Megalomania Eclesiástica - 2. Destinação Universal dos Bens


A noção tomista do comunismo original - a negação de que a propriedade privada é parte da lei natural, mas que a propriedade comum é natural e divina - é fundamental para todos os argumentos católicos para várias formas de coletivismo, desde o feudalismo medieval e o socialismo de guilda até o fascismo e a teologia da libertação do século XX Os papas referem-se a esse comunismo original como a "destinação universal de todos os bens". Tomemos, por exemplo, a expressão de João Paulo II em sua encíclica Da Solicitude pelas coisas sociais, de 1987:

"É necessário reafirmar o princípio característico da doutrina social cristã: os bens deste mundo são originalmente destinados a todos. O direito à propriedade privada é válido e necessário, mas não anula o valor deste princípio. A propriedade privada, de fato, está sob uma 'hipoteca social', o que significa que tem uma função intrinsecamente social, baseada e justificada precisamente pelo princípio da destinação universal dos bens." [1]

Este princípio - a destinação universal dos bens - é tão importante no pensamento social católico que todos os direitos devem estar subordinados a ele. Paulo VI deixou isso bem claro em sua encíclica Do progresso dos povos, de 1967:

"... cada homem tem, portanto, o direito de encontrar no mundo o que é necessário para si. O recente Concílio [Vaticano II] nos lembrou disso: 'Deus planejou a terra e tudo o que ela contém para o uso de todas as pessoas e povos. Assim, como todos os homens seguem a justiça e se unem na caridade, os bens criados devem abundar para eles em uma base razoável'. Todos os demais direitos, incluindo os de propriedade e de livre comércio, devem estar subordinados a este princípio." [2]

Observe as palavras: "Todos os demais direitos, incluindo os de propriedade e de livre comércio, devem estar subordinados a este princípio". "Todos os demais direitos, sejam quais forem", incluem, naturalmente, não apenas o direito à propriedade privada e o direito à livre iniciativa, mas os direitos de adorar, expressar, ensinar, escrever, pensar e publicar livremente - na verdade, o direito à própria vida. No pensamento econômico católico há uma hierarquia de princípios, e o mais importante deles, ao qual todos os outros estão subordinados, é o princípio da destinação universal dos bens. [3] Este é o corolário econômico do princípio da solidariedade, que discutiremos na Parte 2 sobre o pensamento político católico.

Os papas não hesitaram em aplicar este princípio católico fundamental. Em 1990, falando sobre a chamada crise ecológica, João Paulo II escreveu que

"... a terra é, em última análise, uma herança comum, cujos frutos são para o benefício de todos. Nas palavras do Concílio Vaticano II, 'Deus destinou a terra e tudo o que ela contém para uso de todas as pessoas e de todos os povos' (Gaudium et Spes, 69). Isso tem consequências diretas para o problema em questão. É manifestamente injusto que uns poucos privilegiados continuem a acumular bens excedentes, desperdiçando os recursos disponíveis, enquanto massas de pessoas vivem em condições de miséria no nível mais baixo de subsistência." [4]

De acordo com João Paulo II, não é apenas injusto que os americanos tenham carros e casas enquanto os chineses andam a pé e moram em cabanas, mas é "manifestamente injusto”, isto é, tão obviamente injusto que nem mesmo é preciso se preocupar em discutir o assunto. É manifestamente injusto porque a Terra e tudo o que nela existe pertencem a todas as pessoas em comum - devido ao princípio fundamental da destinação universal dos bens.

Gaudium et Spes, a Constituição do Vaticano II citada por João Paulo II, explicou mais detalhadamente:

"Deus criou a terra com tudo o que ela contém para o uso de todos os seres humanos e povos... O direito de ter uma parte dos bens terrestres suficiente para si e sua família pertence a todos... Se alguém está em extrema necessidade, ele tem o direito de obter para si mesmo o que precisa das riquezas dos outros. Visto que há tantas pessoas prostradas de fome no mundo, este Sagrado Concílio exorta todos, tanto indivíduos como governos, a relembrar o aforismo dos Padres: 'Alimente o homem que está morrendo de fome, porque se você não o alimentar, o estará matando'." [5]

Sempre se deve ter em mente o primado da necessidade, a comunidade originária dos bens, a destinação universal dos bens e seu status privilegiado e superior no direito natural, quando se leem declarações da Igreja-Estado Romana que parecem defender a propriedade privada. A Igreja não defende a propriedade privada em bases morais - é claro, ela reivindica direitos sobrenaturais e divinos à sua própria propriedade - mas apenas como uma instituição humana que pode ou não ser conveniente em um determinado momento. Além disso, a propriedade privada não é apenas algumas vezes inadequada; ela também é em todos os tempos a injusta manifestação da desigualdade (que aparentemente é indistinguível da necessidade); ou seja, a propriedade privada é obviamente imoral em todos os momentos, uma vez que não há tempos de igualdade. A igualdade econômica é uma ilusão, um estado de coisas impossível. Portanto, como a propriedade privada é imoral, todos os homens - indivíduos e governos - têm a obrigação moral de redistribuir os bens mantidos injustamente pelos proprietários.

Essa posição é semelhante à dos comunistas e socialistas, mas a Igreja-Estado Romana tentou distinguir sua posição sobre a propriedade tanto da visão comunista quanto da capitalista. João Paulo II, escrevendo em Laborem Exercens, disse:

"O princípio acima [o direito à propriedade privada], como foi então afirmado e como ainda é ensinado pela Igreja, diverge radicalmente do programa do coletivismo proclamado pelo marxismo e posto em prática em vários países nas décadas seguintes à época da encíclica de Leão XIII [Rerum Novarum, 1891]. Ao mesmo tempo, difere do programa do capitalismo praticado pelo liberalismo e dos sistemas políticos por ele inspirados. Neste último caso, a diferença consiste na forma como o direito à propriedade é entendido. A tradição cristã nunca sustentou esse direito como absoluto e intocável. Pelo contrário, sempre entendeu esse direito dentro do contexto mais amplo do direito comum a todos de usar os bens de toda a criação; o direito à propriedade privada está subordinado ao direito de uso comum, ao fato de os bens serem destinados a todos." [6]

Observe que, embora João Paulo II tenha afirmado que a doutrina da Igreja-Estado sobre propriedade difere da dos marxistas, ele não explicou como isso ocorre. Ele simplesmente afirmou que "diverge radicalmente". Ele explicou apenas como a doutrina de propriedade da Igreja difere da ideia capitalista de propriedade privada. Marx também ensinou um comunismo original - que os bens em uma época da história humana primitiva pertenciam a todos, e que todos deveriam desfrutar de tais bens hoje. Como Marx, a Igreja ensina que a expressão "todos os bens" inclui não apenas os bens encontrados na natureza, mas também os bens manufaturados. João Paulo II declarou que todos os homens devem ter "... acesso aos bens que se destinam ao uso comum: tanto os bens da natureza quanto os manufaturados". [7]

Como a propriedade privada é uma criação da razão humana e do governo, os governos podem regulá-la e controlá-la como quiserem. Pio XI explica em Sobre a restauração e aperfeiçoamento da ordem social:

"Desde que observada a lei natural e divina, o poder público, em vista do bem comum, poderá especificar com maior precisão o que é lícito e o que é ilícito para os proprietários no uso de seus bens… A história comprova que o direito de propriedade, como outros elementos da vida social, não é absolutamente rígido…" [8]

Pio XI acrescentou um erro lógico à falsa premissa da destinação universal e do uso comum dos bens: a história pode de fato ilustrar que a propriedade privada foi regulamentada pelos governos de várias maneiras, mas a história não pode mostrar que essa regulamentação é certa, ou que o direito de propriedade não é absoluto. Talvez - apenas talvez - os governos, ao regulamentarem a propriedade privada de várias maneiras, estivessem violando esse direito e interferindo no princípio da propriedade privada. Apelar para a história - mesmo uma longa história - da regulação da propriedade privada pelo governo como prova de que o próprio princípio não é absoluto é confundir história com ética, o "é" com o "deveria ser" ou, neste caso, confundir "o que foi" com "o que deveria ser". [9]

O Concílio Vaticano II reiterou a doutrina: "... é direito da autoridade pública impedir que alguém faça mau uso de sua propriedade privada em detrimento do bem comum". [10] O bem comum, como veremos em nossa discussão sobre o pensamento político da Igreja-Estado Romana, é a ficção pela qual as autoridades públicas justificam tudo o que desejam fazer.

Notas

1. João Paulo II, Sollicitudo Rei Socialis, Da solicitude pelas coisas sociais (1987), 42.

2. Paulo VI, Populorum Progressio, Do progresso dos povos (1967), 22.

3. Em Laborem Exercens, Do trabalho humano (1981), João Paulo II referiu-se a este princípio como "o primeiro princípio de toda a ordem ética e social, a saber, o princípio do uso comum dos bens" (46). Em Mater et Magistra, Sobre a recente evolução da Questão Social à luz da Doutrina Cristã (1961), João XXIII escreveu: "Quanto ao uso dos bens materiais, nosso predecessor [Pio XII, 1941] declarou que o direito de todo homem de usá-los para seu próprio sustento é anterior a todos os outros direitos na vida econômica e, portanto, é anterior até mesmo ao direito de propriedade privada" (43). Observe a distinção papal entre propriedade e uso. Essa distinção entre a propriedade legal do bem e o direito de usar esse bem é característica do feudalismo e a base do fascismo moderno.

4. João Paulo II, The Ecological Crisis: A Common Responsibility (1 de janeiro de 1990), 8.

5. Concílio Vaticano II, Gaudium et Spes, Constituição pastoral sobre a Igreja no mundo moderno (1965), 69.

6. João Paulo II, Laborem Exercens (1981), 34-35.

7. João Paulo II, Laborem Exercens (1981), 46.

8. Pio XI, Quadragesimo Anno, Sobre a restauração e aperfeiçoamento da ordem social (1931), 25.

9. É claro que as teorias da lei natural e da tradição com as quais a Igreja-Estado Romana está comprometida cometem o mesmo erro lógico.

10. Concílio Vaticano II, Gaudium et Spes (1965), 71.

Capítulo 3

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