Político e líder religioso protestante da Irlanda do Norte, Paisley não hesitou em interromper um discurso de João Paulo II no Parlamento Europeu em Estrasburgo, ao exibir um cartaz denunciando o papa como o Anticristo.
O cartaz foi imediatamente arrancado das mãos de Paisley por Otto von Habsburg, um membro do Parlamento. O incidente foi gravado em vídeo e pode ser visto aqui. Hilton escreveu:
Foi uma cena simbólica, pois o Dr. von Habsburg também tem o título de Arquiduque Otto da Áustria. Em tempos mais antigos, Otto von Habsburg teria recebido títulos ainda mais grandiosos, pois teria sido Imperador da Áustria, Rei Apostólico da Hungria e Sacro Imperador Romano. Uma de suas responsabilidades como Sacro Imperador Romano teria sido defender a dignidade da Igreja Católica Romana, o que poderia significar que, a pedido do Papa, ele teria encarcerado o Dr. Paisley em uma de suas fortalezas mais remotas.
Como Hilton observa, Ian Paisley escapou desse destino porque a velha ordem europeia, em que o papa governava o reino espiritual, e o imperador, o secular, há muito deixou de existir.
E é precisamente a partir da ruína dessa velha ordem - que permite hoje a livre circulação da Bíblia até mesmo nas ruas de Roma - que o apóstolo João contempla os lances finais na história do grande conflito antecipados na visão de Apocalipse 17.
A perspectiva de João na profecia
Vale ressaltar que o anjo que acompanha João em sua experiência visionária determina por três vezes o ponto de vista do profeta em relação ao tempo da visão (destaques acrescentados):
[...] a besta que viste, era e não é, está para emergir do abismo e caminha para a destruição. E aqueles que habitam sobre a terra, cujos nomes não foram escritos no Livro da Vida desde a fundação do mundo, se admirarão, vendo a besta que era e não é, mas aparecerá. (Apocalipse 17:8).
E a besta, que era e não é, também é ele, o oitavo rei, e procede dos sete, e caminha para a destruição. (verso 11).
Não pode haver dúvida, portanto, que João observa os acontecimentos na perspectiva da visão, ou seja, no momento em que a besta "não é", tal como expressamente indicado e enfatizado pelo anjo.
Conforme observamos, essa fase da existência da besta corresponde a uma mudança em sua relação com a mulher - mudança essa caracterizada por uma ruptura na relação tradicional que existia até então.
A relação de interdependência e, amiúde, de subordinação do poder civil ao poder religioso marcou o período profético de 42 meses ou 1.260 dias/anos (Apocalipse 11:2-3; 12:6, 14; 13:5), no fim do qual "toda autoridade temporal que emana do Papa", nas palavras do general Berthier proferidas em 15 de fevereiro de 1798, "[foi] suprimida, e não exerce qualquer função". [2]
Do ponto de vista de João na visão de Apocalipse 17, esse período já havia passado e, portanto, o profeta contempla a condição da besta escarlate depois que a cabeça papal foi "como golpeada de morte", fato que evidentemente alterou o status social e político que a Igreja e o estado desfrutavam.
A natureza do poder que "era"
Acerca dessa fase anterior do poder papal, o arcebispo inglês Henry E. Manning observa que, "por mil e duzentos anos [notai o período], os bispos de Roma reinaram como príncipes temporais" e foram "o primeiro exemplo de uma monarquia cristã, a primeira semente da Europa cristã, o primeiro rol de príncipes cristãos".
E, uma vez que "que o poder material que outrora reinava em Roma foi consagrado e santificado pela investidura do Vigário de Jesus Cristo com a soberania temporal sobre a cidade onde morava, ele começou a criar em toda a Europa a ordem da civilização cristã". [3]
Desde que sofreu a ferida de morte, porém, "[os homens] estão dissolvendo o poder temporal do Vigário de Cristo. E por que o estão dissolvendo? Porque os governos não são mais cristãos". [4]
Note que, para o arcebispo Manning, "governos cristãos" são imprescindíveis para a garantia do poder temporal do papado, sem o qual a própria ordem da civilização cristã está ameaçada.
E para não deixar dúvida quanto à natureza desse poder temporal, Manning o define com evidente satisfação: [5]
Pois o que é poder temporal? Não é a posse de um pedaço de terra ou de uma cidade; é a independência de todo o poder na Terra, sendo a delegação dAquele que disse: 'Foi-me dado todo o poder na Terra; ide, portanto, e ensinai a todas as nações'.
É preciso esclarecer que o domínio temporal e a jurisdição secular nada têm em comum com o reino de Deus e a pregação do evangelho, e, por isso, Cristo não conferiu à Sua igreja tais prerrogativas.
Pois, do contrário, nosso Redentor teria disposto que Seus apóstolos as tivessem e as exercessem, e que os líderes subsequentes as preservassem.
Jurisdição não menos que universal
O papado, não obstante, reivindica tais direitos, os quais significam não menos que "independência de todo poder na Terra", visto que, nas palavras de Augustinus Triumphus, celebrado defensor dos direitos papais e da Igreja, "o Papa é o Vigário de Jesus Cristo, no lugar do Deus vivo, [e] possui jurisdição espiritual, temporal e universal sobre todo o globo terrestre". [6]
Sobre a manifestação deste tipo arrogante e blasfemo de vaidade, continuamente reproduzida numa sucessão de homens que não hesitam em usurpar o que é de César e o que é de Deus, exaltando-se sobre ambos, convém citar as palavras de Antonio Pereira, sacerdote e teólogo lisbonense que, como fiel católico, jamais negou certas prerrogativas do bispo de Roma. Notai, entretanto, o que ele diz: [7] [8]
Mas em que põem o Doutor Melífluo [Bernardo, abade de Claraval] esta inspeção e superintendência universal do Papa? Põem-na, porventura, em ser o Papa um Árbitro Supremo dos Reis e Príncipes Seculares, para em certos casos depor a uns e entronizar outros? De nenhuma sorte. Antes ensina que intrometer-se o Sucessor de Pedro a ser Juiz dos Estados e Domínios Seculares é uma usurpação dos Direitos alheios; uma conduta totalmente alheia do espírito e praxe dos Apóstolos; um abuso das chaves da Igreja, que só devem ter por objeto as consciências, e não as Fazendas.
Que assim como o Rei, pelo que toca ao governo temporal, não reconhece na Terra outro Superior, senão a Deus, assim o Papa, pelo que pertence ao governo da Igreja, é tão soberano, tão absoluto, tão déspota, que, como diz a Glosa do Capítulo Quanto personam, de Translatione Episcopi: ninguém lhe pode dizer, Cur ita facis [Por que fazes assim]? Glosa que o grande Gerson, em uma parte, chama veneno mortal da antiga adulação; em outra, monstruoso e horrendo tropeço posto pela lisonja no caminho da Lei de Deus.
Usurpação dos direitos alheios, exatamente o que o papa faz ao atribuir-se poderes que não lhe pertencem, e que só podem ser exercidos em detrimento da liberdade.
Escrito no espírito de Roma
Deveis lembrar, contudo, que o papado jamais abrirá mão de tais direitos; de que, embora o papa Francisco tenha reconhecido os erros dos papas passados [9], isso nunca implicou ou sequer sugeriu um mea culpa a respeito dessas prerrogativas ou da própria dignidade papal.
Pelo contrário, desde que os argumentos do orador pagão Símaco, em seu apelo de protesto dirigido em nome do senado a Valentiniano II em favor da religião ancestral de Roma, mostraram-se infrutíferos diante do raciocínio de São Ambrósio, que clamava pela extensão da religião sob o patrocínio de um imperador cujo dever cristão era apoiá-la; sim, desde que Agostinho apelou à força do estado para a proteção da unidade espiritual da Igreja em face da ameaça donatista, colocando a espada contra a liberdade da fé e da consciência, inscreveu-se esse princípio "no espírito de Roma; e nunca mais desapareceu da memória da Igreja e dos seus Papas". [10]
Em seu juramento de fidelidade, os novos cardeais comprometiam-se, com efeito, em manter a Santa Sé e os bens de S. Pedro contra todas as ameaças, defendê-los, reconquistá-los, não permitir nem desejar o abandono ou o confisco das cidades e das terras dos estados da Igreja. E de fato juravam "ainda quando já não havia Estados da Igreja, pois esta nunca renunciou às suas pretensões quanto ao seu poder temporal e aos seus bens; e renuncia hoje menos que nunca". [11]
Um espírito rígido demais para suportar
Visto que Roma jamais renunciará àquilo que ela considera possuir por direito divino; que as aparentes mudanças que se têm verificado desde o Concílio Vaticano II nada mais são que uma hábil estratégia de adaptação aos novos tempos, convém considerar por que a velha ordem deixou de existir, ou, para usarmos a linguagem da visão, por que a besta, ao contrário da mulher, deixou de ser o que foi durante o período de sua hegemonia.
Porque a mulher não mudou em essência (pois Roma não muda), e sim a besta, embora tal mudança não tenha sido para sua vantagem.
E tendo em vista que a besta voltará a ser, só podemos compreender a real ameaça que a sua ressurreição representa se verificarmos, ainda que mui resumidamente, as causas de sua "não existência" até o presente.
Ora, para que as nações tenham deixado de ser "cristãs", isto é, para que a ordem da civilização cristã não mais gravitasse em torno do trono e da Igreja, seriam necessárias condições tão extremadas que o povo, degradado e embrutecido por elas, a um só tempo rejeitasse a verdade e a falsidade, e tomasse a libertinagem pela liberdade.
E tais condições encontraram um terreno fértil na França, a "filha mais velha" da Igreja, o que precipitou a nação à ruína.
Nada que recomendasse a Igreja
O clero francês era uma corporação política detentora de vastas propriedades, que exercia inúmeros direitos e abusava de privilégios odiosos. Os bispos caçavam, construíam, viviam como grandes provincianos e mantinham suas cortes imitando Versalhes.
O bispado de Estrasburgo, por exemplo, era hereditário, passando de tio a sobrinho entre os da casa de Rohan. Seu palácio tinha 700 leitos e estábulos para 180 cavalos!
O século XVIII foi literalmente a era de ouro do alto clero, não só na França, mas em todos os países católico-romanos, e não menos na Inglaterra georgiana, em contraste com o baixo clero, sobre quem pesava a maior parte do trabalho e cujos rendimentos eram inapropriados.
O clero na França atribuía sua pobreza a um estado mesquinho ou tirânico, mas eles estavam numa situação muito pior sob o domínio de seus bispos do que sob a proteção dos leigos. Os prelados eram capatazes mais duros do que qualquer político.
Não admira que, quando a Revolução irrompeu, os camponeses tenham sido hostis ao clero superior, às fundações monásticas e a todo sistema existente da Igreja; ou que toda a população, nobres e camponeses, estivesse ansiosa por libertar-se do abuso intolerável dos dízimos e do fardo das ordens religiosas.
Ineficiência e corrupção
Além disso, os grandes serviços nacionais que a Igreja reivindicava como sendo de sua responsabilidade - a educação, a gestão de hospitais e a distribuição de caridade pública - pereciam sob seus cuidados ou, de qualquer modo, não estavam progredindo.
Para mencionar apenas a educação, as universidades, fundadas originalmente pela Igreja, ainda estavam sob sua vigilância e controle. Todas elas, porém, incluindo a de Paris, foram esterilizadas pelo fanatismo exclusivista e há muito haviam deixado de ter qualquer participação no progresso intelectual da nação.
Em 1789, a grande maioria dos franceses não sabia ler; e, na eloquente denúncia de Michelet, a igreja havia negligenciado seu dever mais sagrado, a educação do povo.
Finalmente, a principal praga moral da Idade Média era o celibato nominal do clero, porque seus maus efeitos tornavam a população reacionária. Depois disso, os dois principais vícios clericais eram pluralidades e simonia. Em cada um, o papado era o principal e o mais incorrigível ofensor.
Tanto Roma quanto Avinhão eram mercados abertos para a venda de benefícios. A Igreja Romana estava fazendo na Itália, e encorajando em outros lugares, desde o século XII, aquelas mesmas coisas que só atingiram seu ápice na França no fim do século XVII. [12]
Perseguição religiosa
As políticas da Igreja e, particularmente, as perseguições a que foram sujeitos os protestantes dificultaram, enfim, a propagação da liberdade constitucional na França.
A história dessas perseguições, tão impiedosas, tão implacáveis e tão contínuas, preenche vastos volumes que foram dedicados à memória dos sofredores pelos martirológicos de seu próprio partido.
É uma história que nenhum homem gostaria de ler, repetir ou mesmo abreviar. Ela mostra nossa natureza comum em seu aspecto mais ofensivo e permeia todas as épocas dos anais franceses. Assume todas as formas concebíveis de crueldade e injustiça, e muitas formas inconcebíveis para a imaginação mais sombria, sem a ajuda de um conhecimento real desses detalhes horríveis.
Na França, essas armas foram empregadas com muito sucesso pelas casas de Valois e Bourbon, para esmagar a liberdade religiosa e, com ela, erradicar as sementes da liberdade constitucional, preparando o caminho para as convulsões que agitariam duas gerações inteiras. [13]
Supressão das Escrituras Sagradas
O desdobramento dos acontecimentos que provocaram esse resultado na França revelou da maneira mais dramática e impressionante o fato de que a Igreja foi a principal causa da Revolução.
E o que produziu a descrença que tornou possível esse evento? O sepultamento das Escrituras e a extinção daquela igreja visível, a única que apresentou o cristianismo sob uma luz favorável que o recomendava à consciência. [14]
Eis o fator que, dentre todos os outros, foi decisivo para criar as condições sociais e políticas que levaram a França à revolução.
Longe de defender e difundir a Bíblia, a Igreja Católica tem, na verdade, um longo histórico de repressão e censura da Palavra de Deus (uma lista, de modo algum exaustiva, pode ser acessada aqui).
E em nenhuma outra nação os resultados dessa tirania foram mais visíveis e devastadores do que na França.
Nas palavras de Le Roy E. Froom, a derrubada do papado no século XVIII, decorrente da Revolução Francesa, foi a evidente contrapartida do estabelecimento papal no século VI.
Na primavera de 538, o caminho fora aberto para uma nova ordem de papas. E agora, 1.260 anos depois, por um notável decreto da nação que durante séculos foi o sustentáculo do papado, a França, aboliu-se a Igreja e a religião e sua união profana com o estado, seguindo-se a subversão do governo papal.
No primeiro caso, o poder civil supremo da época foi empregado para o engrandecimento do papa, elaborando leis com esse objetivo especial em vista e submetendo toda a autoridade espiritual a ele.
Eis o fator que, dentre todos os outros, foi decisivo para criar as condições sociais e políticas que levaram a França à revolução.
Longe de defender e difundir a Bíblia, a Igreja Católica tem, na verdade, um longo histórico de repressão e censura da Palavra de Deus (uma lista, de modo algum exaustiva, pode ser acessada aqui).
E em nenhuma outra nação os resultados dessa tirania foram mais visíveis e devastadores do que na França.
O desfecho dramático
Nas palavras de Le Roy E. Froom, a derrubada do papado no século XVIII, decorrente da Revolução Francesa, foi a evidente contrapartida do estabelecimento papal no século VI.
Na primavera de 538, o caminho fora aberto para uma nova ordem de papas. E agora, 1.260 anos depois, por um notável decreto da nação que durante séculos foi o sustentáculo do papado, a França, aboliu-se a Igreja e a religião e sua união profana com o estado, seguindo-se a subversão do governo papal.
No primeiro caso, o poder civil supremo da época foi empregado para o engrandecimento do papa, elaborando leis com esse objetivo especial em vista e submetendo toda a autoridade espiritual a ele.
No segundo, em contrapartida, o poder civil supremo do momento estava empenhado na derrubada do papa e na recuperação de toda a autoridade política que ele usurpara.
Um caso representou o início, e o outro, o fim de um período conhecido por Deus e determinado - talvez inconscientemente - pelos homens. [15]
É verdadeiramente significativo que "a primeira nação católica da história, a nação dos Francos, honrada por isto com o título de filha primogênita da Igreja", [16] tenha sido a mesma nação a destronar o papado.
Aquele que recebera a espada do primeiro reino cristão da história e a manchara "com o sangue dos santos e com o sangue das testemunhas de Jesus" (Apocalipse 17:6) fora, séculos mais tarde, abatido pela espada de seu próprio benfeitor!
A própria ordem social e política forjada pela Revolução expôs da maneira mais contundente o que a profecia há muitos séculos antecipara: Em contraste com a besta, que "era" e "não é", a mulher não sofreu essencialmente nenhuma mudança!
Prova-o algumas das declarações mais notórias do papado feitas no rastro da Revolução.
Um caso representou o início, e o outro, o fim de um período conhecido por Deus e determinado - talvez inconscientemente - pelos homens. [15]
É verdadeiramente significativo que "a primeira nação católica da história, a nação dos Francos, honrada por isto com o título de filha primogênita da Igreja", [16] tenha sido a mesma nação a destronar o papado.
Aquele que recebera a espada do primeiro reino cristão da história e a manchara "com o sangue dos santos e com o sangue das testemunhas de Jesus" (Apocalipse 17:6) fora, séculos mais tarde, abatido pela espada de seu próprio benfeitor!
Se alguém leva para cativeiro, para cativeiro vai. Se alguém matar à espada, necessário é que seja morto à espada. (Apocalipse 13:10)
A besta mudou, mas não a mulher
A própria ordem social e política forjada pela Revolução expôs da maneira mais contundente o que a profecia há muitos séculos antecipara: Em contraste com a besta, que "era" e "não é", a mulher não sofreu essencialmente nenhuma mudança!
Prova-o algumas das declarações mais notórias do papado feitas no rastro da Revolução.
Em sua encíclica Quanta Cura, de 1864, Pio IX defendeu que um dos principais erros de nosso tempo é a destruição da "união e [d]a mútua concórdia entre o Sacerdócio e o Império, que sempre foi tão proveitosa para a Igreja, como para o próprio Estado".
Ele condenou expressamente a ideia de "'que a melhor forma de governo é aquela em que não se reconheça ao poder civil a obrigação de castigar, mediante determinadas penas, os violadores da religião católica, senão quando a paz pública o exija'".
Assim, segundo Pio IX, é uma heresia sustentar que a Igreja não tem o direito de obrigar o poder civil a punir qualquer coisa que ela julgue ser uma violação da fé católica, com exceção dos casos em que a ordem pública esteja ameaçada. Em outras palavras, os que defendem a liberdade religiosa são hereges.
Além disso, ele considera "em extremo perniciosa à Igreja Católica e à saúde das almas" e "loucura", citando as palavras de Gregório XVI, a "'liberdade de consciências e de cultos'" como "'um direito próprio de cada homem, que todo Estado bem constituído deve proclamar e garantir como lei fundamental, e que os cidadãos têm direito à plena liberdade de manifestar suas ideias com a máxima publicidade - seja de palavra, seja por escrito, seja de outro modo qualquer'". [17]
O que significa que a Igreja romana não pode sobreviver numa atmosfera de liberdade de consciência e de expressão, pois ela as julga "em extremo perniciosas" e "loucura", e que é direito da autoridade civil e eclesiástica reprimi-las para o bem da Igreja e das almas.
Um apêndice à encíclica Quanta Cura, chamado Syllabus, enumera os "principais erros da nossa época", entre eles: [18]
23. Os Pontífices Romanos e os Concílios ecumênicos ultrapassaram os limites do seu poder, usurparam os direitos dos Príncipes, e erraram, mesmo nas definições de fé e de moral.
24. A Igreja não tem poder de empregar a força nem poder algum temporal, direto ou indireto.
27. Os ministros sagrados da Igreja e o Pontífice Romano devem ser completamente excluídos de todo o cuidado e domínio das coisas temporais.
34. A doutrina dos que compararam o Pontífice Romano a um Príncipe livre, e que exerce o seu poder sobre toda a Igreja, é doutrina que prevaleceu na Idade Média.
55. A Igreja deve estar separada do Estado e o Estado da Igreja.
76. A ab-rogação do poder temporal que possui a Sé Apostólica contribuiria muito para a felicidade e liberdade da Igreja
77. Na nossa época já não é útil que a Religião Católica seja tida como a única Religião do Estado, com exclusão de quaisquer outros cultos.
Leão XIII, em sua encíclica Immortale Dei, de 1º de novembro de 1885, declarou:
12. Devem, pois, os chefes de Estado ter por santo o nome de Deus e colocar no número dos seus principais deveres favorecer a religião, protegê-la com a sua benevolência, cobri-la com a autoridade tutelar das leis, e nada estatuírem ou decidirem que seja contrário à integridade dela.
Notai que não se trata da proteção e assistência legal de qualquer religião, e sim da religião católica, tal como expresso nos itens 11, e 13-16 da referida carta.
Mais adiante, Leão XIII escreve: [19]
35. [...] As leis, a administração pública, a educação sem religião, a espoliação e a destruição das Ordens religiosas, a supressão do poder temporal dos Pontífices romanos, tudo tende a este fim: ferir no coração as instituições cristãs, reduzir a nada a liberdade da Igreja Católica, e ao nada os seus demais direitos.
Ao tratar da liberdade de expressão e de imprensa em outra encíclica, Libertas, de 20 junho de 1888, Leão XIII diz "que não podem haver direitos como estes, se não forem usados com moderação, e se ultrapassarem os limites e o fim de toda a verdadeira liberdade".
Ele também diz que os "homens têm o direito, livre e prudentemente, de propagar em todo o Estado todas as coisas que são verdadeiras e dignas... mas opiniões mentirosas, que não são maiores do que praga mental, e vícios que corrompem o coração e a vida moral, devem ser diligentemente reprimidos pela autoridade pública".
Devemos nos perguntar a que instituição Leão XIII atribuiu o direito e a autoridade de regular tanto o discurso como a imprensa, de definir quais são "as coisas dignas e verdadeiras", e de assegurar que apenas estas possam ser propagadas. Eis sua resposta: [20]
27. Na fé e no ensino da moralidade o próprio Deus fez da Igreja uma participante de Sua autoridade divina e, por meio de Seu dom celestial, ela não pode ser enganada. Ela é, portanto, a maior e mais confiável professora da humanidade, e nela se intensifica um direito inviolável de ensiná-la. [...] Portanto, não há razão para que a genuína liberdade se torne indigna, ou a verdadeira ciência se sinta prejudicada, ao ter que suportar a justa e necessária restrição de leis pelas quais, no julgamento da Igreja e da própria razão, o ensino humano tem que ser controlado.
Ou seja, o papa Leão XIII sustentava expressamente que a Igreja Católica tem a prerrogativa de julgar qual liberdade é genuína e quais leis são apropriadas para restringi-la. Com base na história europeia, pode-se vislumbrar o resultado disso.
Ora, "quem quer que tenha uma ideia fixa e queira realizá-la", para usar as palavras do filósofo alemão Eric Voegelin, "ou seja, quem quer que interprete a liberdade de expressão e a liberdade de consciência de tal modo que a sociedade deva comportar-se da maneira que ele considera correto, não está qualificado para ser cidadão de uma democracia". [21]
E isto se aplica verdadeiramente à Igreja, que se arroga o direito de julgar qual comportamento é ou não adequado.
Em sua encíclica sobre a lei francesa da separação, Vehementer Nos, de 11 de fevereiro de 1906, Pio X escreveu: [22]
3. Que o Estado deve ser separado da Igreja é uma tese absolutamente falsa, um erro mui pernicioso. [...] esta tese inflige grande dano à própria sociedade, pois esta não pode prosperar ou durar muito quando não se permite à religião ocupar o seu devido lugar, pois ela é o governo supremo e a senhora soberana em todas as questões que dizem respeito aos direitos e deveres dos homens. Por isso, os Romanos Pontífices nunca cessaram, conforme as circunstâncias exigiram, de refutar e condenar a doutrina da separação da Igreja e do Estado.
Vede uma vez mais que aquilo que a Igreja reputa como absolutamente falso, neste caso, a separação entre a Igreja e o estado, é descrito em termos bem típicos: "um erro mui pernicioso".
Por certo a liberdade religiosa e de consciência e a separação constitucional dos poderes são perniciosas para uma Igreja que reclama ser "o governo supremo e a senhora soberana em todas as questões que dizem respeito aos direitos e deveres dos homens".
Esta Igreja não pode ser amiga da liberdade.
O que vem a seguir?
Declarações mais recentes, no entanto, dão a entender que a Igreja é defensora da liberdade religiosa, como na Declaração Dignitatis Humanae, promulgada em 7 de dezembro de 1965 por Paulo VI, ou no Angelus de João Paulo II, de 18 de fevereiro de 1996.
Há também os protestos oficiais da Igreja contra a restrição à liberdade religiosa de alguns grupos, inclusive da própria Igreja Católica, em países de regime totalitário, como a China.
Deve-se sublinhar que essas manifestações, as quais podem fatalmente induzir à falsa percepção de que Roma mudou, demonstram, na realidade, que a Igreja se inclina a defender a liberdade religiosa somente quando lhe convém, especialmente quando ela própria é alvo de repressão e perseguição.
Mas uma vez que recupere o apoio do braço secular, o catolicismo voltará a ser a religião dominante, e, à luz de sua posição histórica sobre a liberdade religiosa e a separação entre igreja e estado, certamente usará sua renovada posição e influência em prejuízo desses ideais.
Nada expressa melhor esse fato do que a seguinte passagem da alocução do papa Pio IX, de setembro de 1851, citada por Charles Chiniquy em seu livro Cinquenta Anos na Igreja Católica: [23]
Vós perguntais: se o Papa fosse o senhor desta nação [os Estados Unidos da América] e estivésseis em minoria, o que ele faria convosco? Isso, dizemos, dependeria inteiramente das circunstâncias. Se tal coisa beneficiasse a causa do Catolicismo, ele vos toleraria. Se fosse conveniente, ele vos aprisionaria, baniria ou provavelmente até mesmo vos enforcaria. Tenham, porém, certeza de uma coisa, ele jamais vos toleraria em prol de vossos gloriosos princípios de liberdade civil e religiosa.
Em vista disso, convém investigar como a "mulher" tem trabalhado para domar novamente a besta e torná-la dócil para a sua própria vantagem.
O profeta se refere a este processo de recuperação dizendo: "[...] e toda a terra se maravilhou, seguindo a besta" (Apocalipse 13:3), algo que está acontecendo bem diante de nossos olhos.
Notas e referências
1. https://www.theguardian.com/politics/2005/mar/04/election2005.uk
2. The Times, London, Monday, March 12, 1798, p. 3.
3. Henry Edward Manning, The Temporal Power of the Vicar of Jesus Christ. Second Edition. London: Burns & Lambert, 1862, p. 126.
4. _______________________, The Vatican Council and its Definitions: A Pastoral Letter to the Clergy. London: Longmans, Green, and Co., 1870, p. 159.
5. _______________________, The Fourfold Sovereignty of God. Boston: Patrick Donahoe, 1872, p. 171 e 172.
6. "Qvaest. XLV: De Aliorvm Regvm Svbiectione. Articvlvs II [...] Resolvtio [...] quòd Papa Vicarius Iesu Christi, vice Dei viuétis, in toto orbe terrarum spiritualium, & temporaliú habet, vniversalem iurisdictionem." – Augustini Triumphi. Summa de potestate ecclesiastica. Romae, Ex Typographia Georgij Ferrarij, 1584, p. 248, coluna 1, § 2.
7. Antonio Pereira, Tentativa Theologica, em que se pretende mostrar, que impedido o recurso à Sé Apostólica se devolve aos Senhores Bispos a faculdade de dispensar nos impedimentos publicos do matrimonio, e de prover espiritualmente em todos os mais cazos reservados ao Papa, todas as vezes que assim o pedir a publica e urgente necessidade dos suditos. Lisboa, na officina de Miguel Rodrigues, impressor do eminentíssimo Senhor Cardeal Patriarca, 1766, p. 32 e 33.
8. Ibid., p. 48 e 49. John C. L. Gieseler traz esta glosa a respeito da extensão da autoridade do papa: "Tampouco há alguém que possa dizer-lhe: Por que fazes assim? Pois ele pode dispensar acima da lei, e da injustiça fazer justiça, corrigindo e mudando as leis, visto possuir a plenitude do poder". - A Compendium of Ecclesiastical History, Fourth Edition Revised And Amended, Volume III, Edinburgh: T. & T. Clark, 1853, p. 161 e 162.
9. https://fratresinunum.com/2018/12/18/francisco-e-a-pena-de-morte-mea-culpa-pelos-erros-dos-papas-passados-consequencia-de-uma-mentalidade-da-epoca-mais-legalista-que-crista-que-sacralizou-o-valor-de-leis-desprovidas-de-humanidade/
10. Joseph Bernhard, O Vaticano - Potência Mundial: História e Figura do Papado. Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti Editores, 1942, p. 49.
11. Ibid., p. 334.
12. Arthur Galton, Church and State in France: 1300-1907. London: Edward Arnold, 1907, p. 41 a 58.
13. Sir James Stephen, Lectures on the History of France. New York: Harper & Brothers, Publishers, 1855, p. 459 e 460.
14. John G. Lorimer, An Historical Sketch of the Protestant Church of France, from its Origin to the Present Times. Philadelphia: Presbyterian Board of Publication, 1842, p. 459 a 461.
15. Le Roy Edwin Froom, The Prophetic Faith of our Fathers: The Historical Development of Prophetic Interpretation, Volume II. Washington, D.C.: Review and Herald, 1948, p. 763 e 764.
16. "França Católica, Filha primogênita da Igreja: fruto do batismo e sagração providenciais", por Antonio Oliveira Queiroz.
17. Quanta Cura. Carta encíclica do Papa Pio IX Sobre os principais erros da época, promulgada em 8 de dezembro de 1864. MONFORT Associação Cultural.
18. Syllabus. Contendo os Principais Erros da Nossa Época, Notados nas Alocuções Consistoriais, Encíclicas e Outras Letras Apostólicas do Nosso Santíssimo Padre, o Papa Pio IX. MONFORT Associação Cultural.
19. Immortale Dei. Carta Encíclica do Papa Leão XIII, Sobre a Constituição Cristã dos Estados, 1º de novembro de 1885.
20. Libertas. Encíclica do Papa Leão XIII sobre a Natureza da Liberdade Humana, 20 de junho de 1888.
21. Eric Voegelin, Hitler e os Alemães. São Paulo: Realizações Editora, 2008, p. 115 e 116.
22. Vehementer Nos. Encíclica do Papa Pio X sobre a lei francesa da separação, 11 de fevereiro de 1906.
23. Charles Chiniquy, Fifty Years in the Church of Rome. Ver Capítulo 59.
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