Entre o "não é" e o "aparecerá"


[Revisado em 31 de julho de 2024]

A revelação mais surpreendente de Apocalipse 17 é a declaração de que a besta "está para emergir do abismo", de que ela se levantará outra vez a um domínio universal, em oposição à igreja de Deus no tempo do fim.

A expressão, "mas aparecerá" (verso 8, última parte), denota que, uma vez restaurada a sua condição primitiva, a besta empenhar-se-á ao máximo em mantê-la, por meio de uma extraordinária e poderosa união de todas as forças ideológicas e espirituais.

A intolerância que se vislumbra aqui será muito mais severa e generalizada do que aquela que vemos hoje em relação aos cristãos e outros grupos. Ela não será motivada por questões meramente ideológicas, partidárias ou políticas. Subjacente a essa intolerância está o conflito entre dogmas religiosos pretensamente cristãos e a Palavra de Deus.

Em tais condições, a lealdade a Deus e à Sua Palavra, em vez de aos homens e à tradição será provada até o limite.

Note, porém, que ao subir do abismo, a besta "caminha para a destruição", e por isso a "cabeça" que corresponde a essa nova fase existencial da besta - a sétima - "tem de durar pouco" (versos 8 a 10)!

Apesar do conflito decisivo diante de nós, a declaração do anjo chama a nossa atenção não para o drama em si, mas para a certeza de que a perseguição contra os santos durante esse período será breve, e o destino da besta, certo, final e definitivo!

Suas palavras ecoam a voz dAquele que é "o primeiro e o último, que esteve morto e tornou a viver", a fim de nos transmitir a mesma mensagem de ânimo que endereçou à igreja de Esmirna em Apocalipse 2:10:

Não temas as coisas que tens de sofrer. Eis que o diabo está para lançar em prisão alguns dentre vós, para serdes postos à prova, e tereis tribulação de dez dias. Sê fiel até à morte, e dar-te-ei a coroa da vida.

É de grande significação, portanto, que o interesse do anjo que acompanha João na visão se concentre na última das sete cabeças da besta! Durante o curto protagonismo da sétima cabeça, a própria besta revive e passa a ser identificada como "o oitavo rei, [que] procede dos sete, e caminha para a destruição" (Apocalipse 17:11).

Ora, se "procede dos sete", significa que a besta incorpora a mesma natureza e sentido de direção desses poderes mundiais consecutivos que historicamente a definiram e que a caracterizam como "o oitavo rei".

Deveis notar, contudo, que a besta revive na medida em que "emerge do abismo", segundo declaração do próprio anjo (Apocalipse 17:8), e que somente então é contada como "o oitavo".

Notai também que essas expressões empregadas pelo anjo sugerem uma espécie de paródia ou imitação de Cristo, que ressurgiu no "oitavo dia" depois de Seu descanso na tumba no sétimo dia.

Hans K. LaRondelle observa que "o contar como o 'oitavo' a sétima e final cabeça da besta indica não só que é uma besta ressuscitada, mas também alerta a igreja às demandas enganosas de um poderoso Messias falso, que imitará a morte e ressurreição de Jesus como 'o oitavo' (Apocalipse 17:11). O contraste fundamental não escapará à mente penetrante". [1]

O propósito da mulher em domesticar outra vez a besta


Uma indicação inegável de que a besta escarlate voltará a ser o que foi no passado provém da própria determinação da mulher em domá-la novamente. E como domadora com mais de mil anos de experiência, a Igreja sabe que não será bem-sucedida a menos que convença o animal de que é ela quem manda.

As declarações oficiais do papado que mencionei em minha postagem anterior não são um amontoado de palavras. Quem quer que deseje descobrir o que Roma papal representa de fato e, assim, não ser colaborador ou cúmplice de um sistema que se opõe à norma do governo do Céu necessita considerá-las seriamente.

Em primeiro lugar, porque essas declarações nos remetem ao passado da Igreja e à ordem social e política então em vigor.

Quando Pio IX expressamente condenou "que a melhor forma de governo é aquela em que não se reconheça ao poder civil a obrigação de castigar, mediante determinadas penas, os violadores da religião católica" [2], somos lembrados de Inocêncio III e do Quarto Concílio de Latrão, os quais decidiram: [3]

Canon 3 [...] As autoridades seculares, qualquer que seja o cargo que ocupem, devem ser admoestadas e induzidas e, se necessário, compelidas pela censura eclesiástica, a que, assim como desejam ser estimadas e contadas entre os fieis, para a defesa da fé devem prestar publicamente o juramento de que se esforçarão de boa fé e da melhor forma possível para exterminar nos territórios sujeitos à sua jurisdição todos os hereges apontados pela Igreja; assim, sempre que alguém tiver assumido autoridade, seja espiritual ou temporal, que seja obrigado a confirmar este decreto por meio de juramento. Mas se um governante temporal, depois de ter sido solicitado e admoestado pela Igreja, negligenciar a limpeza de seu território dessa sujeira herética, que seja excomungado pelo metropolita e pelos outros bispos da província. Se ele se recusar a dar satisfação dentro de um ano, que o assunto seja levado ao conhecimento do sumo pontífice, para que ele declare os vassalos do governante absolvidos de sua lealdade e ofereça o território para ser governado pelos católicos, que, após o extermínio dos hereges, poderão possuí-lo sem impedimentos e preservá-lo na pureza da fé….

Decretamos que aqueles que dão crédito aos ensinamentos dos hereges, bem como aqueles que os recebem, defendem e patrocinam, sejam excomungados; e declaramos firmemente que, após qualquer um deles ter sido marcado com a excomunhão, se ele deliberadamente deixar de dar satisfação dentro de um ano, que ele incorra ipso jure [por força da lei] no estigma da infâmia e que não seja admitido em cargos públicos ou deliberações, e que não participe da eleição de outros para tais cargos ou use seu direito de testemunhar em um tribunal. Que ele também seja intestável, para que não tenha o livre exercício de fazer um testamento, e que seja privado do direito de herança. Que ninguém seja instado a prestar contas a ele em qualquer assunto, mas que ele seja instado a prestar contas a outros. Se porventura for juiz, que suas decisões não tenham força, nem que qualquer causa seja levada ao seu conhecimento. Se for um advogado, que não se recorra à sua ajuda de forma alguma. Se for um notário, que os instrumentos redigidos por ele sejam considerados sem valor, pois, sendo o autor condenado, que eles tenham o mesmo destino. Em todos os casos semelhantes, ordenamos que o mesmo seja observado. Se, no entanto, ele for um clérigo, que seja deposto de todos os cargos e benefícios, para que, quanto maior a falta, mais grave seja a punição infligida.

Essas disposições foram decretadas por um concílio ecumênico que "foi, de longe, a assembleia eclesiástica mais importante da Idade Média e [marcou] o auge da vida eclesiástica e do poder papal.". [4]

Elas possuem, portanto, caráter autoritativo sobre toda a Igreja. Nenhuma autoridade reconhecida por ela jamais as revogou. E como já tivemos a oportunidade de mencionar em outras ocasiões, foram aplicadas contra os albigenses e outros grupos considerados heréticos. [5]

A segunda razão pela qual as declarações papais não são simples retórica é que elas também nos fazem olhar para o futuro, pois fundamentam a determinação ferrenha do papado de reaver seu antigo poder temporal.

Em consequência da Revolução Francesa e das transformações sociais e políticas que se seguiram, as nações deixaram de ser cristãs, isto é, não reconhecem mais o poder temporal do papado, e agora, na visão de Roma, é preciso convencê-las de que devem retornar às suas raízes para que a ordem da civilização cristã, tal como concebida pela Igreja, seja restaurada.

Roma sempre reivindicou o poder temporal e desejou governar os reis e príncipes da terra. E a ênfase da doutrina católica nisto que ela considera ser o direito divino do papa deveria servir de advertência a todo cidadão e governante sábio o suficiente para prever os seus efeitos sobre nossas liberdades, caso seja novamente reconhecida pela esfera pública.

Se o papa não exerce hoje esse direito em toda a sua extensão, não significa que abriu mão dele. Somente que não é possível exercê-lo em uma sociedade livre e democrática.

Quando João Paulo I recusou a cerimônia de coroação com a tiara papal, em agosto de 1978, ele o fez em harmonia com a ênfase do Concílio Vaticano II no papel pastoral do papado, ao invés de na sua autoridade temporal. Isso não significou, porém, que esta última foi ab-rogada ou deixou de existir.

"Os vigários de Cristo possuem o direito de excomungar reis pelo nome ou de depô-los ou de colocar reinos sob interdito", escreveu Edmund Sheridan Purcell, jornalista e biógrafo britânico, em uma obra editada pelo cardeal Manning,

No entanto, "devido ao estado alterado da cristandade, e porque agora isso não contribuiria para o bem público, o soberano pontífice se abstém de infligir essas terríveis penalidades a príncipes sacrílegos ou a povos rebeldes".

Purcell então conclui: [6]

Mas não se segue desse sábio expediente que os papas da era atual estejam destituídos desse atributo supremo de seu poder soberano sobre as nações. Em determinadas circunstâncias, o não exercício de um direito não é um argumento conclusivo quanto à sua inexistência. Escritores argumentaram e nações declararam que os papas não têm poder para depor reis, mas nenhum papa, que eu saiba, aceitou tais argumentos ou endossou tais declarações e, portanto, seguirei o que os papas disseram e fizeram em vez das opiniões de legalistas galegos ou das declarações de parlamentos heréticos.

Em vista da firme resistência e recusa taxativa do papado em abrir mão de seus direitos, seria estranho que até mesmo o mais carismático e progressista dos papas renunciasse a eles.

De fato, sempre que tiver a oportunidade, o papado não hesitará em usar seu papel pastoral para a promoção de sua ambição temporal, da mesma forma que os jesuítas não têm escrúpulos ao usar as necessidades religiosas do homem como um meio para realizar suas ambições políticas.

E com a energia incansável e a astúcia de quem conhece a si mesma e o caminho que pretende percorrer, Roma tem se servido de todos os artifícios possíveis para insuflar naquela besta indócil, símbolo das nações modernas, uma forma de vida mais suscetível aos seus comandos e, assim, retomar o controle total que um dia teve sobre ela.

Uma Roma infalível quer governar o mundo


Um sinal claro nessa direção, como o primeiro estalar de um chicote para intimidar uma fera que não quer ser domada, veio na forma de um dogma controverso que reconheceu o papa como infalível. Esse dogma foi proclamado durante o Concílio Vaticano I, no dia 18 de julho de 1870, portanto em meio à perda dos últimos vestígios do poder temporal do papado.

O Capítulo III, intitulado "Do Poder e da Natureza do Primado do Pontífice Romano", dispõe que "a Santa Sé Apostólica e o Pontífice Romano têm [e não "pretendem ter"] o primado sobre todo o mundo [e não "sobre um território em particular"], e que o mesmo Pontífice Romano é [e não "presume ser"] o sucessor de S. Pedro, o príncipe dos Apóstolos, o verdadeiro vigário de Cristo", etc.

E o Capítulo IV: "Do Magistério Infalível do Romano Pontífice", proclama: [7]

Por isso Nós, apegando-nos à Tradição recebida desde o início da fé cristã, para a glória de Deus, nosso Salvador, para exaltação da religião católica, e para a salvação dos povos cristãos, com a aprovação do Sagrado Concílio, ensinamos e definimos como dogma divinamente revelado que o Romano Pontífice, quando fala ex cathedra, isto é, quando, no desempenho do ministério de pastor e doutor de todos os cristãos, define com sua suprema autoridade apostólica alguma doutrina referente à fé e à moral para toda a Igreja, em virtude da assistência divina prometida a ele na pessoa de São Pedro, goza daquela infalibilidade com a qual Cristo quis munir a sua Igreja quando define alguma doutrina sobre a fé e a moral; e que, portanto, tais declarações do Romano Pontífice são por si mesmas, e não apenas em virtude do consenso da Igreja, irreformáveis.

Vede que o que se ensina e se define aqui não está aberto à objeção da consciência, nem da parte dos fiéis cristãos que estão obrigados a observá-lo, nem da autoridade civil cujo dever é garantir a liberdade da Igreja de fazê-lo.

Considerando a extensão do primado e a natureza da autoridade papal reconhecidas e definidas pelo papa e pelo Concílio, não é de surpreender que a pretensa infalibilidade do pontífice romano nas definições ex cathedra sobre a fé e a moral fosse proclamada como "dogma divinamente revelado". Ambas se complementam e sua linguagem não dá margem à incerteza.

Como R.W. Thompson observou: [8]

Não é necessário, para uma compreensão correta dessa extraordinária proclamação oficial, que sua linguagem seja examinada de perto. Trata-se de uma afirmação enfática e óbvia da completa jurisdição pontifícia sobre as nações e tudo o que estiver relacionado com suas medidas de política interna que pertença aos interesses e à fé da Igreja, ou que imponha a menor limitação aos poderes e prerrogativas dos papas. Ela reduz todos os povos a uma condição de absoluta inferioridade e reconhece o papa como árbitro comum de todos os assuntos humanos, não sendo responsável perante nenhum tribunal humano. Seu principal objetivo era unir a Igreja e o Estado tão intimamente que jamais poderiam ser separados, de modo a tornar impossível qualquer forma de governo popular, como o dos Estados Unidos.

Avaliar, porém, o peso desse decreto conciliar somente pelas palavras ainda parece insuficiente para apreender todo o seu significado real. Convém expor suas implicações por meio da reação que provocou, tanto dentro como fora da Igreja.

No púlpito, uma das vozes discordantes mais eloquentes a propósito do novo dogma foi a do padre Hyacinthe.

A despeito de seu prestígio e de sua devoção ao papa, Hyacinthe não hesitou em protestar "contra as doutrinas e práticas que se dizem romanas, mas não são cristãs", "contra o divórcio, tão ímpio quanto insano, que os homens estão empenhados a realizar entre a igreja... e a sociedade do século XIX" e, "acima de tudo, contra a perversão sacrílega do evangelho do próprio Filho de Deus, cujo espírito e letra são igualmente pisoteados pelo farisaísmo da nova lei.". [9]

Em uma carta dirigida aos bispos católicos, Hyacinthe se referiu à infalibilidade papal "como uma doutrina desconhecida da antiguidade eclesiástica e tendo seus fundamentos apenas em documentos apócrifos sobre os quais a crítica se pronunciou além de qualquer apelo". Mais adiante, ele complementou: [10]

É essa a política do poder temporal e do braço secular que faz da posse de certas províncias na Itália e de certos privilégios na Europa a condição essencial do império das almas, o pivô de toda a estrutura espiritual? Uma política tão fatal para a Igreja e para o mundo quanto aquela Revolução que ela apoia, mesmo quando a está contestando! Uma política que a impotente e cega persistência deseja agora exaltar à dignidade de um dogma!

Aos protestos vigorosos do padre Hyacinthe contra o novo dogma, uniu-se a voz não menos ativa do teólogo e sacerdote alemão Ignaz von Döllinger. Escrevendo ao seu arcebispo em resposta à convocação para renunciar a seu posicionamento anti-infalibilista, o Dr. Döllinger apresentou uma série de argumentos em sua defesa, concluindo com este: [11]

Finalmente, como cidadão, devo rejeitar essa doutrina; porque, por sua pretensão de trazer estados e monarcas e toda a ordem política à sujeição ao poder papal, e pelas isenções da lei que reivindica para o clero, ela prepara o caminho para discórdias infinitamente maliciosas entre o estado e a igreja, entre o clero e os leigos. Pois não posso esconder de mim mesmo que essa doutrina, em consequência da qual o antigo império alemão foi levado à ruína, se uma vez se tornasse dominante na parte católica da nação alemã, implantaria também no império recém-constituído os germes de uma desordem incurável.

Outra carta, desta vez endereçada aos bispos, foi publicada em junho de 1871 e assinada não somente por Döllinger, mas por várias personalidades eminentes da igreja, do estado, da literatura e da ciência. Desta carta, cito os seguintes extratos (notai, por favor, as palavras):  [12]

Até agora, nunca fez parte da doutrina da igreja ou da fé católica que todo cristão devesse reconhecer no papa um mestre e soberano absoluto a quem ele está direta e imediatamente sujeito e a cujos enviados e legados ele deve obediência incondicional em tudo o que diz respeito à fé religiosa e à moralidade prática. É igualmente notório que, até os dias atuais, nunca foi o ensinamento da igreja que o dom da infalibilidade fosse concedido a um homem - isto é, o papa, por enquanto - nas definições que encabeçam toda a igreja sobre pontos de fé e sobre direitos e deveres humanos. Pelo contrário, essas proposições, embora muito favorecidas em Roma e incentivadas por todos os meios à disposição de um poder dominante, até agora não passaram de opiniões escolásticas, que os teólogos mais renomados tiveram a liberdade de atacar e repudiar sem se expor à menor censura....

Pelos novos decretos, o papa não apenas é investido de domínio sobre todo o campo da moralidade, mas determina - ainda por si só e com a autoridade de um mestre infalível - o que pertence e o que não pertence a esse domínio, quais princípios são de obrigação divina e também qual interpretação e aplicação é melhor dar a eles em casos particulares. No exercício dessa autoridade, o papa não é obrigado a receber nenhuma aprovação além da sua; ele não deve prestar contas a ninguém na Terra e ninguém pode se opor a ele. Todos, príncipes ou camponeses, bispos ou leigos, são obrigados a se submeter incondicionalmente e a obedecer fielmente a todas as suas ordens. Se tal poder não pode ser chamado de ilimitado e despótico, então não há  poder ilimitado e despótico no mundo, e nunca haverá.

Persistimos em nossa profunda convicção de que os decretos do Vaticano constituem um sério perigo para o estado e para a sociedade; que eles são incompatíveis com as leis e instituições dos estados modernos e que, ao aceitá-los, estaríamos entrando em um conflito irreconciliável com nossos deveres e juramentos políticos. Em vão os bispos se esforçam, seja fingindo ignorá-las, seja tentando interpretá-las à sua própria maneira, para destruir o fato incontestável da existência de bulas e decisões pontifícias que submetem todos os poderes à vontade da sé apostólica e que condenam da maneira mais absoluta as leis mais indispensáveis à existência da sociedade moderna....

Quando comparamos (o que os bispos alemães negligenciaram fazer) as condenações pronunciadas no Syllabus (que agora se tornou um decreto investido da infalibilidade papal), a solene condenação pelo papa da constituição austríaca, as publicações simultâneas dos jesuítas de Laach, Viena e Roma, que estão muito mais bem informados do que os bispos alemães sobre as intenções da Cúria Romana - quando comparamos tudo isso com os decretos do Vaticano, devemos estar cegos para não ver um plano habilmente elaborado em prol da monarquia universal dos papas. Nossos governos, nossas leis e nossas constituições políticas, tudo o que diz respeito à moralidade, as ações de cada indivíduo - tudo, a partir de agora, deve ser submetido à Cúria Romana, seus órgãos e seus legados, fixos ou itinerantes, bispos ou jesuítas. Único legislador em questões de fé, disciplina e moral, juiz supremo, soberano e executor inimputável de suas próprias sentenças, o papa, em virtude da nova doutrina, possui uma plenitude de poder tão grande que a imaginação mais ardente não pode conceber nada maior. Os bispos alemães poderiam muito bem levar a sério as palavras de ouro pronunciadas em Munique pelo franciscano Occam em uma situação análoga à nossa: 'Se o bispo de Roma possuísse uma plenitude de poder como a que os papas falsamente reivindicam, e como muitos, por engano ou no espírito de adulação, concedem a eles, todos os homens seriam escravos; e isso é claramente contrário à liberdade da lei do evangelho'.

A esses dois testemunhos internos devo acrescentar um externo. Ele expressa os temores de um príncipe alemão quanto ao Concílio então iminente, e foi citado por ninguém menos que o cardeal Manning (ele mesmo um ferrenho partidário da infalibilidade papal), naturalmente por considerar esse testemunho a prova de uma conspiração deliberada contra o Concílio.

Trata-se de uma carta do príncipe Hohenlohe, ministro dos Negócios Estrangeiros da Baviera, endereçada aos governos europeus, apelando-lhes para que se unissem e protestassem contra as pretensões de Roma mediante o Concílio para alterar as relações entre igreja e estado tal como estabelecidas pela civilização moderna. Em virtude de seu teor, cito-a na íntegra: [13]

Monsieur, parece ser certo que o Concílio convocado por Sua Santidade o Papa Pio IX se reunirá no próximo mês de dezembro. O número de prelados de todas as partes do mundo que comparecerão será muito maior do que em qualquer outro Concílio anterior. Esse fato, por si só, ajudará a dar aos seus decretos uma grande autoridade, como a que pertence a um Concílio Ecumênico. Levando em consideração essa circunstância, parece-me indispensável que todos os governos dediquem atenção a ele; e é com esse objetivo que estou prestes a lhe dirigir algumas observações.

É improvável que o Concílio se ocupe apenas com doutrinas puramente teológicas; não existe, no momento, nenhum problema dessa natureza que exija uma solução conciliar. A única tese dogmática que Roma gostaria que fosse decidida pelo Concílio, e que os jesuítas na Itália e na Alemanha estão fomentando agora, é a questão da infalibilidade do Papa. É evidente que essa pretensão, elevada a um dogma, iria muito além da esfera puramente espiritual e se tornaria uma questão eminentemente política, elevando o poder do Soberano Pontífice, mesmo em questões temporais, sobre todos os príncipes e povos da cristandade. Essa doutrina, portanto, é de tal natureza que deve despertar a atenção de todos os governos que administram os súditos católicos.

Há uma circunstância que aumenta ainda mais a gravidade da situação. Soube que, entre as comissões delegadas para preparar assuntos que mais tarde serão submetidos às deliberações do Concílio, há uma que se ocupa apenas de questões mistas, afetando igualmente o direito internacional, a política e o direito canônico. Todos esses preparativos justificam nossa crença de que é intenção fixa da Santa Sé, ou pelo menos de um partido atualmente poderoso em Roma, promulgar por meio do Concílio uma série de decretos sobre questões que são mais políticas do que eclesiásticas. Acrescente-se a isso que a Civiltà Cattolica - um periódico administrado pelos jesuítas e que tem um caráter oficial por meio do briefing do Santo Padre - acaba de exigir que o Concílio transforme em decretos conciliares as condenações do Syllabus, publicadas em 8 de dezembro de 1864. Ora, sendo os artigos desta encíclica dirigidos contra princípios que são a base da vida pública moderna, tal como a encontramos em todas as nações civilizadas, segue-se que os governos estão sob a necessidade de perguntar a si mesmos se não é seu dever convidar a séria consideração, tanto dos Bispos que são seus súditos, quanto do futuro Concílio, para as tristes consequências de uma reviravolta tão premeditada e sistemática das atuais relações entre a Igreja e o Estado. De fato, não se pode negar que é uma questão de urgência que os governos se unam, com o propósito de protestar, seja por meio de seus agentes em Roma, ou de alguma outra forma, contra todas as decisões que o Concílio possa promulgar sem a concordância dos representantes do poder secular, em questões que são ao mesmo tempo de natureza política e religiosa.

Achei que a iniciativa em um assunto tão importante deveria ser tomada por uma das grandes potências; mas, como ainda não recebi nenhuma comunicação sobre esse assunto, achei necessário buscar um entendimento mútuo que proteja nossos interesses comuns, e isso sem demora, visto que o intervalo entre este momento e a reunião do Concílio é tão curto. Portanto, desejo que V. Exa. submeta esse assunto ao governo do qual é credenciado e verifique as opiniões e intenções do tribunal de ______ com relação ao curso que ele considera aconselhável seguir. V. Exa. submeterá à aprovação de M. ______ a questão de saber se não seria aconselhável fixar de antemão as medidas a serem tomadas, se não conjuntamente, pelo menos de forma idêntica, a fim de esclarecer a Santa Sé sobre a atitude que os governos do continente assumirão em relação ao Concílio Ecumênico; ou se conferências compostas por representantes dos Estados envolvidos não seriam consideradas como o melhor meio de levar a um entendimento entre seus governos.

Autorizo V. Sa. a deixar uma cópia deste despacho com o Ministro das Relações Exteriores em ______, se ele desejar; e desejo que V. Exa. me informe o mais cedo possível sobre a maneira pela qual esta comunicação foi recebida.

Respeitosamente, &c.
Hohenlohe.
Munique, 9 de abril de 1869.

O "poder supremo da Igreja de Deus"


A despeito destas vozes proativas, e de outras que a elas se uniram, a maré das circunstâncias fluiu com força irresistível em direção a um desfecho diferente, revelando, mais uma vez, o verdadeiro caráter de Roma.

Manning descreveu em um tom franco e dramático a importância da decisão do Concílio em favor do novo dogma: [14]

A situação da Igreja e do mundo exigia um remédio mais potente do que a legislação humana. As aberrações intelectuais e morais dos últimos trezentos anos haviam chegado a um ponto além do qual só haveria ruína para a ordem civil das nações. O poder supremo da Igreja de Deus era necessário para lidar com os males do mundo cristão. Portanto, foi convocado um Concílio Ecumênico. Os quatro ventos do céu foram retidos até que o Concílio estivesse reunido e tivesse realizado seu trabalho mais importante.

Assim, a despeito dos protestos, a Igreja não podia agir em desacordo com a sua natureza e, em lugar de um mea culpa, o que se viu foi a reafirmação da narrativa que tornou o dogma possível e que se traduziu em imprecações desferidas como um raio contra os membros do partido liberal católico.

Os padres foram suspensos ou depostos, os diretores de escola foram destituídos de seus cargos, os professores foram estigmatizados como heréticos e os alunos, advertidos contra seus ensinamentos. Todas as combinações de influências foram utilizadas para tornar a simpatia pelo odiado partido custosa e perigosa.

O padre Hyacinthe, em um discurso numa conferência católica em Munique, em 23 de setembro de 1871, declarou: [15]

Para o sacerdote, é a pobreza, a desonra sob a proibição do interdito e o raio do anátema, a perda desse ministério do altar e das almas para as quais, na juventude, ele tão alegremente se ofereceu em sacrifício. Para o leigo, trata-se de um dano ao bom nome e aos bens que não são apenas seus, mas que ele detém em conjunto com sua esposa e como um fundo para seus filhos. Se ele ocupa um cargo, compromete sua promoção em uma administração ultramontana. Se ele é um delegado, arrisca sua eleição; um médico ou advogado, sua prática; um comerciante, seu negócio; um cidadão em qualquer relação, a estima de um grande número de seus concidadãos. Devo mencionar, para concluir, algo ainda mais doloroso? Ele põe em risco a paz de sua lareira e a santidade de sua mortalha e de seu túmulo!

No fim, a grande maioria daqueles que se opuseram ao dogma da infalibilidade foi silenciada e se submeteu com resignação. E se Pio IX não podia aplicar medidas similares contra os estados que manifestaram apreensão semelhante face ao novo dogma, ele podia, ao menos, deixar claro seu descontentamento.

Como quando, cinco dias depois de ter sido presenteado com uma esplêndida tiara (ver imagem abaixo) por uma delegação belga em 18 de junho de 1871, falando a uma delegação de Viterbo, capital do patrimônio de São Pedro, contou como suas posses temporais surgiram, acrescentando não obstante: [16]

Agora, aqueles que deveriam guardar o Patrimônio de São Pedro o retiram. É verdade que não posso, como São Pedro, lançar certos trovões que reduzem os corpos a cinzas, mas posso, no entanto, lançar os trovões que reduzem as almas a cinzas; e eu o fiz, excomungando todos aqueles que perpetraram e participaram da espoliação sacrílega.


Tiara papal que Pio IX recebeu da Bélgica em 1871.
A inscrição completa diz: "Infalível Vigário de Jesus Cristo",
"Supremo Governador do Mundo", "Pai das Nações e dos Reis".


O tom das palavras de Pio IX resume bem o estado de espírito que definiu a questão romana ao longo dos cinquenta e oito anos seguintes, durante o tempo em que a ferida na Igreja permaneceu aberta até que recebesse o primeiro lenitivo, como veremos a seguir.

E esse estado de coisas certamente motivou a elaboração de uma constituição dogmática que reafirmasse a jurisdição e a natureza do poder papal além de qualquer dúvida.

O dogma que proclama a infalibilidade do papa foi elaborado e emitido sob a supervisão direta de Pio IX, como aqueles preparados por Inocêncio III para o Concílio de Latrão em 1215, reunido para condenar as pretensas heresias dos albigenses, reforçar o poder temporal do papa, encobrir suas usurpações e dar sanção papal às terríveis perseguições da Inquisição. Nenhuma alteração foi permitida, e a tentativa feita para eliminar o anátema acabou frustrada, visto que isso significaria renunciar ao poder coercitivo. [17]

Mas Pio IX não agiu sozinho. Lembre-se das menções feitas pelo Dr. Döllinger e pelo príncipe Hohenlohe sobre a atuação dos jesuítas em favor da aprovação do dogma da infalibilidade papal.

O papa foi mais exitoso do que qualquer um de seus predecessores porque pôde lucrar com a aliança com os jesuítas e garantir o triunfo dos ultramontanos. De modo que o dogma acabou refletindo as ambições não só do papa, mas também de uma organização cujo poder e influência faria qualquer sociedade secreta parecer um clube de escoteiros.

O conde Von Hoensbroech [18] observou que

A Ordem dos Jesuítas... se apresenta diante de nós como a personificação de um sistema que visa ao domínio político temporal por meios políticos temporais, embelezado pela religião, que atribui ao líder da religião católica - o Papa Romano - o papel de senhor temporal e, sob a proteção do Papa Rei, e usando-o como instrumento, deseja alcançar o domínio sobre o mundo inteiro.

E não importa quais meios os jesuítas venham a utilizar para satisfazer esse objetivo. Como L.H. Lehmann lembra: [19]

A história é testemunha do fato inegável de que a Ordem dos Jesuítas, fundada em 1540 com o propósito expresso de contrariar a Reforma, tem se destacado na arte da duplicidade maquiavélica. É uma organização fundada em linhas militares para lutar pela restauração política do papado romano, e é a única ordem da Igreja Católica que vincula seus membros por meio de juramento especial para esse fim. Ela usa as necessidades religiosas profundamente arraigadas do coração humano para executar um plano que é claramente político e reacionário do ponto de vista das questões sociais.

O célebre inventor Samuel Morse [20] se referiu aos jesuítas como

uma ordem eclesiástica proverbial em todo o mundo pela astúcia, duplicidade e total falta de princípios morais; uma ordem tão hábil em todas as artes do engano que, mesmo em países católicos, na própria Itália, tornou-se intolerável e o povo exigiu sua supressão.

Ainda teremos a oportunidade de falar algo mais sobre essa ordem nefasta.

Os decretos da jurisdição universal do papa e de sua infalibilidade, promovidos pelos jesuítas com extremo zelo e eficiência, reavivaram, pois, as reivindicações blasfemas e intolerantes da Igreja medieval de forma agressiva e insolente, com consequências que vão muito além de seu tempo. Como Philip Schaff observou: [21]

A ausência de pecado da Virgem Maria e a infalibilidade pessoal do papa são os dogmas característicos do romanismo moderno, os dois dogmas de teste que devem decidir o destino final desse sistema. Ambos foram promulgados pelo mesmo papa e ambos refletem fielmente seu caráter….

... mas o dogma da infalibilidade papal, que envolve uma questão de poder absoluto, definiu uma época na história do romanismo e criou a maior comoção e uma nova secessão. Ele é, em sua própria natureza, o mais fundamental e mais abrangente de todos os dogmas. Contém todo o sistema em uma casca de noz. Constitui uma nova regra de fé. É o artigo da Igreja permanente ou cadente. É o antípoda direto do princípio protestante da supremacia absoluta e da infalibilidade das Escrituras Sagradas. Ele estabelece um oráculo divino perpétuo no Vaticano. Todo católico poderá dizer de agora em diante: 'Eu creio - não porque Cristo, ou a Bíblia, ou a Igreja diz, mas - porque o Papa infalível assim declarou e ordenou'.

Admitindo esse dogma, admitimos não apenas todo o corpo de doutrinas contidas nos padrões tridentinos, mas todas as bulas papais oficiais, incluindo as monstruosidades medievais do Syllabus (1864), a condenação do jansenismo, a bula 'Unam Sanctam' de Bonifácio VIII. (1302), que, sob pena de condenação, reivindica para o Papa a espada dupla, tanto secular quanto espiritual, sobre todo o mundo cristão, e o poder de depor príncipes e absolver súditos de seu juramento de fidelidade a eles. O passado está irreversivelmente estabelecido e, em todas as futuras controvérsias sobre fé e moral, devemos olhar para o mesmo tribunal infalível do Vaticano. Até mesmo os Concílios Ecumênicos serão substituídos a partir de agora e seriam um mero desperdício de tempo e energia.

A estas considerações do historiador protestante, convém acrescentar as observações bastante francas do cardeal Manning a propósito do Syllabus, que aqui se expressa como na pessoa do papa: [22]

'... Vocês dizem que não tenho autoridade sobre o mundo cristão; que não sou o Vigário do Bom Pastor; que não sou o intérprete supremo da fé cristã: Eu sou tudo isso. Vocês me pedem para abdicar, para renunciar à minha autoridade suprema. Vocês me dizem que devo submeter-me ao poder civil; que sou súdito do rei da Itália e que dele devo receber instruções sobre a maneira como devo exercer meu poder supremo. Eu digo que estou livre de toda sujeição civil; que meu Senhor não me fez súdito de ninguém na Terra, seja rei ou não; que, por direito Dele, sou soberano.

'Não reconheço nenhum superior civil; não sou súdito de nenhum príncipe; e pretendo mais do que isso: Pretendo ser o juiz supremo da Terra e diretor da consciência dos homens, do camponês que lavra o campo, do príncipe que se senta no trono, da família que vive à sombra da privacidade e da legislatura que faz leis para os reinos. Eu sou o único e último juiz supremo na Terra do que é certo e errado. O progresso de vocês significa o afastamento da civilização cristã; nesse caminho vocês podem ter muitos companheiros, mas vocês não me encontrarão entre eles.'


Moeda cunhada durante o pontificado de Júlio III (1550-1555).
No verso, a inscrição em latim de Isaías 60:12:
GENS ET / REGNVM / QVOD NON / SERVIERET / TIBI / PERIBIT,
("A nação e o reino que não te servirem perecerão").
O texto se refere a Deus, porém, considerando a pretensa jurisdição
universal do papado, não seria surpresa se a inscrição
se referisse ao próprio papa.

Medalha papal comemorativa do segundo ano do pontificado de
Leão XIII (1879), portanto, cerca de nove anos depois do decreto
da infalibilidade papal promulgado por Pio IX.
Notai no verso a mesma inscrição em latim de Isaías 60:12,
mas agora com uma mudança explícita que não dá margem à dúvida:
 GENS ET REGNVM QVOD NON SERVIERIT MIHI PERIBIT,
"A nação e o reino que não me servirem perecerão".


Em vista de tudo isso, devemos perguntar, a exemplo do já citado Samuel Morse, sobre o princípio fundamental de um governo, princípio que define seu caráter e a qualidade de vida de seu povo:

De quem deriva a autoridade para governar?

A princípio, Roma e os Estados Unidos concordarão: Ela deriva de Deus. A discordância, porém, se manifesta nas respostas à pergunta seguinte:

A quem na terra essa autoridade é delegada?

Roma responde: Ao Papa, o chefe supremo da Igreja Católica, que afirma ser o "Vice Regente de Deus", "supremo sobre todos os mortais"; "sobre todos os imperadores, reis, príncipes, potentados e povo"; "Rei dos reis e Senhor dos senhores"; "divinamente nomeado administrador de castigos espirituais e temporais"; "munido com poder para depor imperadores e reis, e absolver os súditos de seu juramento de lealdade"; "de sua decisão não há apelação"; "ele não responde a ninguém na terra"; "ele não é julgado por ninguém, senão por Deus".

Os Estados Unidos respondem: Ao povo, em quem reside o poder soberano - "Nós, o povo, ordenamos, estabelecemos, concedemos", etc.

Um princípio reconhece a necessidade de subserviência do povo, a absoluta dependência que se espera de um súdito, a submissão passiva aos comandos de quem governa, sem questionamento ou crítica. O governante é mestre, o povo é escravo.

O outro princípio sustenta a supremacia do povo, a igualdade de direitos e poderes do cidadão, e a submissão às leis que emanam do próprio povo; o governante é um funcionário público, que recebe salários do povo para cumprir sua função segundo a vontade do povo. O governante é servo, o povo é mestre. [23]

Agora podeis ver distintamente por que Roma jamais se conformará a este último princípio, por que ela permanecerá, ainda que veladamente, inimiga da liberdade e dos demais direitos constitucionais.

Porque o "direito divino" confere ao papa, e somente a ele, a "primazia da jurisdição universal e a plenitude do poder", de modo que o princípio "todo poder emana do povo" é não só incompatível, mas, sobretudo, "um erro pernicioso" do qual é preciso se livrar.

Que harmonia, pois, pode haver entre esses dois princípios? Que entendimento ou compromisso?

Seria razoável que os estados modernos proclamassem o Syllabus ou reconhecessem os códigos canônicos da Igreja, ou a infalibilidade do papa e seu direito de soberania sobre todos os governos?
Deveriam eles reconhecer a bula de Bonifácio VIII, agora infalível, segundo a qual "a autoridade temporal deve ser submissa à autoridade espiritual" e, assim, fazer cumprir seu decreto de "que é absolutamente necessário à salvação de toda a criatura humana estar sujeita ao romano pontífice"? [24]

Somente nestas circunstâncias o papado se reconciliaria plenamente com a sociedade civil. Somente então o papa concederia sua bênção ao mundo, porque, na prática, não haveria na terra senão uma só Igreja, a Católica, e um só pastor, o papa, com seu triregnum, símbolo de seu tríplice poder: "o pai dos reis, governador do mundo e Vigário de Cristo". [25]

Contudo, em cumprimento à profecia, este é o caminho que os estados modernos começaram a trilhar desde que passaram a ver Roma com outros olhos.

Esqueceram-se de que as prerrogativas que o papado reclama unicamente para si fazem dele o mais proeminente jogador no complicado xadrez geopolítico mundial, ou, para usar a linguagem de Malachi Martin em As Chaves deste Sangue ao se referir a João Paulo II e à agenda para a nova ordem mundial, mais que um gigante geopolítico, o papado "era e continua a ser o sereno e confiante Servo do Grande Plano".

O fim da questão romana (ou Roma domesticando o estado)


Até aqui, o dogma da infalibilidade papal. Devemos agora mencionar outro sinal claro de que a besta "está para emergir do abismo"; um evento, sem dúvida, de resultados mais abrangentes, que não se limitou à proclamação de um dogma, mas na restauração, ainda que inacabada, de suas pretensões.

Ora, apesar do mal-estar que o dogma de Pio IX provocou dentro e fora da Igreja, Roma se viu forçada a manter-se relativamente na defensiva em relação ao espírito liberal democrático, diante do qual ela pouco podia fazer para tornar o poder da autoridade a autoridade do poder, como na Idade Média.

A Igreja Católica só poderia retomar a ofensiva se um regime baseado nas instituições liberais fosse substituído por um regime autoritário, centralizado e hierárquico, semelhante ao de Roma.

Pois um sistema religioso autoritário não pode exercer plenamente as prerrogativas que reclama sem o auxílio de um estado autoritário, assim como o segundo não pode funcionar adequadamente sem a ajuda do primeiro.

Roma sabe que não pode ser fiel a si mesma sem expor sua ambição política, da mesma forma que um gato não pode pegar um peixe sem molhar as patas. A oportunidade surgiu - ou melhor, foi concebida pela Igreja por meio dos jesuítas - com a ascensão do fascismo.

Assim, não surpreende que o papado, na pessoa do então papa Pio XI, tenha se aliado ao estado fascista, visto que ambos eram poderes rigidamente hierárquicos, possuíam a mesma natureza autoritária e intolerante, e lutavam contra os mesmos inimigos.

Sobre os inimigos, aliás, David Kertzer observa: [26]

O papa viu em Mussolini algo que lhe agradou. Apesar de todas as diferenças, os dois homens compartilhavam valores importantes: nenhum dos dois tinha qualquer simpatia pela democracia parlamentar; tampouco acreditavam na liberdade de expressão ou de associação.

Na primeira encíclica de sua autoria, Ubi Arcano, promulgada em 23 de dezembro de 1922, Pio XI estabeleceu as metas de seu papado. Entre outras coisas, advertiu que a noção de que a sociedade avançava ao se afastar da Igreja era equivocada, ressaltava a importância da obediência à autoridade apropriada e adotava o programa de Pio X de combate ao "modernismo". Além disso, reforçou sua visão medieval ao depreciar a recém-formada Liga das Nações: [27]

Nenhuma instituição meramente humana de hoje poderá ter o mesmo êxito em conceber um conjunto de leis internacionais em harmonia com as condições mundiais que a Idade Média teve na posse da verdadeira Liga das Nações, o Cristianismo.
 
Esse é o projeto de Roma expresso pelo seu chefe supremo. A criação de uma ordem social que atenda ao bem comum é uma prerrogativa da Igreja, e não de qualquer "instituição meramente humana". Como na sociedade medieval, trata-se de uma ordem social em que a Igreja dita as regras e na qual a liberdade garantida nas constituições liberais dos estados democráticos não pode existir.

O leitor não deve se deixar enganar. Mesmo se tiver que recorrer à liberdade de expressão e à tolerância religiosa para esse fim, Roma o fará sem titubear, como de fato tem feito, enganando, assim, a muitos. Uma vez, porém, que esses direitos fundamentais tenham servido para ajudá-la na obtenção do poder que ela reclama, a verdadeira natureza autoritária de Roma será novamente conhecida.

Diante da grave ameaça que o estado democrático de direito representa à sua autoridade, fazia sentido que as ações de Roma não se restringissem a protestos moderados ou cartas encíclicas, por mais contundentes que estas últimas fossem. Demandava-se uma ação mais concreta, que só poderia ser realizada com a ajuda de um regime autoritário, como o fascismo.

Pois, como disse Gonzague de Reynold, fervoroso reformador católico jesuíta, o novo "regime cristão" que surgirá como resultado dessa desejada reconstrução católica da ordem social terá de ser fascista, uma vez que, como ele diz, "o fascismo tem sido a única tentativa bem-sucedida de criar um novo regime". [28]

Mussolini não ignorava as ambições da Igreja nem tampouco o poder de influência que emana do trono papal, os quais imaginava reverter em seu próprio benefício. Ele manifestou essa percepção antes mesmo de assumir o poder, em um discurso no parlamento que se tornaria memorável.

Centenas de milhões de católicos do mundo inteiro consideravam Roma seu lar espiritual, disse ele. Essa era uma fonte de poder que a Itália não podia ignorar. O fascismo, afirmou, para espanto de muitos que o conheciam, ajudaria a promover a restauração da sociedade cristã. Construiria um estado católico apropriado para uma nação católica. [29]

Já como primeiro-ministro, Mussolini cumulava a Santa Sé de dinheiro e privilégios. Forçou a aprovação de uma nova lei que permitia à polícia demitir qualquer editor cujo jornal falasse mal do pontífice ou da Igreja. Cedeu ao pedido do Vaticano de que só livros aprovados pela Igreja fossem usados para ensinar religião nas escolas.

Concordou em fechar salões de jogos. Conferiu reconhecimento estatal à Universidade Católica de Milão, anunciou sua oposição ao divórcio e tomou providências para salvar o Banco de Roma, estreitamente ligado ao Vaticano e que estava à beira da falência. Os crucifixos voltaram às salas de aula, e os feriados religiosos foram incorporados ao calendário civil. Mussolini também contribuiu com generosos fundos para reconstruir igrejas arruinadas durante a guerra. [30]

As medidas em favor da Igreja continuaram. Uma nova lista de feriados oficiais incluía vários dias santos católicos que o estado jamais reconhecera. Mussolini também adotou suas primeiras medidas contra organizações protestantes, sabendo que, com isso, agradaria ao papa.

Seminaristas católicos foram isentados do serviço militar, e três semanas antes da votação [na nova eleição nacional, em 1924] Mussolini aumentou espetacularmente os pagamentos do governo aos bispos e padres da Itália, para grande regozijo deles. [31]

Tudo isso pavimentou o caminho para um acordo histórico entre o governo da Itália e a Santa Sé que poria um fim à embaraçosa questão romana e consolidaria o apoio da Igreja ao regime de Mussolini. Mais tarde, em sua edição de 12 de fevereiro de 1929, o San Francisco Chronicle descreveria com palavras proféticas esse acordo "como a cura de uma ferida aberta desde 1870". [32]

O teor do futuro acordo transpareceu na reação entusiasmada de Mussolini a uma carta de Pio XI endereçada ao seu secretário de estado em fevereiro de 1926, a qual, conforme ele disse ao seu ministro da Justiça e da Religião, era "de importância capital". Tendo se livrado dos "preconceitos do liberalismo", explicou o Duce, o regime fascista "repudiaria tanto o princípio do agnosticismo religioso quanto o princípio da separação entre igreja e estado". [33]

Três anos depois, em 11 de fevereiro de 1929, o Palácio Lateranense, um anexo da Basílica de São João Latrão que durante mil anos fora a sede do trono papal desde que o imperador Constantino deu aos papas seu próprio palácio neste sítio, testemunhou a assinatura do documento que dava origem ao estado soberano do Vaticano, com seus 440 mil metros quadrados.


Medalha comemorativa do Tratado de Latrão de 1929.
Notai, na face oposta, a Igreja simbolizada na figura
de Pedro com as chaves, sentado sobre o globo terrestre,
com a Cidade do Vaticano como sua capital,
demonstrando que a ambição de Roma não se restringe
a um minúsculo território.


O tratado, assinado por Mussolini e pelo cardeal Gasparri, em nome do rei Victor Emmanuel III e do papa Pio XI, restabeleceu o poder político do Vaticano, restaurando a soberania civil do papa como monarca, que se perdera quando Roma, o último dos estados pontifícios, foi anexada ao Reino da Itália em 1870. Desde então, os papas haviam permanecido como prisioneiros voluntários no Vaticano.

Por favor, notai novamente que a assinatura de semelhante acordo nunca teria sido possível sob um regime democrático.

Como Kertzer observa, citando um dos principais historiadores da Igreja na Itália, apesar do estabelecimento do governo italiano no século XIX - com seus compromissos de separação entre clero e estado e de democracia liberal, os papas jamais haviam abandonado a crença numa sociedade italiana hierárquica e autoritária, baseada em princípios da Igreja. Depois de anos nos quais esses sonhos de retorno à antiga autoridade do clero pareciam irreais, a aparição do fascismo trouxe uma nova esperança.

Em outra parte, o autor acrescenta: [34]

Jornais em todo o país, incluindo o diário do Vaticano, martelaram no tema de que a histórica assinatura jamais teria acontecido se a Itália ainda estivesse sob um governo democrático. Só Mussolini e o fascismo haviam tornado o acordo possível.

Lehmann, um contemporâneo dos acontecimentos, observou: [35]
 
O povo italiano é essencialmente democrático e de mentalidade liberal. Portanto, Mussolini levou muitos anos para superar o socialismo e o liberalismo. Foi só então que o palco dessa comédia política foi finalmente montado para a aparição do dramaturgo diante da cortina, quando, em 1929, foi publicado o Acordo de Latrão entre o papa e o governo fascista. Para Mussolini, era o momento de pagar os direitos autorais acordados com seu autor. Além de receber de Mussolini 750 milhões de liras em dinheiro e um bilhão de liras em ações do governo fascista, o Vaticano obteve uma soberania minúscula, mas substancial, esculpida no coração da Itália, um Tratado e uma Concordata, tornando o catolicismo a única igreja do reino e dando ao clero controle total sobre a educação do povo. A união entre o Vaticano e o fascismo foi selada publicamente. O Vaticano podia agora, depois de muitos anos, desfrutar novamente dos atributos e privilégios da soberania diplomática, que são de valor inestimável no jogo da política internacional - embora sem significado para a religião e até mesmo incompatíveis com ela.

O início do fim


O sonho de Mussolini em relação à Igreja não se concretizou totalmente, mas deixou um importante legado: Os atributos e privilégios da soberania diplomática do papa. De que maneira ele os tem usado desde então?

Considerando a determinação da "mulher" em domesticar outra vez a indócil besta em sua fase liberal, tal como demonstrado nos dois grandes eventos descritos acima e que, ao meu ver, são bastante representativos dessa vil diligência, não pode haver dúvida de que a besta "está para emergir do abismo", à medida que a ferida mortal é curada.

O pacto lateranense foi apenas um passo nessa direção. Grande parte de Apocalipse 17 já é história. Devemos agora estar na iminência do aparecimento do "oitavo rei", a própria besta ressurreta em sua fase totalitária e intolerante. A boa notícia é que quando ela ressurgir "caminha para a destruição", e "nunca jamais será achada", "porque poderoso é o Senhor Deus, que a julgou" (Apocalipse 17:8, 11; 18:21, 8).

Notas e referências


1. Hans K. LaRondelle, As Profecias do Tempo do Fim. Tradução: Carlos Biagini. Ver Capítulo 30: "A Sétima Praga: A Retribuição de Babilônia - Apocalipse 17", subtítulo: "A Futura Sétima Cabeça".

2. Quanta Cura. Carta encíclica do Papa Pio IX Sobre os principais erros da época, promulgada em 8 de dezembro de 1864. Montfort Associação Cultural.

3. H.J. Schroeder, Disciplinary Decrees of the General Councils: Text, Translation, and Commentary. St. Louis, Mo. and London: B. Herder Book Co., 1937, The Twelfth General Council (1215), Fourth Lateran Council, Canon 3, p. 242 e 243.

4. Ibid., p. 236.

5. W.E.H. Lecky diz: "Que a Igreja de Roma derramou mais sangue inocente do que qualquer outra instituição que tenha existido entre a humanidade, não é questionado por nenhum protestante que tenha um conhecimento adequado da história". O autor passa então a mencionar as estimativas sobre o número de vítimas e as dolorosas penas impostas aos condenados, sem, contudo, omitir o fato de que a própria igreja protestante também perseguiu, pelo menos nas regiões onde obteve algum controle, ainda que numa escala comparativamente menor. - History of the Rise and Influence of the Spirit of Rationalism in Europe. Volume II. Third Edition. London: Longmans, Green and Co., 1866, p. 35-50. As perseguições promovidas pelas igrejas protestantes revelam que elas não foram capazes de superar a ideia romana que considerava a Igreja e o Estado como os dois braços de um mesmo governo divino na terra, no qual estavam unidos os direitos civis e religiosos.

6. Edmund Sheridan Purcell, "On Church and State, or the Relations Between the Spiritual and the Civil Powers". Em Essays on Religion and Literature. Edited by Archbishop Manning. Second Series. London: Longmans, Green, and Co., 1867, p. 418.

7. Constituição Dogmática Pastor Aeternus, do Sumo Pontífice Pio IX, 18 de julho de 1870. Para a tradução em português, servi-me do texto do Fr. Guilherme Baraúna, disponível no site Veritatis Splendor.

8. R.W. Thompson, The Footprints of the Jesuits. Cincinnati: Cranston & Curts; New York: Hunt & Eaton, 1894, p. 485 e 486.

9. An Inside View of the Vatican Council, in the speech of the Most Reverend Archbishop Kenrick, of St. Louis. Edited by Leonard Woolsey Bacon. New York: American Tract Society [1871], p. 59.

10. Ibid., p. 222 e 225.

11. Ibid., p. 229.

12. Ibid., p. 232, 234, 235, 236.

13. Henry Edward Manning, Sermons on Ecclesiastical Subjects. Volume II. American Edition. New York: The Catholic Publication Society, 1873, p. xxv-xxix.

14. Ibid., p. xix.

15. An Inside View of the Vatican Council, p. 241 e 242.

16. William Arthur, The Modern Jove; a review of the collected speeches of Pio Nono. London: Hamilton, Adams, & Co., 1873, p. 23.

17. R.W. Thompson, op. cit., p. 480.

18. Paul Von Hoensbroech, Fourteen Years a Jesuit: a record of personal experience and a criticism. Volume II. Translated from the german by Alice Zimmern. London, New York, Toronto and Melbourne: Cassell and Company, LTD., 1911, p. 430.

19. L.H. Lehmann, Behind the Dictators: a factual analysis of the relationship of Nazi-Fascism and Roman Catholicism, 1942, p. 36.

20. Samuel F.B. Morse, Foreign Conspiracy against the Liberties of the United States. Fifth Edition. New York: H.A. Chapin & Co., 1841, p. 60.

21. Philip Schaff, The Creeds of Christendom, with a history and critical notes. Volume I: The history of creeds. New York and London: Harper & Brothers, Publishers, 1919, p. 164 e 165.

22. Henry Edward Manning, op. cit., p. 97 e 98.

23. Adaptado de Samuel F.B. Morse, op. cit., p. 50-52.

24. Bula Unam Sanctam, do Papa Bonifácio VIII, 18 de novembro de 1302. Montfort Associação Cultural.

25. http://www.vatican.va/news_services/press/documentazione/documents/sp_ss_scv/insigne/triregno_en.html

26. David I. Kertzer, O Papa e Mussolini: a conexão secreta entre Pio XI e a ascensão do fascismo na Europa. Rio de Janeiro: Editora Intrínseca, 2017. Arquivo Kindle, sem paginação.

27. Ibid. Ver #45 da referida encíclica.

28. L.H. Lehmann, op. cit., p. 59.

29. David I. Kertzer, op. cit.

30. Ibid.

31. Ibid.

32. "Vatican again at peace with Italy after long quarrel", San Francisco Chronicle, Vol. 134, No. 28, Tuesday, February 12, 1929. Ver Apocalipse 13:3.

33. David I. Kertzer, op. cit.

34. Ibid. A nota de rodapé traz o seguinte: "De acordo com o relato de uma revista comemorativa, o acordo foi um milagre 'produzido pela perfeita coincidência (...) entre as diretrizes da Igreja e do Estado fascista ao levantar o moral e o nível espiritual do povo. Aquilo sem dúvida não teria dado certo em um regime parlamentar'. Giuseppe Bevione, 'La portata dell'accordo fra l'Italia e il Vaticano', XX Secolo, 15 febbraio 1929, p. 7. L'Osservatore Romano, jornal do Vaticano, citado na ampla cobertura do evento em La Gazzetta del Popolo, ao anunciar o fato de que 'o regime fascista conseguira resolver a questão romana porque tinha liberado a Itália de todas as mentiras democráticas do anticlericalismo e do parlamentarismo'. 'Dopo la firma dei trattari fra la Santa Sede e l'Italia', OR, 15 febbraio 1929, p. 1."

35. L.H. Lehmann, op. cit., p. 88.




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