Megalomania Eclesiástica - Introdução


Em 1904 e 1905, um sociólogo alemão não católico, Max Weber, publicou um ensaio sobre o qual sociólogos, economistas e teólogos têm discutido desde então: A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Weber argumentou que as disparidades óbvias no desenvolvimento econômico dos países europeus e americanos se deviam em parte às suas diferentes teologias. Os países cujas economias cresceram mais rapidamente eram protestantes, e aqueles cujas economias ficaram para trás eram católicos. Agora, as disparidades que Weber notou foram um lugar-comum nos séculos XVIII e XIX; Jacob Viner nos disse que nenhum observador no século XIX contestou esse fato. [1] No corpo deste livro, citarei o historiador inglês Macaulay, Charles Dickens e vários outros escritores que comentaram sobre um fato da vida que era tão óbvio para eles como é para nós a afirmação de que existem disparidades econômicas entre os países do primeiro e terceiro mundo. [2] Na verdade, esse contraste entre as comunidades católica e protestante continuou no século XX. Emilio Willems, por exemplo, relatou que

"Nossos dados de campo indicam que em muitas comunidades [no Brasil e no Chile] os protestantes ganharam a reputação entre os não protestantes de serem especialmente confiáveis, conscienciosos e trabalhadores. Numerosas entrevistas com empregadores não deixaram dúvidas de que os trabalhadores protestantes são especialmente procurados e até mesmo recebem vantagens... Vários protestantes nos garantiram que suas conversões, normalmente descritas como 'renascimento', resultaram em melhorias econômicas. A razão apresentada foi que, antes da conversão, eles gastavam muito dinheiro com álcool, apostas, jogos de azar, tabaco, cosméticos, filmes e prostituição. Uma vez que eles abandonaram esses 'pecados', quantias substanciais de dinheiro estavam disponíveis para coisas permitidas e necessárias. Produtividade, orgulho e economia eram frequentemente mencionados subjetivamente para explicar a melhoria das condições econômicas... É de surpreender que as famílias protestantes que vivem de acordo com o código de uma ética puritana tenham melhores moradias, vestuário, mais máquinas de costura, bicicletas, rádios etc. do que os não protestantes de status social comparável?" [3]

Durante o século passado, Weber foi frequentemente criticado por exagerar sua defesa da relação entre o protestantismo e o capitalismo; minha crítica a Weber é bem diferente: Weber subestimou a relação ao limitar estritamente sua discussão à "ética protestante" e ao "espírito" do capitalismo. [4] Ele o fez aparentemente por causa de uma compreensão inadequada do protestantismo, especificamente da teologia calvinista. Weber baseou a maior parte de seu argumento nas doutrinas protestantes da predestinação e vocação e, é verdade, essas doutrinas são importantes nas teologias de Martinho Lutero e João Calvino e seus seguidores. Mas a natureza radical do protestantismo e sua importância para o desenvolvimento econômico vão muito mais fundo e além. Um dos primeiros críticos de Weber, Felix Rachfahl, apontou seis maneiras pelas quais o protestantismo fomentou o crescimento econômico da Europa:

(1) O protestantismo permitiu que o intelecto fosse dedicado a atividades seculares, não apenas religiosas;

(2) O protestantismo trouxe educação para as massas;

(3) O protestantismo não encorajou a indolência, o desgosto e o desdém pelo trabalho como o catolicismo;

(4) O protestantismo defendeu a independência e a responsabilidade individual;

(5) O protestantismo criou um tipo superior de moralidade;

(6) O protestantismo promoveu a separação entre igreja e estado.

"Em todos esses aspectos", escreveu Rachfahl, "o protestantismo produziu um efeito libertador e estimulante sobre a vida econômica, mas o catolicismo, um efeito restritivo e obstrutivo". [5]

A visão de Weber do impacto econômico e social do protestantismo na Europa e nos Estados Unidos foi reduzida por sua compreensão truncada da teologia dos reformadores e seus herdeiros. Não foi apenas o espírito do capitalismo que nasceu com a Reforma Protestante, mas também o espírito do constitucionalismo, o corolário político necessário do capitalismo laissez-faire. O capitalismo constitucional é uma consequência social da teologia dos reformadores. Como a teologia dos reformadores conseguiu isso é algo que os historiadores seculares começaram a apreciar apenas 500 anos após o fato. [6] Da liberdade religiosa que está implícita na ideia da Reforma - o fim de um monopólio eclesiástico imposto, como todos os monopólios genuínos, por um sistema de comando, coerção e controle; a liberdade de não pertencer ou frequentar a Igreja-Estado Romana; a liberdade de não contribuir para sua manutenção; a liberdade de não acreditar em qualquer coisa que a Igreja exigisse - flui todas as liberdades com as quais esta nação, e em menor medida a Europa, Canadá e Orla do Pacífico, foram abençoados: governo constitucional, direitos civis (com isso quero dizer as liberdades protegidas pela Declaração de Direitos) e as liberdades econômicas. A liberdade religiosa é a mãe de todas as liberdades; é deliberadamente mencionada em primeiro lugar na Primeira Emenda da Declaração de Direitos; e historicamente é a fonte da qual fluem todas as demais liberdades.

A revolução teológica de Lutero - realocando a fonte da autoridade teológica, eclesiástica, social e política em um livro e longe dos homens; em um documento estável, escrito, permanente e infalível e longe de uma tradição oral mutável, não escriturística, dispensada de Roma como se o Oráculo de Delfos tivesse sido transferido para lá junto com a casa de Maria - mudou o mundo para sempre. A redescoberta de Lutero sobre a natureza da salvação - que é um dom divino, não uma realização humana ou sintética - revolucionou não apenas as igrejas, mas também o mundo. Porém os esforços de Lutero para reformar a Igreja Romana falharam, e essa instituição tem prosseguido em seu próprio curso nos últimos 500 anos.

Por mais de mil anos, em virtude das doutrinas da Igreja-Estado Romana de que a salvação era o resultado da cooperação entre o pecador e Deus [a] e a graça salvadora divina era infundida [pelos sacramentos] nas almas dos homens, estes preocupavam-se - obcecadamente em muitos casos - em praticar as boas obras prescritas pelos únicos dispensadores de sua salvação, os bispos e sacerdotes da hierarquia da Igreja. Suas doações para a Igreja-Estado fizeram dela a maior detentora de propriedades da Europa na Idade Média; também davam presentes aos pobres, incluindo frades mendicantes e outros "religiosos"; os devotos faziam peregrinações aos santuários; relíquias eram veneradas; penitências, realizadas; e assim por diante. [7] A enorme riqueza que havia sido desperdiçada em tais atividades estava, após a Reforma nos países protestantes, disponível e investida em todos os tipos de melhorias na educação, casas, fazendas, lojas, manufaturas, transporte e escolas. As boas obras católicas eram acompanhadas por uma introspecção religiosa que se tornou cada vez mais obsessiva à medida que a devoção do crente à Igreja-Estado aumentava. Os mais devotos e inteligentes eram ordenados a se tornarem religiosos - monges, padres e freiras - para se dedicarem inteiramente às vocações religiosas, a fim de que pudessem obter sua salvação mais rapidamente no serviço da Igreja, livres dos cuidados mundanos de família, amigos e sustento da vida. Os religiosos estavam em estado de graça; os seculares estavam no estado de natureza. O religioso pertencia a uma igreja superior; o secular, a uma inferior. Aqueles com ocupações seculares iriam para o Céu somente após grande luta e milhões de anos no Purgatório; os religiosos evitariam muitas dificuldades neste mundo e no próximo. Visto que a graça salvadora de Deus na teologia católica era realmente infundida no coração do católico por meio dos sacramentos, os católicos devotos procuravam em seus corações por evidências dessa gratia infusa, e a Europa foi afogada numa inundação de subjetivismo religioso interno por um lado, e idolatria religiosa externa por outro, ambos os quais efetivamente impediram a iniciativa econômica e o aprimoramento social por um milênio.

Então, no século XVI, um monge alemão, um dos filhos mais devotos da Igreja Mãe, não sendo capaz de descobrir em sua vida uma quantidade suficiente da graça redentora de Deus para assegurar-lhe a salvação, apesar de seu rigoroso regime diário de boas obras religiosas, descobriu na Bíblia a doutrina da justificação somente pela fé, somente na justiça imputada de Cristo, somente pela graça de Deus. Lendo as cartas do apóstolo Paulo aos cristãos em Roma e Galácia, Lutero entendeu e creu na ideia bíblica de que a salvação não é conquistada pelos pecadores, nem pela cooperação com Deus, nem dispensada pela Igreja, mas recebida como um dom gratuito diretamente de Deus, que soberanamente faz com que seu povo creia no Evangelho. Lutero concluiu que todas as "boas obras" que ele havia feito como monge e católico eram piores do que inúteis, e não apenas suas obras, mas todas as obras inculcadas e aplicadas pela Igreja-Estado por um milênio em milhões de almas. A salvação não é apenas recebida como um dom gratuito de Deus, concedido diretamente ao pecador sem a mediação ou intervenção de papas, bispos e padres; mas todo homem cristão tem uma vocação honrosa, e uma boa obra é qualquer obra empreendida com o propósito, não de ganhar a salvação, mas de expressar nossa gratidão a Deus por uma redenção já realizada por Cristo e aplicada ao crente pelo Espírito Santo. Essas boas obras não eram primariamente as obras de serviço à igreja nem à caridade, mas o desempenho diário competente e fiel de sua vocação. A importância dessa mudança na definição de "boas obras" para o desenvolvimento econômico foi sugerida por Stanislav Andreski:

"Um sistema econômico cuja força propulsora é a acumulação privada de capital não se desenvolverá muito rapidamente se as pessoas estiverem inclinadas a parar de trabalhar assim que atingirem certo nível de riqueza. O progresso de tal sistema requer que aqueles que já têm o suficiente para suas necessidades continuem trabalhando e acumulando. A conexão com o protestantismo, particularmente em sua variedade calvinista, é que ele ensinou as pessoas a considerar o trabalho uma forma de oração.... Outra influência importante do protestantismo foi sua insistência no trabalho como o único caminho legítimo para a riqueza. É claro que outras religiões também proíbem o roubo e o furto, mas o puritanismo protestante é o único que condena o jogo. Os ideais religiosos de trabalho, economia e enriquecimento sem prazer e por meio do trabalho constituem apenas o que Weber chama de 'ascetismo mundano'." [8]

O abjeto temor de Deus e aversão à vida que caracterizou a Idade Média foram varridos pelas boas novas do Evangelho de Jesus Cristo: Deus em Cristo havia feito o que nenhum mero homem poderia fazer; ele aplacou a ira de Deus contra os pecadores; ele mesmo providenciou a justiça perfeita exigida pela justiça e santidade de Deus para a entrada no céu; e a salvação, longe de ser incerta ou inatingível, é garantida àqueles que creem no Evangelho. Esta graça de Deus não é recebida por ritos, cerimônias ou sacramentos; não é obtida por confissão ou penitência; mas é recebida pela crença apenas na obra consumada de Cristo. A Igreja, longe de ser indispensável para a salvação, é, na melhor das hipóteses, instrumental - mas somente se prega o Evangelho; e seus ritos são inteiramente dispensáveis. Os cristãos não precisavam de intermediários eclesiásticos, pois há apenas um mediador entre Deus e o homem, Jesus Cristo, homem. Todos os cristãos são sacerdotes e Jesus Cristo é o único sumo sacerdote. Toda a hierarquia social, eclesiástica, econômica e política da Idade Média foi arrasada pela doutrina bíblica do sacerdócio de todos os crentes e pelas ideias paralelas de que todos os homens são iguais perante Deus e que Deus não faz acepção de pessoas. A noção de governo republicano e democrático recebeu seu ímpeto no mundo moderno da doutrina do sacerdócio de todos os crentes, que derrubou a estrutura de classes da Igreja-Estado medieval. Os protestantes da Europa foram religiosamente, politicamente, economicamente e psicologicamente libertos de uma Igreja totalitária que intimidou e castigou seus pais por gerações.

A fonte dessas boas novas revolucionárias não era a Igreja-Estado Romana, que suprimiu o Evangelho por mil anos; a fonte era a Bíblia, que a Igreja também suprimiu. O efeito libertador do Evangelho foi ensinado pelo próprio Cristo: "Se permanecerdes na minha Palavra, verdadeiramente sois meus discípulos. E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará". [9] O Schrift Prinzip [Princípio da Escritura] de Lutero é o axioma do protestantismo, assim como o Führer Prinzip [Princípio do Líder] da Igreja é o axioma do catolicismo. Lutero não se cansava de repetir seu primeiro princípio, que bastava para transformar toda uma cultura e criar uma nova civilização. Uma expressão típica do Schrift Prinzip é a seguinte:

"Pondo de lado todos os escritos humanos, deveríamos investir cada vez mais e com mais persistente trabalho apenas nas Sagradas Escrituras... Ou diga-me, se puderdes, quem é o juiz final quando as declarações dos pais se contradizem? Neste caso, o julgamento das Escrituras deve decidir a questão, o que não pode ser feito se não dermos às Escrituras o primeiro lugar... de modo que elas sejam em si mesmas as mais certas, mais facilmente compreendidas, mais claras e seu próprio intérprete, aprovando, julgando e iluminando todas as declarações de todos os homens… Portanto, nada, exceto as palavras divinas, deve ser o primeiro princípio para os cristãos; todas as palavras humanas são conclusões extraídas delas e devem ser confrontadas com elas e por elas aprovadas." [10]

A Bíblia completa e infalível, não a Igreja falível; um documento permanente, público, escrito, não falível, vivificante é a única autoridade doutrinária; os decretos dos concílios e papas devem estar em conformidade com as Escrituras; elas não devem ser reinterpretada para se conformar com os decretos papais ou com alguma tradição oral mística ou gnóstica. Este livro, Lutero argumentou com base na própria Bíblia, é dirigido a todos os homens; e, portanto, todos os homens têm o direito de lê-lo e interpretá-lo. A Igreja não tem o monopólio das Escrituras, nem de leitura nem de interpretação. Cada homem é um sacerdote encarregado de ler e entender corretamente a revelação que Deus graciosamente deu aos homens. A Bíblia é destinada a homens de todas as classes e profissões. Não é destinada apenas aos papas - eles nem mesmo são mencionados nas Escrituras - nem apenas aos bispos ou diáconos, mas a todos os homens, sem distinção. Cada homem responderá diretamente a Deus no juízo final - nenhum sacerdote ou papa estará lá para interceder por ele; cada homem é responsável pela salvação ou perdição de sua própria alma; cada homem será obrigado a prestar contas das ações que praticou na Terra; e, portanto, cada homem tem o direito de ler a Bíblia por si mesmo. Assim nasceu o individualismo que transformou os mundos comunais antigo e medieval. A importância da alma individual, uma alma que é imortal, [b] é muito maior do que qualquer instituição terrena, incluindo a igreja institucional.

O historiador do século XIX e início do século XX, Ernst Troeltsch, argumentou que a ala calvinista da Reforma levou esse individualismo ainda mais longe do que a ala luterana, com consequências sociais ainda mais espetaculares:

"Assim, de todos os lados, o individualismo da Igreja 'reformada' [isto é, calvinista] foi impelido à ação; o indivíduo era atraído irresistivelmente para uma absorção de todo o coração nas tarefas de serviço ao mundo e à sociedade, para uma vida de trabalho incessante, penetrante e formativo… Acima de tudo, no entanto, esse individualismo especificamente calvinista possui essa característica peculiar que em sua recusa em se expandir no lado emocional, e em seu hábito de colocar a confiança em Deus em primeiro plano e todas as relações humanas em segundo plano, em sair de si mesmo, sempre direciona sua atenção para objetivos e propósitos concretos." [11]

Da teologia dos Reformadores surgiu não só a ideia da vocação e da ética de trabalho protestante, [12] mas muito mais: a ênfase na educação e alfabetização universais, já que cada alma tem o direito e o dever de ler a Bíblia por si mesma; democracias e repúblicas, em oposição às monarquias e aristocracias, uma vez que todos os crentes são sacerdotes e todos os homens são iguais perante Deus e a lei; iniciativa econômica e criatividade, visto que os homens são feitos à imagem de Deus, salvos pela graça de Deus, e não precisam pedir autorização para cumprir sua vocação; o livre exercício da religião, o direito de se reunir, de se expressar e publicar, e muito mais. Lutero escreveu:

"O poder espiritual consiste em reinar somente sobre a alma, cuidando para que se chegue ao Batismo e ao Sacramento do Altar, ao Evangelho e à verdadeira fé, sobre a qual os imperadores e reis não têm jurisdição... Da mesma forma, a nós, clérigos, não nos é ordenado agarrar as pessoas pelo pescoço se elas não nos ouvirem... Devemos aprender a separar o poder espiritual do temporal de modo que estejam tão distantes um do outro quanto o Céu e a Terra, pois o papa obscureceu muito este assunto e confundiu os dois poderes." [13]

O historiador americano do século XX, Harold Berman, observou que a chave para a renovação da lei no Ocidente a partir do século XVI foi o conceito protestante do poder do indivíduo, pela graça de Deus, de mudar a natureza e criar novas relações sociais por meio do exercício de sua vontade. O conceito protestante de indivíduo tornou-se central para o desenvolvimento da lei moderna de propriedade e contrato. A natureza se tornou propriedade. As relações econômicas tornaram-se um contrato... A propriedade e os direitos contratuais assim criados foram considerados sagrados e invioláveis, desde que não infringissem a consciência [esclarecida pelas Escrituras]... E assim a secularização do estado, no sentido restrito da remoção dos controles eclesiásticos sobre ele, foi acompanhada por uma espiritualização e até mesmo por uma santificação da propriedade e do contrato. [14]

Não apenas a teologia protestante revolucionou o direito na Europa, mas também a economia. Luthy escreveu:

"A injunção evangélica da caridade, mutuum date nihil inde sperantes - dê e não espere em troca - foi interpretada [pela Igreja-Estado Romana] como uma lei de comportamento econômico que condenava não apenas a usura, mas toda forma de atividade lucrativa, e foi aplicada com firmeza na doutrina de mercado e troca, preços e salários, comércio exterior e investimento de capital. Em termos práticos, isso significava, simplesmente, que toda a vida econômica em sociedades não agrárias era uma vida de pecado, e como a injunção da caridade não poderia ser aplicada como uma regulamentação de mercado, a economia de mercado era, portanto, abandonada para chafurdar em sua pecaminosidade. Esse abandono havia de fato ocorrido há muito tempo. Durante séculos antes da Reforma, os tratados dos escolásticos sobre assuntos como comércio, leis de troca, ou valor e pagamento, haviam se tornado mera casuística, uma doutrina consistindo apenas em exceções sem regra. E o resultado disso foi um estado de caos intelectual, moral e jurídico, em que tudo era permitido justamente porque tudo era pecaminoso, e em que todas as blasfêmias do Banco dello Spirito Santo e da inflação de Fuggers de notas de indulgência sacadas no Tesouro de Mérito dos Santos poderiam florescer sem controle...

"A ruptura de Calvino com o corpo da doutrina eclesiástica foi, em primeira instância, um doloroso ato de honestidade e clareza intelectual, de acordo com o profundo impulso da era da Reforma de estabelecer uma conformidade mais verdadeira entre doutrina e vida, entre palavra e ação. A plena importância, não só econômica, mas também e talvez principalmente intelectual, da ruptura com a tradição escolástica seria um assunto não para um ensaio, mas para um estudo completo. Somente quando uma legitimação racional das contas de capital e juros permitiu a introdução do coeficiente de tempo nos cálculos econômicos, o pensamento econômico racional se tornou possível pela primeira vez. Porém, para dizer mais simplesmente em termos calvinistas: Apenas a distinção clara entre o reino da caridade voluntária privada para com outros seres humanos necessitados e, por outro lado, o reino da atividade econômica aquisitiva, em que os preceitos seculares, ancorados em direitos e leis positivos, de probidade, legalidade e justiça se aplicam - la loi d'equite na frase de Calvino - apenas o esboço desta distinção permitiu a redenção da condição humana, das necessidades e preocupações materiais e existenciais da humanidade, da maldição geral e indiscriminada da pecaminosidade que simplesmente abandonou tudo deste lado ao pecado. Ela substituiu essa maldição, neste mundo em que os homens devem viver e agir, pela simples exigência de que a lei e a honestidade humana, na medida em que isso for possível, sejam realizadas aqui na Terra.

"Na ética de trabalho protestante, a ruptura com a imagem dos escolásticos sobre o mundo e a sociedade era ainda mais ampla. Os escolásticos viam a miséria e o pauperismo como um mal eterno, desejado por Deus para um mundo pecaminoso. Contra a miséria em massa da humanidade, a Idade Média não conheceu nenhum gesto, exceto o do mendigo, resignadamente estendendo a mão, e o do homem rico, que com igual resignação jogava-lhe sua esmola." [15]

Antes de Weber escrever sobre as consequências econômicas da Reforma, o historiador alemão do século XIX, Leopold von Ranke, chamou João Calvino de "fundador virtual da América". Berman escreveu as seguintes palavras:

"O calvinismo também teve efeitos profundos no desenvolvimento da lei ocidental e, especialmente, na lei americana. Os puritanos levaram adiante o conceito luterano da santidade da consciência individual e também, na lei, a santidade da vontade individual refletida nos direitos de propriedade e de contrato... Puritanos do século XVII, incluindo homens como [John] Hampden, [John] Lilburne, [Walter] Udall, William Penn e outros, por sua desobediência à lei inglesa, lançaram as bases para a lei inglesa e americana de direitos e liberdades civis como expressas em nossas respectivas constituições: liberdade de expressão e de imprensa, livre exercício da religião, a prerrogativa contra a autoincriminação, a independência do júri de ditames judiciais, o direito de não ser preso sem justa causa e muitos outros direitos e liberdades. Também devemos ao congregacionalismo calvinista a base religiosa de nossos conceitos de contrato social e governo por consentimento dos governados." [16]

Talvez a coisa mais irônica sobre a Reforma é que os reformadores não previram e não poderiam ter previsto os efeitos de longo prazo que sua pregação teria na Europa e em suas colônias protestantes. O desenvolvimento de nossas liberdades políticas e econômicas foi parcialmente uma consequência não intencional de sua pregação do Evangelho. Mas essas consequências não foram involuntárias da parte de Deus, e Ele já nos havia dito isso, em uma das passagens mais incompreendidas do Sermão da Montanha de Cristo:

"Por isso, vos digo: não andeis ansiosos pela vossa vida, quanto ao que haveis de comer ou beber; nem pelo vosso corpo, quanto ao que haveis de vestir. Não é a vida mais do que o alimento, e o corpo, mais do que as vestes?

"Observai as aves do céu: não semeiam, não colhem, nem ajuntam em celeiros; contudo, vosso Pai celeste as sustenta. Porventura, não valeis vós muito mais do que as aves?...

"Considerai como crescem os lírios do campo: eles não trabalham, nem fiam. Eu, contudo, vos afirmo que nem Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles.

"Ora, se Deus veste assim a erva do campo, que hoje existe e amanhã é lançada no forno, quanto mais a vós outros, homens de pequena fé? [...] Porque os gentios é que procuram todas estas coisas; pois vosso Pai celeste sabe que necessitais de todas elas;

"Buscai, pois, em primeiro lugar, o seu reino e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas." [17]

Na época da Reforma, a Igreja-Estado Romana não havia buscado nem ensinado sobre o reino de Deus e sua justiça por um milênio, mas havia procurado estabelecer sua própria justiça, riqueza e poder. Assim que o Evangelho foi pregado e crido, o sistema econômico da Europa começou a mudar, assim como Jesus havia prometido.

O capitalismo constitucional - capitalismo laissez faire - no qual o governo tem apenas duas funções, a punição dos malfeitores e o louvor dos bons, como Paulo escreveu em Romanos 13, [18] é a consequência política e econômica e a contraparte da teologia cristã; é a prática da qual a teologia cristã é a teoria. Seria de esperar que uma instituição como a Igreja-Estado Romana, governada por um imperador absoluto, [19] estruturada em uma hierarquia rígida, de escopo supranacional, de caráter aristocrático e com nenhum de seus funcionários eleitos - uma instituição que em mais de um forma é um anacronismo, uma intrusão do mundo antigo no moderno - não favoreceria o capitalismo constitucional. Mas o quão arraigada é sua hostilidade à liberdade e à livre empresa foi uma surpresa até mesmo para este autor. Os papas expressaram seu ódio não só pelo protestantismo (um ódio talvez silenciado recentemente, não por uma mudança de espírito, mas pelo relativismo da Igreja-Estado influenciado por uma cultura pós-moderna), mas também pela expressão política e econômica do cristianismo: o capitalismo. Nas páginas que se seguem, o leitor encontrará dezenas dessas declarações do Magistério da Igreja. Elas fazem parte de um sistema de pensamento que é um dos mais impressionantes já concebidos pelos homens. Não são declarações desconexas, mas conclusões lógicas de premissas aceitas na teologia romana. São oferecidas ao mundo pelo Magistério Romano como parte de um pacote de acordos, e não temos a liberdade, como alguns católicos americanos preferem fazer, de aceitar a teologia da Igreja-Estado e rejeitar sua filosofia econômica e política. Isso vai de encontro não apenas às reivindicações da própria Igreja, mas também à razão. O autor espera que aqueles que lerem este livro compreendam melhor o que Roma declarou nos campos da teoria política e econômica e por quê.

E se houver leitores católicos inclinados a favorecer a liberdade e a livre iniciativa, que eles compreendam que sua Igreja não o faz e, portanto, devem escolher ser bons católicos ou bons cristãos.

Notas

1. "Não encontrei, repito, nenhum escritor, católico ou não católico, que contestasse seriamente a afirmação de que os países protestantes são geralmente mais prósperos do que os católicos". "Havia um acordo quase universal antes de Weber, no entanto, de que havia uma estreita associação histórica entre o protestantismo e o desenvolvimento do capitalismo em suas formas modernas" (Viner, Religious Thought and Economic Society, Melitz e Wick, editores. Durham: Duke University Press , 1978, 182, 185).

2. "Assim, mesmo se permitirmos a influência de outros fatores, os dados sugerem inequivocamente que o protestantismo é mais propício à atividade empresarial do que o catolicismo" (Stanislav Andreski, "Method and Substantive Theory in Max Weber", em Eisenstadt, The Protestant Ethic and Modernization: A Comparative View, New York: Basic Books, 1968, 55).

3. Willems, "Culture Change and the Rise of Protestantism in Brazil and Chile", em Eisenstadt, The Protestant Ethic and Modernization: A Comparative View, 197. Ver também David Martin, Tongues of Fire: The Explosion of Protestantism in Latin America. Basil Blackwell, 1990.

4. "A alegação de que o protestantismo estimulou o crescimento do capitalismo de maneiras indiretas que não podem ser subordinadas ao conceito de ética econômica de Weber, longe de refutar sua tese, meramente a amplifica" (Andreski, "Method and Substantive Theory in Max Weber", em Eisenstadt, The Protestant Ethic and Modernization: A Comparative View, 58).

5. "Kapitalismus und Kalvinismus", em Internationale Wochenschrift Für Wissenschaft, Kunst und Technik, 1909; conforme citado em Kurt Samuelsson, Religion and Economic Action: A Critique of Max Weber. Nova York: Harper Torchbooks, [1957] 1961, 9-10.

6. Ver, por exemplo, The Origins of Modern Freedom in the West, R. W. Davis, editor. Stanford University Press, 1995.

7. Para uma descrição da vida religiosa nos séculos XV e XVI na Europa, ver Carlos M. N. Eire, War Against the Idols: The Reformation of Worship from Erasmus to Calvin. Cambridge University Press, 1986.

8. Stanislav Andreski, "Method and Substantive Theory in Max Weber", em Eisenstadt, The Protestant Ethic and Modernization: A Comparative View, 53-54. Deve ser observado que o protestantismo, ao contrário do catolicismo, também proibia a mendicância.

9. João 8:31-32.

10. What Luther Says, Ewald M. Plass, editor. St. Louis: Concordia Publishing House, 1959, 87-88.

11. Ernst Troeltsch, The Social Teaching of the Christian Churches. Olive Wyon, tradutor. Dois volumes. Londres: George Allen e Unwin. New York: Macmillan [1931] 1949, II, 589. Eisenstadt escreveu: "Seguindo a análise anterior do protestantismo, propomos que o potencial transformador de uma dada religião é tanto maior quanto mais forte é a ênfase nela no transcendentalismo, na responsabilidade individual e ativismo, em uma relação não mediada 'aberta' entre o indivíduo e a tradição sagrada... e em um alto grau de abertura social entre os grupos religiosamente ativos... No catolicismo e ainda mais no cristianismo oriental, a situação era diferente. Muitas das seitas eram ritualísticas e/ou mais afastadas da participação ativa no mundo secular; e mesmo quando participavam da vida secular, seu objetivo era unicamente a conservação da acomodação à ordem existente, não mudança ou transformação". (S. N, Eisenstadt, "The Protestant Ethic Thesis in an Analytical and Comparative Framework", em The Protestant Ethic and Modernization: A Comparative View, New York: Basic Books, 1968, 20).

12. A ética de trabalho protestante não foi algo inventado pelos reformadores, mas apenas uma descoberta do que a própria Bíblia ensina sobre o trabalho. Aqui estão algumas declarações relevantes: "Deus descansou de toda a sua obra" (Gênesis 2); "Seis dias trabalharás e farás todo o teu trabalho" Êxodo 20); "... o povo tinha vontade de trabalhar" (Neemias 4); "Vês um homem que se destaca no seu trabalho? Ele estará diante de reis" (Provérbios 22). "Meu Pai trabalha até agora, e eu trabalho" (João 5); "... se alguém não quer trabalhar, também não deve comer" (2 Tessalonicenses 3); "Tudo o que fizerem, faça-o de coração, como para o Senhor e não para os homens" (Colossenses 2). Existem inúmeras passagens relevantes sobre a necessidade, dignidade e até mesmo a divindade do trabalho nas Escrituras. O Deus de Abraão, Isaque, Jacó e Jesus, ao contrário dos deuses dos gregos e romanos, trabalharam. Troeltsch observou que "A ética calvinista compartilhava da visão luterana sobre o trabalho, ao qual atribuía um alto valor, considerando-o como o exercício prático de uma vocação apontada por Deus e, portanto, como adoração divina; também o considerava como um método de autodisciplina e de afastamento dos maus desejos" (Troeltsch, The Social Teaching of the Christian Churches, II, 641).

13. What Luther Says, Plass, 294.

14. Harold Berman, The Interaction of Law and Religion, Londres: SCM Press, 1974, 64-65.

15. Herbert Luthy, "Once Again: Calvinism and Capitalism", em Eisenstadt, The Protestant Ethic and Modernization: A Comparative View, 105-107. William Perkins, um dos maiores teólogos protestantes do século XVII, distinguiu claramente a visão bíblica e protestante da visão católica ao propor e responder a esta pergunta: "... se todo homem... deve mostrar-se como um peregrino e estrangeiro neste mundo... não é um bom estado de vida para um homem desprezar o mundo, e todas as coisas nele, e se entregar à mendicância perpétua e à pobreza voluntária?" Ele respondeu assim: "A [palavra] mundo nas Escrituras é considerada de várias maneiras; primeiro, como corrupções e pecados do mundo: e estes devem ser desprezados por todos os meios possíveis... Em segundo lugar, como bênçãos temporais, como dinheiro, terras, riqueza, sustento, e outras coisas externas, como concerne à necessidade ou a manutenção conveniente desta vida natural. E neste sentido o mundo não deve ser desprezado, pois em si mesmas, as coisas terrenas são as boas dádivas de Deus, que nenhum homem pode simplesmente desprezar, sem prejudicar a disposição e a providência de Deus, ambas as quais foram ordenadas para a vida natural". (William Perkins, The Works, London, 1612-1613, III, 102-103). Perkins também explicou, seguindo o comentário de Lutero sobre a Epístola do Apóstolo Paulo aos Gálatas, o que são boas obras: "Ora, as obras de cada vocação, quando realizadas de maneira santa, são feitas com fé e obediência e servem notavelmente para a glória de Deus, seja a vocação nunca tão vil... A maldade da vocação não diminui a bondade da obra: porque Deus não olha para a excelência da obra, mas para o coração do trabalhador. E a ação de um pastor em apascentar ovelhas, realizada, como eu disse, em sua espécie, é um trabalho tão bom diante de Deus, como é a ação de um juiz em dar uma sentença, ou o de um magistrado em uma decisão, ou de um Ministro na pregação", e muito melhor, podemos acrescentar, do que as ações de padres, freiras e monges em suas paróquias, conventos e mosteiros (Perkins, The Works, 1.758).

16. Berman, The Interaction of Law and Religion, 66-67.

17. Mateus 6.

18. Alguns farão objeções à limitação dos poderes legítimos do governo com base no fato de que Paulo não proibiu o governo de desempenhar outras funções, como administrar escolas, fornecer assistência médica, pensões para idosos e parques nacionais, porém tal objeção erra o alvo. O governo está autorizado a fazer apenas o que as Escrituras autorizam. Argumentar que o silêncio de Paulo é na verdade uma autorização para o governo fazer qualquer coisa que escolher é rejeitar a visão de que os poderes do governo foram apenas especificados e adotar a noção de que os poderes do governo são de fato totalitários. Esse argumento nos forçaria à conclusão de que, uma vez que Paulo não proibiu o governo de exercer qualquer função ou atividade, o governo está autorizado a fazer tudo. Se um argumento semelhante fosse aplicado à Grande Comissão, por exemplo, em que Cristo ordena seus discípulos a pregar o Evangelho, teríamos que concluir que Cristo estava realmente autorizando-os a ensinar tudo, não apenas o Evangelho, uma vez que Ele não os proibiu de ensinar materialismo e politeísmo.

19. "Como governante da Cidade do Vaticano, o papa é o monarca absoluto da Europa, com autoridade legislativa, judicial e executiva suprema. Ele também controla todos os ativos do Vaticano, uma vez que esta é uma economia estatal sem propriedade privada, além das posses pessoais dos empregados e residentes" (Reese, Inside the Vatican, 16).

Notas adicionais

a. No sentido de uma colaboração meritória, à maneira dos sacramentos católicos, como indica o contexto.

b. Um estudo criterioso do conceito bíblico da natureza humana e do uso das palavras "alma" e "espírito", tanto no Antigo como no Novo Testamento, não endossa a ideia de que a alma é imortal. Paulo declara que a imortalidade é um atributo exclusivamente divino (I Timóteo 1:17; 6:14-16; Hebreus 9:14), o qual é prometido ao homem sob certas condições (João 6:47; 17:3; Romanos 2:7). O ensinamento dualista, segundo o qual o corpo mortal nada mais é do que a prisão de uma alma imaterial e imortal, tem sua origem no paganismo e encontrou guarida na igreja cristã em fins do 2º século.

Capítulo 1

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