A mulher e a besta



[Revisado em 11 de fevereiro de 2021]

Uma igreja não se converte numa meretriz, no sentido profético da palavra, porque deixou de guardar o sábado, atender às necessidades dos mais pobres ou praticar um estilo de vida saudável. Ela decai da sua condição original quando abandona seu "primeiro amor" (Apocalipse 2:4).

Nessa condição, um cristão pode facilmente perder de vista o significado de seu chamado ao confundir crenças e práticas externas do cristianismo com a religião verdadeira.

Por outro lado, ele só pode observá-las corretamente (caso estejam em harmonia com a Palavra de Deus) se Cristo estiver em seu coração (João 15:4-5).

Os verdadeiros discípulos de Jesus não são reconhecidos por sua profissão de fé, aparência de piedade ou eloquência, mas pela natureza de seu relacionamento com o Senhor, de modo que se possa dizer a seu respeito: "Eles estiveram com Jesus" (Atos 4:13)!

Se nosso amado Salvador não puder ser visto em nossos olhos, em cada atitude e palavra até mesmo pelos mais ferrenhos adversários do cristianismo, como aconteceu com Pedro e João, de que valerá ter o bom nome de cristão? O que se dirá de nós e, mais importante ainda, que dirá Cristo quando o nosso nome passar diante do tribunal celeste (ver Mateus 10:32-33)?

Como observa George Knight, guardaremos verdadeiramente os mandamentos de Deus somente quando nossas ações fluírem de um coração repleto do amor de Deus e ao próximo. Sem esse amor, apenas encenaremos a guarda dos mandamentos que está relacionada à fé de Jesus. [1]

Uma lição que não devemos esquecer


Cristãos que abandonam esse princípio fundamental do cristianismo, essa força motivadora que distingue tão marcadamente a igreja do mundo, podem esforçar-se por manter a aparência de piedade e de devoção a Deus, mas, para todos os efeitos, tornam-se piores do que seus inimigos.

O "primeiro amor" da igreja - o amor forte e ardente por Jesus Cristo que uma vez sentiram os crentes, ao serem atraídos pela luz do conhecimento de Deus e justificados pela fé em Jesus - foi, com o tempo, substituído por aquela paixão perigosa e infame que sente uma mulher quando permite que os galanteios de qualquer homem que não seja seu marido cativem suas primeiras afeições.

E uma vez que os interesses da igreja estejam nas coisas deste mundo, e não em Cristo, é uma questão de tempo até que ela se prostitua com muitos amantes, e estes, por sua vez, se embriaguem com o vinho de sua prostituição.

Esse é o quadro que se apresentou ao vidente de Patmos na visão de Apocalipse 17.

Somos informados pelo anjo que a visão se refere ao "julgamento da grande meretriz que se acha sentada sobre muitas águas, com quem se prostituíram os reis da terra" (Apocalipse 17:1-2).

Na visão, a "mulher" corresponde à "grande meretriz", e a "besta escarlate", aos "reis da terra" (verso 3).

Como a aplicação da figura da mulher à igreja cristã foi suficientemente examinada até aqui, passaremos a considerar brevemente a figura da besta como símbolo dos governantes políticos e, mais adiante, sua subserviência à mulher, que pretende conduzir e controlar as nações para os seus próprios fins.

O uso figurativo de animais nas profecias


Temos observado que o Apocalipse é quase que inteiramente estruturado com base em expressões e imagens do Antigo Testamento, particularmente aquelas que têm relação com a aliança de Deus com Seu povo.

A linguagem e o simbolismo empregados pelo Apocalipse são, porém, aplicados na perspectiva do novo concerto, no qual Cristo é o personagem-chave, e Sua igreja, o Israel da nova aliança.

Só podemos nos salvaguardar de interpretações errôneas se tivermos em mente que a linguagem hebraica do pacto no Apocalipse deve ser compreendida do ponto de vista do evangelho, isto é, de seu cumprimento em Cristo e na igreja.

Assim como a mulher, a figura da besta é extraída do Antigo Testamento e está sempre em oposição ao povo da aliança de Deus.

No capítulo 7 de Daniel são mencionadas quatro bestas ou feras de natureza excepcional, expressamente identificadas como "quatro reis" ou "reinos" (verso 17).

O uso de animais como símbolos de governos não é algo incomum. O Egito era representado pela figura da serpente e do touro. Os medo-persas usavam a águia, assim como Roma. A China é simbolizada pelo dragão, a Grã-Bretanha, pelo leão, e os Estados Unidos, pela águia.

Da mesma forma, as Escrituras usam esse recurso para destacar certas qualidades de um animal, ou sugeridas por suas características singulares, que estão presentes nos poderes mundiais de interesse da profecia.

Nos animais simbólicos de Daniel 7 vemos que cada reino aí representado tem características próprias, porém todos eles possuem algo em comum: são simbolizados por uma besta ou fera predadora que não visa outro objetivo senão a conquista.

Como Richard Sale lembra, nenhuma ordem mundial jamais foi baseada em padrões morais elevados. Nenhum grande império foi fundado por motivos mais nobres oriundos do sentimento de solidariedade e do bem comum.

Como bestas ferozes, movendo-se com uma determinação selvagem atrás de sua caça, os reinos do mundo vivem para a posse do poder, anseiam por expandi-lo e não hesitam em recorrer a todo tipo de expediente para consolidá-lo. Desejam sua porção do poder com a mesma voracidade de uma besta faminta.

A natureza da besta escarlate e sua relação com a mulher


Em Apocalipse 17, esperamos encontrar essa mesma natureza na besta escarlate de sete cabeças e dez chifres, que se assemelha ao grande dragão vermelho (Apocalipse 12) e à besta do mar (capítulo 13), mas também se distingue deles.

A exemplo de Daniel 7, a besta escarlate representa o poder político. A mulher simboliza o poder religioso.

Fato interessante é que nos capítulos 12 e 13 do Apocalipse os poderes políticos e religiosos empenhados em perseguir o povo de Deus são quase indistinguíveis um do outro, pois se acham representados no mesmo símbolo profético.

Apocalipse 17 estabelece uma distinção entre ambos para fins didáticos, já que não é possível entender um sem pelo menos certa compreensão do outro.

Ao descrever a mulher como montada na besta (Apocalipse 17:3), a visão pretende mostrar a relação de subordinação do estado à Igreja.

Por causa dessa relação ilícita, a Igreja deixou de ser uma igreja e converteu-se, ela mesma, em um estado em meio aos estados do mundo.

A igreja não está ligada ao estado por afinidades espirituais para espiritualizá-lo, mas por afinidades políticas para fazer do estado um dócil instrumento de seus interesses sob o véu da religião. Essa igreja não dá a César o que lhe é devido - o direito de governar sem a sua intromissão - e isso porque deixou de dar a Deus o que também Lhe é devido - a honra a que Ele tem direito como Deus. [2]

Assim, a igreja cristã, menos apostólica e mais católico-romana, subverteu, a um só tempo, os direitos de César e os direitos de Deus, exaltando-se sobre ambos.

Desprezou a mais ilustre honra prometida à igreja triunfante - de assentar-se com o Senhor Jesus em Seu trono (Apocalipse 3:21) - para fundar o seu próprio trono na Terra e ostentar-se como se fosse o próprio Deus (II Tessalonicenses 2:4).

As duas espadas


Para a igreja que abandonou a Cristo como o firme fundamento da fé, o império e a figura do imperador passaram a ser seu modelo.

Ninguém pode servir a dois senhores. A história do conluio entre igreja e estado, acerca do qual a visão de Apocalipse 17 nos adverte, demonstra vivamente como nos movimentos políticos do tempo insinuam-se os movimentos espirituais e religiosos, com consequências bem conhecidas.

Em face dos movimentos heréticos e cismáticos e de outros perigos que então ameaçavam a igreja, pareceria razoável a um observador comum que ela buscasse o apoio do estado para salvaguardar sua unidade espiritual.

Sim, porque tendo sido privada da liderança do Espírito Santo em virtude de sua própria infidelidade, só restava à Igreja apelar para a força do poder civil, seu novo mantenedor em lugar de Cristo, de maneira que ainda pudesse afirmar-se como comunidade sagrada.

E desde que Constantino subiu ao trono e elevou os clérigos cristãos a posições de prestígio e poder nas cortes imperiais, sua política (e a dos imperadores cristãos que o sucederam) contribuiu substancialmente para que o bispo de Roma, uma figura que teria sido estranha aos cristãos primitivos, obtivesse a supremacia.

Essa nova posição, no entanto, não deveria limitar-se às questões eclesiásticas, mas abranger também as temporais. Como observa Carl C. Eckhardt: [3]

Sob o Império Romano, os papas não tinham poderes temporais. Mas quando o Império Romano se desintegrou e foi substituído por vários reinos rudes e bárbaros, a Igreja Católica Romana não só se tornou independente dos estados em assuntos religiosos, mas também dominou os assuntos seculares. Às vezes, sob governantes como Carlos Magno (768-814), Otto, o Grande (936-73) e Henrique III (1039-56), o poder civil controlava a igreja até certo ponto; mas, em geral, sob o fraco sistema político do feudalismo, a igreja bem organizada, unificada e centralizada, sob a liderança do papa, não era apenas independente em assuntos eclesiásticos, mas também controlava os assuntos civis.

Isso se tornou uma doutrina medieval e foi assim explicada pelo papa Bonifácio VIII (1294-1303): [4]

As palavras do Evangelho nos ensinam [?]: esta potência comporta duas espadas, todas as duas estão em poder da Igreja: a espada espiritual e a espada temporal. Mas esta última deve ser usada para a Igreja enquanto que a primeira deve ser usada pela Igreja. O espiritual deve ser manuseado pela mão do padre; o temporal, pela mão dos reis e cavaleiros, com o consenso e segundo a vontade do padre. Uma espada deve estar subordinada à outra espada; a autoridade temporal deve ser submissa à autoridade espiritual.

A consequência mais atroz de uma Igreja estatal


Este ponto de inflexão na história do cristianismo não deixou de ser lembrado por Pio IX em seu breve apostólico, promulgado em 26 de março de 1860: [5]

Uma vez que, para operar livremente, como era necessário, ela [a Igreja] tinha que se beneficiar daqueles apoios que correspondiam às condições e necessidades da época, por uma disposição especial da Providência divina, aconteceu que, quando o Império Romano se dissolveu e foi dividido em vários reinos, o Pontífice Romano, constituído por Cristo como cabeça e centro de toda a Igreja, obteve um Principado civil.

A consequência mais atroz da obtenção desse principado por parte da Igreja é observada em Apocalipse 17:6:

Então, vi a mulher embriagada com o sangue dos santos e com o sangue das testemunhas de Jesus; e, quando a vi, admirei-me com grande espanto.

Nada causou mais espanto a João do que testemunhar, em visão, o que cristãos professos podem fazer quando abandonam o primeiro amor, a ponto de perseguir os próprios irmãos a quem deviam amar e acolher, superando até mesmo a tenacidade feroz dos inimigos mais implacáveis da igreja durante a era das primeiras perseguições.

Usurpar títulos honoríficos e divinos para afirmar sua autoridade (sobre isso, clique aqui) transforma a Igreja em instrumento de opressão tão certamente quanto dois mais dois são quatro.

A fusão entre igreja e estado restringe a liberdade religiosa, e qualquer afastamento da doutrina e da disciplina da igreja estabelecida resulta em punição civil.

Referindo-se a essa condição notavelmente presente durante os séculos de ferro da Igreja, Philip Schaff escreveu: [6]

Essa perseguição aos hereges foi uma consequência natural da união dos deveres e direitos religiosos e civis, a confusão entre o civil e o eclesiástico, o judicial e o moral, que veio a ocorrer desde Constantino... A igreja, de fato, aderiu firmemente ao princípio de que, como tal, deveria empregar apenas penalidades espirituais, excomunhão em casos extremos... Mas, envolvida na ideia da teocracia judaica e de uma igreja estatal, ela praticamente confundiu, de várias maneiras, a posição da lei e a do evangelho e, em teoria, aprovou a aplicação de medidas coercitivas aos hereges e, não raramente, incentivou e incitou o estado a executá-las, tornando-se, assim, pelo menos indiretamente responsável pela perseguição. Isso é especialmente verdadeiro para a Igreja Romana nos tempos de seu maior poder, na Idade Média e até o final do século XVI; e, por meio desse procedimento, essa igreja se tornou quase mais ofensiva aos olhos do mundo e da civilização moderna do que por suas doutrinas e costumes peculiares.

De olho na profecia


Benjamin Franklin observou que, quando uma religião é boa, ela se sustentará por si mesma; e quando ela não se sustenta por si mesma, e Deus não cuida de sustentá-la de modo que seus professantes não precisem recorrer ao poder civil, é um sinal de que ela é ruim. [7]

Toda a história da subordinação dos interesses civis aos interesses religiosos, do entrelaçamento entre igreja e estado, tal como revelada em Apocalipse 17, traz consigo uma advertência que não deve ser esquecida.

Porque aquilo que parece resultar em grande bem para a religião e para a sociedade pode, na verdade, terminar em perseguição contra todos os que querem servir a Deus segundo os ditames de sua consciência.

Em vista disso, convém ouvir o que a visão de João em Apocalipse 17 ainda tem a nos ensinar, antes que possamos decidir nosso destino à luz da mensagem do segundo anjo (Apocalipse 14:8), que anuncia a iminente queda da grande Babilônia.

Notas e referências


1. George R. Knight. A Visão Apocalíptica e a Neutralização do Adventismo: Estamos apagando nossa relevância? Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2010, p. 49.

2. A.S. Mello. A Verdade sobre as Profecias do Apocalipse. São Paulo, 1959, p. 492 e 493.

3. Carl C. Eckhardt. The Papacy and World-Affairs. Chicago: University of Chicago Press, 1937, p. 1.

4. Unam Sanctam, One God, One Faith, One Spiritual Authority. Pope Boniface VIII - November 18, 1302. Tradução: MONTFORT Associação Cultural.

5. Breve Cum Catholica Ecclesia del Sommo Pontefice Pio IX.

6. Philip Schaff. History of the Christian Church, Vol. III: Nicene and Post-Nicene Christianity. A.D. 311-600. Grand Rapids, MI: Christian Classics Ethereal Library, 2002, p. 99.

7. http://www.azquotes.com/quote/575142




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