicamente ele e com a autoridade de um mestre infalível - o que pertence ou não a esse domínio, quais princípios são de obrigação divina, e também qual melhor interpretação e aplicação dar a eles em casos particulares.
No exercício dessa autoridade, o papa não está obrigado a receber qualquer aprovação fora de si mesmo; ele não é encarregado por ninguém na terra, e ninguém pode ser opor a ele. Cada um, príncipe ou camponês, bispo ou leigo, é obrigado a submeter-se sem condição e obedecer sem contradição a todos os seus mandamentos. Se não é possível chamar tal poder de ilimitado e despótico, nunca houve semelhante poder no mundo, e nunca haverá.
Persistimos em nossa profunda convicção de que os decretos do Vaticano constituem um sério risco para o Estado e para a sociedade; que eles são incompatíveis com as leis e instituições dos estados modernos, e que, ao aceitá-los, entraremos em um conflito irreconciliável com nossos deveres e juramentos políticos. [...]
Quando comparamos (o que os bispos alemães negligenciaram fazer) as condenações pronunciadas no Syllabus (que agora se tornou um decreto investido com a infalibilidade papal), a solene condenação pelo papa da constituição austríaca, as publicações simultâneas dos jesuítas de Laach, Viena e Roma, os quais estão muito mais bem informados do que os bispos alemães sobre as intenções da Cúria Romana; quando comparamos tudo isso com os decretos do Vaticano, nós devemos estar cegos para não ver um plano habilmente arquitetado que visa a monarquia universal dos papas.
Nossos governos, nossas leis e nossas constituições políticas, tudo o que diz respeito à moralidade, às ações de cada indivíduo, tudo deve ser submetido à Cúria Romana, seus órgãos e seus legados, sejam eles fixos ou itinerantes, sejam bispos ou jesuítas. Único legislador em matéria de fé, disciplina e moral, juiz supremo, soberano e executor inimputável de suas próprias sentenças, o papa, em virtude da nova doutrina, possui tamanha plenitude de poder que nem a mais ardente imaginação pode conceber.
Os bispos alemães poderiam muito bem considerar as palavras de ouro pronunciadas em Munique pelo franciscano Occam numa situação análoga à nossa: "Se o bispo de Roma possuísse plenitude de poder como os papas falsamente reivindicam, e tantos equivocadamente, ou com o espírito de adulação lhes concedem, todos os homens seriam escravos; e isto é claramente contrário à liberdade da lei do evangelho.

A esses dois testemunhos internos devo acrescentar um externo. Ele expressa os temores de um príncipe alemão quanto ao Concílio então iminente, e foi citado por ninguém menos que o cardeal Manning (ele mesmo um ferrenho partidário da infalibilidade papal), naturalmente por considerar esse testemunho a prova de uma conspiração deliberada contra o Concílio.

Trata-se de uma carta do príncipe Hohenlohe, ministro dos Negócios Estrangeiros da Baviera, endereçada aos governos europeus, apelando-lhes para que se unissem e protestassem contra as pretensões de Roma mediante o Concílio para alterar as relações entre igreja e estado tal como estabelecidas pela civilização moderna. Em virtude de seu teor, cito-a na íntegra: [13]

Monsieur, parece certo que o Concílio convocado por Sua Santidade o Papa Pio IX se reunirá no mês de dezembro próximo. O número de prelados de todas as partes do mundo que estará presente será muito maior do que em qualquer Concílio anterior. Este fato por si só contribuirá para dar aos seus decretos uma grande autoridade, como é próprio a um Concílio Ecumênico. Levando em consideração essa circunstância, parece-me indispensável que todo governo lhe dê sua atenção; e é com essa visão que estou prestes a enviar-lhe algumas observações.
É improvável que o Concílio se ocupe apenas com doutrinas puramente teológicas; não existe neste momento nenhum problema desta natureza que exija uma solução conciliar. A única tese dogmática que Roma gostaria de ver decidida pelo Concílio, e que os jesuítas na Itália e na Alemanha agora estão promovendo, é a questão da infalibilidade do papa. É evidente que esta pretensão, elevada a um dogma, iria muito além da esfera puramente espiritual, e se tornaria uma questão eminentemente política, como elevar o poder do Soberano Pontífice, mesmo que em questões temporais, sobre todos os príncipes e povos da cristandade. Essa doutrina, portanto, é de tal natureza que desperta a atenção de todos os governos que dominam os assuntos católicos.
Há uma circunstância que aumenta ainda mais a gravidade da situação. Informei-me que entre as comissões delegadas para preparar o assunto, que posteriormente serão submetidas às deliberações do Concílio, há uma que se ocupa apenas de questões mistas, que afetam igualmente o direito internacional, a política e o direito canônico. Todos esses preparativos justificam nossa crença de que é a intenção fixa da Santa Sé, ou pelo menos de um partido altamente poderoso em Roma, promulgar por meio do Concílio uma série de decretos sobre questões que são mais políticas do que eclesiásticas. Acrescente-se a isso que o Civiltà Cattolica, um periódico dirigido pelos jesuítas, e tendo um caráter oficial através do escrito do Santo Padre, acaba de exigir que o Concílio transforme em decretos conciliares as condenações do Syllabus, publicado em 8 de dezembro de 1864. Uma vez que os artigos desta encíclica são dirigidos contra princípios que são a base da vida pública moderna, como a encontramos entre todas as nações civilizadas, segue-se que os governos necessitam se perguntar se não é seu dever convidar à reflexão séria tanto os Bispos que são seus súditos, como o futuro Concílio a respeito das tristes consequências de tal reviravolta premeditada e sistemática das atuais relações entre Igreja e Estado. Não se pode negar, de fato, que é urgente que os governos se unam, com o propósito de protestar, seja através de seus agentes em Roma, ou de outra maneira, contra todas as decisões que o Concílio venha a promulgar sem a concordância dos representantes do poder secular, em questões que são ao mesmo tempo de natureza política e religiosa.
Penso que a iniciativa sobre uma questão tão importante deveria ser tomada por uma das grandes potências; mas não tendo ainda recebido qualquer comunicação sobre esse assunto, julguei necessário procurar um entendimento mútuo que proteja os nossos interesses comuns, e que, sem demora, tenha em vista o intervalo demasiadamente curto até a reunião do Concílio. Desejo, portanto, que submetais essa questão ao governo ao qual representas e que verifiqueis as opiniões e intenções do tribunal em relação ao curso que julgar aconselhável seguir. Submetemos à aprovação de M. _____ a questão de saber se não seria aconselhável fixar antecipadamente as medidas a serem tomadas, se não conjuntamente, ao menos consensualmente, a fim de esclarecer a Santa Sé quanto à atitude que os governos do continente assumirão em referência ao Concílio Ecumênico; ou se conferências compostas de representantes dos Estados envolvidos não seriam consideradas os melhores meios para estabelecer um entendimento entre seus governos.
Autorizo-o a deixar uma cópia deste despacho com o Ministro dos Negócios Estrangeiros, se assim o desejar; e espero que me informes o mais breve possível sobre como esta notificação foi recebida.

Respeitosamente, etc.
Hohenlohe.
Munique, 9 de abril de 1869.

O "poder supremo da Igreja de Deus"


A despeito destas vozes proativas, e de outras que a elas se uniram, a maré das circunstâncias fluiu com força irresistível em direção a um desfecho diferente, revelando, mais uma vez, o verdadeiro caráter de Roma.

Afinal, nas palavras de Manning, a "condição da Igreja e do mundo exigia um remédio mais potente que a legislação humana", e para reverter este estado de coisas que usurpa do papa seu poder temporal, o "poder supremo da Igreja de Deus" na forma de um Concílio Ecumênico foi então convocado". [14]

Assim, diante dos protestos, a Igreja não podia agir em desacordo com a sua natureza, e, em lugar de um mea culpa, o que se viu foi a reafirmação da narrativa que tornara o dogma possível e que se traduziu em imprecações desferidas como um raio contra os membros do partido liberal católico.

Sacerdotes foram suspensos ou destituídos, diretores de escola foram afastados do cargo, professores foram estigmatizados como heréticos, e os estudantes, advertidos contra seus ensinamentos. Cada combinação de influência foi usada para fazer com que a simpatia ao desagradável partido fosse dispendiosa e perigosa.

O padre Hyacinthe, em um discurso numa conferência católica em Munique, em 23 de setembro de 1871, declarou: [15]

Para o padre, é a pobreza, a desonra sob a proibição do interdito e o raio do anátema. Para o leigo, é a injúria do bom nome e dos bens que pertencem não só a ele, mas que mantém em conjunto com sua esposa e como depósito para seus filhos. Se ele é um funcionário público, compromete sua promoção sob uma administração ultramontana [defensora da infalibilidade papal]. Se é um político, arrisca sua eleição; se um médico ou advogado, sua prática; se um comerciante, suas relações comerciais; se um cidadão em qualquer relação, sua estima da parte de um grande número de seus concidadãos. Devo mencionar, para concluir, algo ainda mais doloroso: ele arrisca a paz de seu lar e a santidade de sua mortalha e esquife!.

No fim, a grande maioria daqueles que se opuseram ao dogma da infalibilidade foi silenciada e se submeteu com resignação. E se Pio IX não podia aplicar medidas similares contra os estados que manifestaram apreensão semelhante face ao novo dogma, ele podia, ao menos, deixar claro seu descontentamento.

Como quando, cinco dias depois de ter sido presenteado com uma esplêndida tiara (ver imagem abaixo) por uma delegação belga em 18 de junho de 1871, falando a uma delegação de Viterbo, capital do patrimônio de São Pedro, contou como suas posses temporais surgiram, acrescentando: [16]

Hoje aqueles que deveriam guardar o Patrimônio de São Pedro o usurpam. É verdade que eu não posso, como Pedro, lançar certos trovões que reduzam corpos a cinzas, mas posso ao menos lançar trovões que reduzam as almas a cinzas, e eu o fiz, excomungando todos aqueles que perpetraram e participaram da espoliação sacrílega.



Tiara papal que Pio IX recebeu da Bélgica em 1871.
A inscrição completa diz: "Infalível Vigário de Jesus Cristo",
"Supremo Governador do Mundo", "Pai das Nações e dos Reis".

O tom das palavras de Pio IX resume bem o estado de espírito que definiu a questão romana ao longo dos cinquenta e oito anos seguintes, durante o tempo em que a ferida na Igreja permaneceu aberta até que recebesse o primeiro lenitivo, como veremos a seguir. E esse estado de coisas certamente motivou a elaboração de uma constituição dogmática que reafirmasse a jurisdição e a natureza do poder papal além de qualquer dúvida.

O dogma, que proclama autoritativamente a infalibilidade do papa, foi elaborado e emitido sob a supervisão direta de Pio IX, assim como os decretos de Inocêncio III para o Concílio de Latrão, em 1215, reunido para condenar as pretensas heresias dos Albigenses, reforçar o poder temporal do papa, encobrir suas usurpações e dar sanção papal às terríveis perseguições da Inquisição. Nenhuma alteração foi permitida, e a tentativa feita para eliminar o anátema acabou frustrada, visto que isso significaria renunciar ao poder coercitivo. [17]

Mas Pio IX não agiu sozinho. Lembrai das menções feitas pelo Dr. Döllinger e pelo príncipe Hohenlohe sobre a atuação dos jesuítas em favor da aprovação do dogma da infalibilidade papal.

O papa foi mais exitoso do que qualquer um de seus predecessores porque pôde lucrar com a aliança com os jesuítas e garantir o triunfo dos ultramontanos. De modo que o dogma reflete as ambições não só do papa, mas também de uma organização cujo poder e influência faria qualquer sociedade secreta parecer um clube de escoteiros.

"A Ordem dos Jesuítas", testifica o conde Von Hoensbroech, "[é] a corporificação de um sistema que visa o domínio político temporal por meios políticos temporais, ornamentados pela religião, que atribui à cabeça da religião católica - o papa romano - a função de um senhor temporal, e sob o abrigo do Papa-Rei, e servindo-se dele como instrumento, deseja alcançar o domínio sobre todo o mundo". [18]

E não importa que meios os jesuítas venham a utilizar para satisfazer esse objetivo. Desde sua fundação em 1540, com o propósito expresso de subverter a Reforma, a ordem tem se destacado na arte da duplicidade maquiavélica. É uma organização fundada em linhas militares para lutar pela restauração política do papado, e a única ordem na Igreja Católica que vincula seus membros por um juramento especial com esse fim. [19]

O célebre inventor Samuel Morse se referiu aos jesuítas como "uma ordem eclesiástica proverbial no mundo pela astúcia, duplicidade e total carência de princípios morais; uma ordem tão habilidosa em todas as artes do engano que, mesmo nos países católicos, na própria Itália, tornou-se intolerável, e o povo exigiu sua supressão". [20] Ainda teremos a oportunidade de falar algo mais sobre essa ordem nefasta.

Os decretos da jurisdição universal do papa e de sua infalibilidade, promovidos pelos jesuítas com extremo zelo e eficiência, reavivaram, pois, de forma agressiva e insolente, as reivindicações blasfemas e intolerantes do papado medieval, demonstrando em tom inconfundível a imutabilidade de sua natureza.

Ainda acerca das implicações do novo dogma, cito os parágrafos conclusivos de Philip Schaff: [21]

A impecabilidade da Virgem Maria e a infalibilidade pessoal do papa são os dogmas característicos do romanismo moderno, os dois dogmas aferidores que devem decidir o destino final desse sistema. Ambos foram promulgados sob o mesmo papa, e ambos refletem fielmente seu caráter.
[...] mas o dogma da infalibilidade papal, que envolve uma questão de poder absoluto [e nada menos do que isso], definiu uma época na história do romanismo... É na sua natureza o mais fundamental e mais abrangente de todos os dogmas. Ele contém todo o sistema em poucas palavras. Constitui uma nova regra de fé... É o antípoda direto do princípio protestante da absoluta supremacia e infalibilidade das Sagradas Escrituras. Estabelece um oráculo divino perpétuo no Vaticano. Todo católico pode dizer daqui em diante, eu acredito - não porque Cristo, ou a Bíblia, ou a Igreja [diz], mas - porque o papa infalível assim decretou e ordenou.
Admitindo esse dogma, admitimos não somente todo o corpo de doutrinas contidas nas normas tridentinas, mas todas as bulas oficiais papais, incluindo as monstruosidades medievais do Syllabus (1864), a condenação do Jansenismo, a bula 'Unam Sanctam' de Bonifácio VIII (1302), que, sob pena de condenação, reivindica ao papa a dupla espada, tanto a secular como a espiritual, sobre todo o mundo cristão, e o poder de destituir os príncipes e absolver os súditos de seu juramento de lealdade. O passado está irreversivelmente decidido, e em todas as futuras controvérsias sobre fé e moral devemos olhar para o mesmo tribunal infalível do Vaticano.

A estas considerações do historiador protestante, as quais devem estimular a reflexão do leitor, convém acrescentar as observações bastante francas do cardeal Manning a propósito do Syllabus, que aqui se expressa como na pessoa do papa: [22]

'... Vós dizeis, eu não tenho autoridade sobre o mundo cristão; que eu não sou o Vigário do Bom Pastor; que eu não sou o intérprete supremo da fé cristã: eu sou tudo isso. Vós me pedis para abdicar, renunciar à minha autoridade suprema. Dizei-me que eu devo sujeitar-me ao poder civil; que sou súdito do rei da Itália, e dele devo receber instruções sobre como exercer meu poder supremo. Eu digo que estou livre de toda sujeição civil; que meu Senhor não me sujeitou a ninguém na terra, seja rei ou outro qualquer; que à Sua direita eu sou soberano.
Não reconheço nenhum superior civil; não estou sujeito a nenhum príncipe; e reivindico mais do que isso: eu afirmo ser o juiz supremo na terra e diretor das consciências dos homens: do camponês que cultiva o campo, e do príncipe que se senta no trono; da família que vive à sombra da privacidade, e do legislador que faz leis para os reis. Eu sou o juiz supremo e final na terra do que é certo e errado. Vosso progresso é o fim da civilização cristã; nesse caminho podeis ter muitos companheiros, mas não me encontrareis entre eles'.


Moeda cunhada durante o pontificado de Júlio III (1550-1555).
No verso, a inscrição em latim de Isaías 60:12:
GENS ET / REGNVM / QVOD NON / SERVIERET / TIBI / PERIBIT,
("A nação e o reino que não te servirem perecerão").
O texto se refere a Deus, porém, considerando a pretensa jurisdição
universal do papado, não seria surpresa se a inscrição
se referisse ao próprio papa.

Medalha papal comemorativa do segundo ano do pontificado de
Leão XIII (1879), portanto, cerca de nove anos depois do decreto
da infalibilidade papal promulgado por Pio IX.
Notai no verso a mesma inscrição em latim de Isaías 60:12,
mas agora com uma mudança explícita que não dá margem à dúvida:
 GENS ET REGNVM QVOD NON SERVIERIT MIHI PERIBIT,
"A nação e o reino que não me servirem perecerão".


Em vista de tudo isso, devemos perguntar, a exemplo do já citado Samuel Morse, sobre o princípio fundamental de um governo, princípio que define seu caráter e a qualidade de vida de seu povo:

De quem deriva a autoridade para governar?

A princípio, Roma e os Estados Unidos concordarão: Ela deriva de Deus. A discordância, porém, se manifesta nas respostas à pergunta seguinte:

A quem na terra essa autoridade é delegada?

Roma responde: Ao Papa, o chefe supremo da Igreja Católica, que afirma ser o "Vice Regente de Deus", "supremo sobre todos os mortais"; "sobre todos os imperadores, reis, príncipes, potentados e povo"; "Rei dos reis e Senhor dos senhores"; "divinamente nomeado administrador de castigos espirituais e temporais"; "munido com poder para depor imperadores e reis, e absolver os súditos de seu juramento de lealdade"; "de sua decisão não há apelação"; "ele não responde a ninguém na terra"; "ele não é julgado por ninguém, senão por Deus".

Os Estados Unidos respondem: Ao povo, em quem reside o poder soberano - "Nós, o povo, ordenamos, estabelecemos, concedemos", etc.

Um princípio reconhece a necessidade de subserviência do povo, a absoluta dependência que se espera de um súdito, a submissão passiva aos comandos de quem governa, sem questionamento ou crítica. O governante é mestre, o povo é escravo.

O outro princípio sustenta a supremacia do povo, a igualdade de direitos e poderes do cidadão, e a submissão às leis que emanam do próprio povo; o governante é um funcionário público, que recebe salários do povo para cumprir sua função segundo a vontade do povo. O governante é servo, o povo é mestre. [23]

Agora podeis ver distintamente por que Roma jamais se conformará a este último princípio, por que ela permanecerá, ainda que veladamente, inimiga da liberdade e dos demais direitos constitucionais.

Porque o "direito divino" confere ao papa, e somente a ele, a "primazia da jurisdição universal e a plenitude do poder", de modo que o princípio "todo poder emana do povo" é não só incompatível, mas, sobretudo, "um erro pernicioso" do qual é preciso se livrar.

Que harmonia, pois, pode haver entre esses dois princípios? Que entendimento ou compromisso?

Seria razoável que os estados modernos proclamassem o Syllabus ou reconhecessem os códigos canônicos da Igreja, ou a infalibilidade do papa e seu direito de soberania sobre todos os governos?
Deveriam eles reconhecer a bula de Bonifácio VIII, agora infalível, segundo a qual "a autoridade temporal deve ser submissa à autoridade espiritual" e, assim, fazer cumprir seu decreto de "que é absolutamente necessário à salvação de toda a criatura humana estar sujeita ao romano pontífice"? [24]

Somente nestas circunstâncias o papado se reconciliaria plenamente com a sociedade civil. Somente então o papa concederia sua bênção ao mundo, porque, na prática, não haveria na terra senão uma só Igreja, a Católica, e um só pastor, o papa, com seu triregnum, símbolo de seu tríplice poder: "o pai dos reis, governador do mundo e Vigário de Cristo". [25]

Contudo, em cumprimento à profecia, este é o caminho que os estados modernos começaram a trilhar desde que passaram a ver Roma com outros olhos.

Esqueceram-se de que as prerrogativas que o papado reclama unicamente para si fazem dele o mais proeminente jogador no complicado xadrez geopolítico mundial, ou, para usar a linguagem de Malachi Martin em As Chaves deste Sangue ao se referir a João Paulo II e à agenda para a nova ordem mundial, mais que um gigante geopolítico, o papado "era e continua a ser o sereno e confiante Servo do Grande Plano".

O fim da questão romana (ou Roma domesticando o estado)


Até aqui, o dogma da infalibilidade papal. Devemos agora mencionar outro sinal claro de que a besta "está para emergir do abismo"; um evento, sem dúvida, de resultados mais abrangentes, que não se limitou à proclamação de um dogma, mas na restauração, ainda que inacabada, de suas pretensões.

Ora, apesar do mal-estar que o dogma de Pio IX provocou dentro e fora da Igreja, Roma se viu forçada a manter-se relativamente na defensiva em relação ao espírito liberal democrático, diante do qual ela pouco podia fazer para tornar o poder da autoridade a autoridade do poder, como na Idade Média.

A Igreja Católica só poderia retomar a ofensiva se um regime baseado nas instituições liberais fosse substituído por um regime autoritário, centralizado e hierárquico, semelhante ao de Roma.

Pois um sistema religioso autoritário não pode exercer plenamente as prerrogativas que reclama sem o auxílio de um estado autoritário, assim como o segundo não pode funcionar adequadamente sem a ajuda do primeiro.

Roma sabe que não pode ser fiel a si mesma sem expor sua ambição política, da mesma forma que um gato não pode pegar um peixe sem molhar as patas. A oportunidade surgiu - ou melhor, foi concebida pela Igreja por meio dos jesuítas - com a ascensão do fascismo.

Assim, não surpreende que o papado, na pessoa do então papa Pio XI, tenha se aliado ao estado fascista, visto que ambos eram poderes rigidamente hierárquicos, possuíam a mesma natureza autoritária e intolerante, e lutavam contra os mesmos inimigos.

Sobre os inimigos, aliás, David Kertzer observa: [26]

O papa viu em Mussolini algo que lhe agradou. Apesar de todas as diferenças, os dois homens compartilhavam valores importantes: nenhum dos dois tinha qualquer simpatia pela democracia parlamentar; tampouco acreditavam na liberdade de expressão ou de associação.

Na primeira encíclica de sua autoria, Ubi Arcano, promulgada em 23 de dezembro de 1922, Pio XI estabeleceu as metas de seu papado. Entre outras coisas, advertiu que a noção de que a sociedade avançava ao se afastar da Igreja era equivocada, ressaltava a importância da obediência à autoridade apropriada e adotava o programa de Pio X de combate ao "modernismo". Além disso, reforçou sua visão medieval ao depreciar a recém-formada Liga das Nações: [27]

Nenhuma instituição meramente humana de hoje poderá ter o mesmo êxito em conceber um conjunto de leis internacionais em harmonia com as condições mundiais que a Idade Média teve na posse da verdadeira Liga das Nações, o Cristianismo.
 
Esse é o projeto de Roma expresso pelo seu chefe supremo. A criação de uma ordem social que atenda ao bem comum é uma prerrogativa da Igreja, e não de qualquer "instituição meramente humana". Como na sociedade medieval, trata-se de uma ordem social em que a Igreja dita as regras e na qual a liberdade garantida nas constituições liberais dos estados democráticos não pode existir.

O leitor não deve se deixar enganar. Mesmo se tiver que recorrer à liberdade de expressão e à tolerância religiosa para esse fim, Roma o fará sem titubear, como de fato tem feito, enganando, assim, a muitos. Uma vez, porém, que esses direitos fundamentais tenham servido para ajudá-la na obtenção do poder que ela reclama, a verdadeira natureza autoritária de Roma será novamente conhecida.

Diante da grave ameaça que o estado democrático de direito representa à sua autoridade, fazia sentido que as ações de Roma não se restringissem a protestos moderados ou cartas encíclicas, por mais contundentes que estas últimas fossem. Demandava-se uma ação mais concreta, que só poderia ser realizada com a ajuda de um regime autoritário, como o fascismo.

Pois, como disse Gonzague de Reynold, fervoroso reformador católico jesuíta, o novo "regime cristão" que surgirá como resultado da desejada reconstrução católica da ordem social terá que ser fascista, já que "o fascismo foi a única tentativa bem-sucedida de criar um novo regime". [28]

Mussolini não ignorava as ambições da Igreja nem tampouco o poder de influência que emana do trono papal, os quais imaginava reverter em seu próprio benefício. Ele manifestou essa percepção antes mesmo de assumir o poder, em um discurso no parlamento que se tornaria memorável.

Centenas de milhões de católicos do mundo inteiro consideravam Roma seu lar espiritual, disse ele. Essa era uma fonte de poder que a Itália não podia ignorar. O fascismo, afirmou, para espanto de muitos que o conheciam, ajudaria a promover a restauração da sociedade cristã. Construiria um estado católico apropriado para uma nação católica. [29]

Já como primeiro-ministro, Mussolini cumulava a Santa Sé de dinheiro e privilégios. Forçou a aprovação de uma nova lei que permitia à polícia demitir qualquer editor cujo jornal falasse mal do pontífice ou da Igreja. Cedeu ao pedido do Vaticano de que só livros aprovados pela Igreja fossem usados para ensinar religião nas escolas.

Concordou em fechar salões de jogos. Conferiu reconhecimento estatal à Universidade Católica de Milão, anunciou sua oposição ao divórcio e tomou providências para salvar o Banco de Roma, estreitamente ligado ao Vaticano e que estava à beira da falência. Os crucifixos voltaram às salas de aula, e os feriados religiosos foram incorporados ao calendário civil. Mussolini também contribuiu com generosos fundos para reconstruir igrejas arruinadas durante a guerra. [30]

As medidas em favor da Igreja continuaram. Uma nova lista de feriados oficiais incluía vários dias santos católicos que o estado jamais reconhecera. Mussolini também adotou suas primeiras medidas contra organizações protestantes, sabendo que, com isso, agradaria ao papa.

Seminaristas católicos foram isentados do serviço militar, e três semanas antes da votação [na nova eleição nacional, em 1924] Mussolini aumentou espetacularmente os pagamentos do governo aos bispos e padres da Itália, para grande regozijo deles. [31]

Tudo isso pavimentou o caminho para um acordo histórico entre o governo da Itália e a Santa Sé que poria um fim à embaraçosa questão romana e consolidaria o apoio da Igreja ao regime de Mussolini. Mais tarde, em sua edição de 12 de fevereiro de 1929, o San Francisco Chronicle descreveria com palavras proféticas esse acordo "como a cura de uma ferida aberta desde 1870". [32]

O teor do futuro acordo transpareceu na reação entusiasmada de Mussolini a uma carta de Pio XI endereçada ao seu secretário de estado em fevereiro de 1926, a qual, conforme ele disse ao seu ministro da Justiça e da Religião, era "de importância capital". Tendo se livrado dos "preconceitos do liberalismo", explicou o Duce, o regime fascista "repudiaria tanto o princípio do agnosticismo religioso quanto o princípio da separação entre igreja e estado". [33]

Três anos depois, em 11 de fevereiro de 1929, o Palácio Lateranense, um anexo da Basílica de São João Latrão que durante mil anos fora a sede do trono papal desde que o imperador Constantino deu aos papas seu próprio palácio neste sítio, testemunhou a assinatura do documento que dava origem ao estado soberano do Vaticano, com seus 440 mil metros quadrados.

Medalha comemorativa do Tratado de Latrão de 1929.
Notai, na face oposta, a Igreja simbolizada na figura
de Pedro com as chaves, sentado sobre o globo terrestre,
com a Cidade do Vaticano como sua capital,
demonstrando que a ambição de Roma não se restringe
a um minúsculo território.

O tratado, assinado por Mussolini e pelo cardeal Gasparri, em nome do rei Victor Emmanuel III e do papa Pio XI, restabeleceu o poder político do Vaticano, restaurando a soberania civil do papa como monarca, que se perdera quando Roma, o último dos estados pontifícios, foi anexada ao Reino da Itália em 1870. Desde então, os papas haviam permanecido como prisioneiros voluntários no Vaticano.

Por favor, notai novamente que a assinatura de semelhante acordo nunca teria sido possível sob um regime democrático.

Como Kertzer observa, citando um dos principais historiadores da Igreja na Itália, apesar do estabelecimento do governo italiano no século XIX - com seus compromissos de separação entre clero e estado e de democracia liberal, os papas jamais haviam abandonado a crença numa sociedade italiana hierárquica e autoritária, baseada em princípios da Igreja. Depois de anos nos quais esses sonhos de retorno à antiga autoridade do clero pareciam irreais, a aparição do fascismo trouxe uma nova esperança.

Em outra parte, o autor acrescenta: [34]

Jornais em todo o país, incluindo o diário do Vaticano, martelaram no tema de que a histórica assinatura jamais teria acontecido se a Itália ainda estivesse sob um governo democrático. Só Mussolini e o fascismo haviam tornado o acordo possível.

L.H. Lehmann, um contemporâneo dos acontecimentos, observou: [35]
 
O povo italiano é essencialmente democrático e liberal. Por isso, levou muitos anos para que Mussolini superasse o socialismo e o liberalismo. Não foi até então que o palco desta comédia política foi finalmente definido para a aparição do dramaturgo por trás da cortina, quando, em 1929, o Acordo de Latrão entre o papa e o governo fascista foi publicado...
Além de receber de Mussolini 750 milhões de liras em dinheiro e um bilhão de liras em ações do governo fascista, o Vaticano conseguiu uma pequena, mas substancial soberania, tirada do coração da Itália, um Tratado e uma Concordata tornando o catolicismo a única Igreja do reino e dando ao clero controle total sobre a educação do povo.
A união entre o Vaticano e o fascismo foi publicamente selada. O Vaticano poderia agora, depois de muitos anos, usufruir novamente dos atributos e privilégios da soberania diplomática, que são de valor inestimável no jogo da política internacional, embora sem sentido para a religião e até mesmo incompatível com ela.

O início do fim


O sonho de Mussolini em relação à Igreja não se concretizou totalmente, mas deixou um importante legado: Os atributos e privilégios da soberania diplomática do papa. De que maneira ele os tem usado desde então?

Considerando a determinação da "mulher" em domesticar outra vez a indócil besta em sua fase liberal, tal como demonstrado nos dois grandes eventos descritos acima e que, ao meu ver, são bastante representativos dessa vil diligência, não pode haver dúvida de que a besta "está para emergir do abismo", à medida que a ferida mortal é curada.

O pacto lateranense foi apenas um passo nessa direção. Grande parte de Apocalipse 17 já é história. Devemos agora estar na iminência do aparecimento do "oitavo rei", a própria besta ressurreta em sua fase totalitária e intolerante. A boa notícia é que quando ela ressurgir "caminha para a destruição", e "nunca jamais será achada", "porque poderoso é o Senhor Deus, que a julgou" (Apocalipse 17:8, 11; 18:21, 8).

Notas e referências


1. Hans K. LaRondelle, As Profecias do Tempo do Fim. Tradução: Carlos Biagini. Ver Capítulo 30: "A Sétima Praga: A Retribuição de Babilônia - Apocalipse 17", subtítulo: "A Futura Sétima Cabeça".

2. Quanta Cura. Carta encíclica do Papa Pio IX Sobre os principais erros da época, promulgada em 8 de dezembro de 1864. Montfort Associação Cultural.

3. H.J. Schroeder, Disciplinary Decrees of the General Councils: Text, Translation, and Commentary. St. Louis, Mo. and London: B. Herder Book Co., 1937, The Twelfth General Council (1215), Fourth Lateran Council, Canon 3, p. 242 a 244.

4. Ibid., p. 236.

5. W.E.H. Lecky diz: "Que a Igreja de Roma derramou mais sangue inocente do que qualquer outra instituição que tenha existido entre a humanidade, não é questionado por nenhum protestante que tenha um conhecimento adequado da história". O autor passa então a mencionar as estimativas sobre o número de vítimas e as dolorosas penas impostas aos condenados, sem, contudo, omitir o fato de que a própria igreja protestante também perseguiu, pelo menos nas regiões onde obteve algum controle, ainda que numa escala comparativamente menor. - History of the Rise and Influence of the Spirit of Rationalism in Europe. Volume II. Third Edition. London: Longmans, Green and Co., 1866, p. 35-50. As perseguições promovidas pelas igrejas protestantes revelam que elas não foram capazes de superar a ideia romana que considerava a Igreja e o Estado como os dois braços de um mesmo governo divino na terra, no qual estavam unidos os direitos civis e religiosos.

6. Edmund Sheridan Purcell, "On Church and State, or the Relations Between the Spiritual and the Civil Powers". Em Essays on Religion and Literature. Edited by Archbishop Manning. Second Series. London: Longmans, Green, and Co., 1867, p. 418.

7. Constituição Dogmática Pastor Aeternus, do Sumo Pontífice Pio IX, 18 de julho de 1870. Para a tradução em português, servi-me do texto do Fr. Guilherme Baraúna, disponível no site Veritatis Splendor.

8. R.W. Thompson, The Footprints of the Jesuits. Cincinnati: Cranston & Curts; New York: Hunt & Eaton, 1894, p. 485 e 486.

9. An Inside View of the Vatican Council, in the speech of the Most Reverend Archbishop Kenrick, of St. Louis. Edited by Leonard Woolsey Bacon. New York: American Tract Society [1871], p. 59.

10. Ibid., p. 222 e 225.

11. Ibid., p. 229.

12. Ibid., p. 232, 234, 235, 236.

13. Henry Edward Manning, Sermons on Ecclesiastical Subjects. Volume II. American Edition. New York: The Catholic Publication Society, 1873, p. xxv-xxix.

14. Ibid., p. xix.

15. An Inside View of the Vatican Council, p. 241 e 242.

16. William Arthur, The Modern Jove; a review of the collected speeches of Pio Nono. London: Hamilton, Adams, & Co., 1873, p. 22 e 23.

17. R.W. Thompson, op. cit., p. 480.

18. Paul Von Hoensbroech, Fourteen Years a Jesuit: a record of personal experience and a criticism. Volume II. Translated from the german by Alice Zimmern. London, New York, Toronto and Melbourne: Cassell and Company, LTD., 1911, p. 430.

19. L.H. Lehmann, Behind the Dictators: a factual analysis of the relationship of Nazi-Fascism and Roman Catholicism, 1942, p. 36.

20. Samuel F.B. Morse, Foreign Conspiracy against the Liberties of the United States. Fifth Edition. New York: H.A. Chapin & Co., 1841, p. 60.

21. Philip Schaff, The Creeds of Christendom, with a history and critical notes. Volume I: The history of creeds. New York and London: Harper & Brothers, Publishers, 1919, p. 164 e 165.

22. Henry Edward Manning, op. cit., p.97 e 98.

23. Adaptado de Samuel F.B. Morse, op. cit., p. 50-52.

24. Bula Unam Sanctam, do Papa Bonifácio VIII, 18 de novembro de 1302. Montfort Associação Cultural.

25. http://www.vatican.va/news_services/press/documentazione/documents/sp_ss_scv/insigne/triregno_en.html

26. David I. Kertzer, O Papa e Mussolini: a conexão secreta entre Pio XI e a ascensão do fascismo na Europa. Rio de Janeiro: Editora Intrínseca, 2017. Arquivo Kindle, sem paginação.

27. Ibid. Ver #45 da referida encíclica.

28. L.H. Lehmann, op. cit., p. 59.

29. David I. Kertzer, op. cit.

30. Ibid.

31. Ibid.

32. "Vatican again at peace with Italy after long quarrel", San Francisco Chronicle, Vol. 134, No. 28, Tuesday, February 12, 1929. Ver Apocalipse 13:3.

33. David I. Kertzer, op. cit.

34. Ibid. A nota de rodapé traz o seguinte: "De acordo com o relato de uma revista comemorativa, o acordo foi um milagre 'produzido pela perfeita coincidência (...) entre as diretrizes da Igreja e do Estado fascista ao levantar o moral e o nível espiritual do povo. Aquilo sem dúvida não teria dado certo em um regime parlamentar'. Giuseppe Bevione, 'La portata dell'accordo fra l'Italia e il Vaticano', XX Secolo, 15 febbraio 1929, p. 7. L'Osservatore Romano, jornal do Vaticano, citado na ampla cobertura do evento em La Gazzetta del Popolo, ao anunciar o fato de que 'o regime fascista conseguira resolver a questão romana porque tinha liberado a Itália de todas as mentiras democráticas do anticlericalismo e do parlamentarismo'. 'Dopo la firma dei trattari fra la Santa Sede e l'Italia', OR, 15 febbraio 1929, p. 1."

35. L.H. Lehmann, op. cit., p. 88.


[Revisado em 13 de fevereiro de 2021]


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