Megalomania Eclesiástica - 10. Teoria Política Católica

Para entender a opinião de Acton sobre o papado, devemos nos lembrar da teoria da autoridade eclesiástica e política da Igreja-Estado Romana. A Igreja Romana traça sua genealogia – e, portanto, sua autoridade – até Pedro, uma fantasia eclesiástica e histórica. Em vez disso, ela deveria traçar sua genealogia até dois outros homens, Diótrefes e Constantino. F. A. Ridley argumentou que o proto-papa foi Augusto:

"É evidente para qualquer um que possa penetrar nas ficções – inspiradas ou não – e ver até o alicerce dos fatos que, na medida em que o verdadeiro fundador histórico do papado pode ser considerado um único homem, este foi Augusto, o fundador do Império Romano, e não Pedro, o obscuro pescador da Galileia. Se Augusto, e não Constantino, tivesse fundado Constantinopla para ser a capital do Império Romano, a Sé Romana provavelmente nunca teria emergido da lama das instituições provinciais.... A evolução gradual do Estado democrático da Roma republicana para o despotismo teocrático dos Césares romanos posteriores sem dúvida forneceu um protótipo direto à evolução do presbitério romano original para o papado monárquico de tempos posteriores." [1]

"Janus", o pseudônimo do historiador católico do século XIX Ignaz von Dollinger, escreveu: "[O cardeal] Belarmino reconheceu que, sem as falsificações Pseudo-Isidorianas,... seria impossível criar até mesmo uma aparência de evidência tradicional" para a supremacia do papa. [2] Por quase oito séculos, o papado atribuiu seu poder político a Constantino, até que Lorenzo Valla demonstrou que a Doação de Constantino era uma falsificação, provavelmente cometida pelo próprio papado para reforçar suas pretensões ao poder político. [3] No entanto, os novos imperadores romanos – quase 500 anos depois que Valla expôs a farsa – ainda não admitiram que sua reivindicação de poder político e jurisdição se baseia em documentos falsos." [4]

A noção da preeminência de um homem nas igrejas não foi um desenvolvimento tardio. Às vezes, os cristãos resistem à noção de que as origens da Igreja-Estado Romana podem ser encontradas na Bíblia. Não deveriam. O Novo Testamento ensina claramente que o Anticristo já estava em ação na época dos apóstolos. [5] Sua influência pode ser vista em doutrinas como a proibição do casamento, a proibição de comer carne, o livre-arbítrio, a lei natural, o ascetismo e a observância da lei como condição de salvação. [6] [a] A estrutura da Igreja-Estado Romana pode não ter sido concluída por séculos – na verdade, ainda não foi concluída –, mas seu início pode ser atribuído a essas doutrinas e práticas condenadas nas Escrituras. O crescimento do próprio papado é a história do triunfo gradual dos megalomaníacos eclesiásticos no presbitério de Roma sobre seus oponentes, transformando o governo presbiteriano original de Roma em um governo episcopal, depois em uma monarquia absoluta e, finalmente, em um império mundial.

Em sua terceira carta, o apóstolo João mencionou um homem chamado Diótrefes. João relatou:

"Escrevi alguma coisa à igreja; mas Diótrefes, que gosta de exercer a primazia entre eles, não nos dá acolhida. Por isso, se eu for aí, far-lhe-ei lembradas as obras que ele pratica, proferindo contra nós palavras maliciosas. E, não satisfeito com estas coisas, nem ele mesmo acolhe os irmãos, como impede os que querem recebê-los e os expulsa da igreja." [7]

O que Diótrefes estava tentando fazer em nível local, mesmo antes da morte do apóstolo João – o estabelecimento do governo monepiscopal, ou seja, o governo de um homem, em oposição à pluralidade de presbíteros (ou bispos: o Novo Testamento usa os termos de forma intercambiável) –outros líderes da igreja tentariam em outras igrejas locais e, depois, em nível metropolitano e regional, até que, após vários séculos, o bispo de Roma venceu a luta pelo poder eclesiástico. Não há evidências bíblicas ou históricas que mostrem que o primeiro papa foi o apóstolo Pedro, como afirma a Igreja-Estado Romana; Diótrefes foi um proto-papa; ele era um líder ambicioso e anticristão da igreja que gostava de ter preeminência, que se insurgiu contra os cristãos com palavras maliciosas e os expulsou da igreja. Suas ações eram opostas às palavras de Cristo: "Sabeis que os príncipes dos gentios os dominam, e que os grandes exercem autoridade sobre eles. Mas não será assim entre vocês...." [8]

Em sua primeira e segunda cartas, João havia alertado os primeiros cristãos de que o Anticristo já estava atuando nas igrejas e no mundo. [9] Mas embora Diótrefes tenha sido um precursor dos papas, o engrandecimento da antiga Igreja Romana e de seu bispo e o desenvolvimento de uma teoria para justificar o poder papal levaram séculos. Não há nada nas Escrituras que declare expressamente ou implique logicamente a primazia da igreja de Roma ou o cargo de papa na igreja cristã. Longe de ser divinamente instituída, a Igreja-Estado Romana é inteiramente um desenvolvimento de homens ambiciosos e, às vezes, inescrupulosos, enganadores, fraudulentos e falsificadores. [10]

Uma das mais importantes falsificações que apóiam as reivindicações do papado romano foi a Doação de Constantino. Por 700 anos, a infalível Igreja Romana e o papa autoritário afirmaram sua autenticidade, basearam nela suas reivindicações de poder político e, como Acton relatou, mataram aqueles que rejeitaram suas reivindicações. Escrita provavelmente em meados do século VIII, a Doação de Constantino pretendia transmitir um presente do imperador romano Constantino para o bispo de Roma. Constantino transferiu a capital do Império Romano de Roma para Constantinopla em 330 d.C. Quando ele partiu, segundo a falsificação, ele deu

"Aos santos apóstolos, meus senhores, os mais abençoados Pedro e Paulo, e por meio deles também ao abençoado Silvestre, nosso pai, pontífice supremo e papa universal da cidade de Roma, e aos pontífices, seus sucessores, que até o fim do mundo se sentarão no trono do abençoado Pedro, concedemos e por este presente transmitimos nosso Palácio imperial de Latrão, que é superior e supera todos os palácios do mundo inteiro; e ainda o diadema, que é a coroa de nossa cabeça; e a mitra; como também o sobrecéu, isto é, a estola que normalmente envolve nosso pescoço imperial; e o manto púrpura e a túnica escarlate e todas as vestes imperiais. ... Portanto, para que a coroa pontifícia não seja menosprezada, mas para que a dignidade de um cargo mais do que terreno e o poder de sua glória sejam ainda mais venerados, transmitimos ao já mencionado e abençoado Silvestre, papa universal, nosso palácio, como preferência, e também todas as províncias, palácios e distritos da cidade de Roma, da Itália e das regiões do Ocidente; e, legando-os ao poder e domínio dele e dos pontífices, seus sucessores, nós (por meio de decisão imperial fixa, mediante esta nossa divina, sagrada e autorizada sanção) determinamos e decretamos que os mesmos sejam colocados à sua disposição e os concedemos legalmente como posse permanente à santa Igreja Romana." [11]

Com base nesse documento fraudulento, a Igreja-Estado Romana não apenas alegou que Constantino havia dado o Império Romano do Ocidente ao Estado-Igreja (sugerindo claramente que os papas são os sucessores de César, não de Pedro), mas também que Constantino havia transmitido todos os adereços do poder imperial, incluindo a estola, a coroa, o manto e a túnica, que os papas ainda usam hoje. Apesar do fato de que a Doação de Constantino é conhecida há 500 anos por ser uma falsificação, ela e outras falsificações, como as falsas Decretais, estão tão entrelaçadas com a história e a teoria política da Igreja-Estado Romana que a infalível Igreja-Estado não as repudiou, pois isso poderia arruinar sua reivindicação de poder político e infalibilidade.

Ao longo dos séculos, a Igreja-Estado Romana desenvolveu uma elaborada racionalização para suas pretensões ao poder eclesiástico e político. Sua teoria começa, curiosamente, com as Escrituras. As Escrituras ensinam que toda autoridade, política e eclesiástica, procede de Deus. Os teólogos da Igreja-Estado Romana citaram Romanos 13:1: "Toda alma esteja sujeita às autoridades governamentais, pois não há autoridade que não proceda de Deus, e as autoridades que existem foram designadas por Deus". Eles entenderam essa passagem como uma negação de qualquer tipo de teoria republicana ou democrática eclesiástica ou civil. O poder político e a autoridade não surgem do consentimento do povo, mas da delegação de Deus. O poder e a autoridade fluem de cima para baixo, não de baixo para cima.

O próximo passo em sua fantasia política artisticamente construída foi afirmar que Deus delegou essa autoridade a um homem: o bispo de Roma. Bernardo de Claraval (1090-1153) expôs a teoria com estas palavras:

"... aquele que nega que a espada pertence a ti [o papa] não ponderou suficientemente as palavras do Senhor, que, dirigindo-se a Pedro, disse: 'Mete a tua espada na bainha' (João 18:11). Pois aqui está claramente implícito que até mesmo a espada material é sua, para ser desembainhada a seu pedido, embora não por sua mão. Além disso, a menos que essa espada também pertencesse a ti em algum sentido, quando os discípulos disseram a Cristo: 'Senhor, eis aqui duas espadas' (Lucas 22:38), ele nunca teria respondido como respondeu: 'É suficiente', mas sim 'é demais'.

"Podemos, portanto, concluir que ambas as espadas, a saber, a espiritual e a material, pertencem à Igreja e que, embora apenas a primeira deva ser empunhada por suas próprias mãos, as duas devem ser empregadas em seu serviço. Cabe ao sacerdote usar a espada da palavra, mas atacar com a espada de aço pertence ao soldado, embora deva ser feito pela autoridade e vontade do sacerdote e pelo comando direto do imperador.... Pois as duas espadas pertencem a Pedro, a fim de serem desembainhadas sempre que necessário, uma por sua própria mão, a outra por sua autoridade." [12]

Essa teoria das duas espadas, tão comum durante a Idade Média, baseia-se em uma interpretação errônea, imaginativa e conveniente de Lucas 22:38: "E eles disseram: Senhor, eis aqui duas espadas. E ele lhes disse: Basta." Brian Tierney, um notável historiador católico do século XX, escreveu apropriadamente: "Toda uma pirâmide invertida de fantasia política foi erguida com base nesse único versículo das Escrituras". [13]

Em 1075, alguns anos antes de Bernardo, um dos papas mais ambiciosos, Gregório VII, anteriormente conhecido como Cardeal Hildebrando, havia escrito o Dictatus Papae, do qual foram extraídas estas proposições:

1. Que a Igreja Romana foi fundada somente por Deus.

2. Que somente o Pontífice Romano deve ser corretamente chamado de universal.

3. Que somente ele pode depor ou reintegrar bispos.

4. Que seu legado, mesmo que de grau inferior, tem precedência em um conselho de bispos e pode proferir uma sentença de deposição contra eles.

5. Que somente a ele é lícito promulgar novas leis de acordo com as necessidades da época....

6. Que somente ele pode usar as insígnias imperiais.

7. Que o Papa é o único cujos pés devem ser beijados por todos os príncipes.

8. Que somente sua bênção deve ser recitada nas igrejas.

9. Que seu título é único no mundo.

10. Que ele pode depor imperadores.

18. Que nenhuma sentença sua pode ser retratada por ninguém; e que somente ele, dentre todos, pode retratá-la.

19. Que ele próprio não pode ser julgado por ninguém.

22. Que a Igreja Romana nunca errou, nem nunca, pelo testemunho das Escrituras, errará por toda a eternidade.

27. Que o Papa pode absolver os súditos de homens injustos de sua fidelidade a eles.

Nessas sentenças, Gregório VII resumiu a teoria do poder papal como era no século XI. O papado era claramente muito diferente de seus primórdios em Roma.

Um dos papas mais brilhantes e audaciosos da Idade Média foi Inocêncio III (1198-1216). Ele não só entendia os fundamentos do pensamento político romano, como também os expunha com clareza e destacava algumas de suas implicações mais importantes. Em um sermão sobre a consagração de um papa, Inocêncio III escreveu: "... Pedro assumiu sozinho a plenitude do poder. Vejam, então, quem é esse servo colocado sobre a casa, verdadeiramente o vigário de Jesus Cristo, sucessor de Pedro, ungido do Senhor, um Deus do Faraó, colocado entre Deus e o homem, inferior a Deus, mas superior ao homem, que julga todos e não é julgado por ninguém...." [15] De acordo com a teoria política oficial da Igreja Católica Romana, o papa é um semideus. A afirmação de teocracia totalitária do papado é tão pagã quanto as reivindicações dos antigos imperadores romanos, com os quais tem alguma semelhança. O historiador católico Tierney tentou justificar a teocracia totalitária da Igreja-Estado Romana argumentando que "é preciso lembrar que a teocracia é um padrão normal de governo". [16] A afirmação é bastante verdadeira, se por "normal" entendermos "usual", pois até mesmo Cristo disse que os gentios dominam uns sobre os outros. Mas Cristo continuou dizendo: "Não será assim entre vós". [17] Os gentios exercem domínio uns sobre os outros, mas os líderes cristãos devem ser servos, não senhores. A teoria política cristã não é uma teoria política pagã, mas a teoria política católica é uma teoria política pagã.

Em uma carta ao patriarca de Constantinopla (1199), Inocêncio III escreveu: "... Tiago, o irmão do Senhor que 'parecia ser um pilar' (Gálatas 1:19), satisfeito apenas com Jerusalém... deixou para Pedro não apenas a Igreja Universal, mas o mundo inteiro para governar....". [18] Em uma carta ao imperador Aleixo de Constantinopla (1201), Inocêncio III escreveu: "... qualquer um que não reconheça Pedro e seus sucessores como pastores e mestres está fora de seu rebanho [de Cristo]. Não precisamos mencionar, já que são tão bem conhecidas, as palavras que Cristo disse a Pedro e, por meio de Pedro, a seus sucessores: 'Tudo o que ligardes na Terra, etc.' (Mateus 16:19), com exceção de nada quando ele disse: 'Tudo o que'." [19]

Em uma carta ao arcebispo de Ravenna (1198), Inocêncio III escreveu: "A liberdade eclesiástica não é mais bem cuidada em nenhum lugar do que onde a igreja romana tem pleno poder nos assuntos temporais e espirituais." [20]

Esse é o significado da liberdade religiosa no pensamento do papado até o século XX: poder total para a Igreja-Estado Romana em assuntos temporais e espirituais. Liberdade é poder. [21] Em sua carta Sicut Universitatis Conditor, de 1198, Inocêncio III fez uma distinção entre o poder espiritual e o secular, usando a analogia, não original para ele, do Sol e da Lua. [22]

"Assim como Deus, fundador do universo, constituiu dois grandes luminares no firmamento, o maior para dominar o dia e o menor para dominar a noite, ele estabeleceu no firmamento da Igreja Universal, que é representada pelo nome do céu, duas grandes dignidades, uma maior para presidir, por assim dizer, os dias das almas, e uma menor para presidir a noite dos corpos. Elas são a autoridade pontifícia e o poder real. Assim como a Lua recebe sua luz do Sol e, por essa mesma razão, é menor tanto em quantidade quanto em qualidade, em seu tamanho e em seu efeito, assim também o poder real deriva da autoridade pontifícia o esplendor de sua dignidade...."

Em sua decretal Venerabilem Fratrem (1202), Inocêncio III repetiu o argumento de que o poder temporal é subserviente ao poder espiritual e que o "próprio direito e poder" do imperador do Sacro Império Romano procede do papa. [23]

"Esse direito e poder [dos príncipes] veio a eles da Sé Apostólica, que transferiu o Império Romano dos gregos para os alemães na pessoa de Carlos Magno... O direito e a autoridade para examinar as pessoas eleitas como rei – que deve ser promovido ao cargo de imperador – pertence a nós, que o ungimos, consagramos e coroamos."

Inocêncio III declarou: "Obtive de Pedro a mitra para o meu sacerdócio e a coroa para a minha realeza; ele me fez vigário daquele em cuja veste está escrito: Rei dos Reis e Senhor dos Senhores...." [24]

O fato de o papa ter concedido autoridade ao imperador ilustrava a abundância da autoridade papal. Ao longo dos séculos, foi assim que o argumento se desenvolveu: O poder político em si não é derivado de Constantino, embora a jurisdição direta sobre o Império Romano seja. O poder político em si foi dado a Pedro por Jesus e, portanto, descende de Pedro por meio de todos os papas romanos.

Em 1236, Gregório IX (1227-1241) escreveu uma carta ao imperador Frederico II, na qual argumentava que a Doação de Constantino era uma das bases do poder temporal do papado:

"É publicamente óbvio para todo o mundo que o supracitado Constantino, que havia recebido a monarquia exclusiva sobre todas as partes do mundo, decidiu como justo... que, assim como o vigário do Príncipe dos Apóstolos governava o império do sacerdócio e das almas em todo o mundo, ele também deveria reinar sobre as coisas e os corpos em todo o mundo; e... o Imperador Constantino humilhou-se por seu próprio voto e entregou o Império aos cuidados perpétuos do Romano Pontífice, com as insígnias e cetros imperiais e a Cidade e o Ducado de Roma. ... Daí, mais tarde, no supracitado Carlos Magno... a Sé Apostólica transferiu a sede do julgamento do Império para os alemães,... embora não reduzindo em nada a substância de sua própria jurisdição...." [25]

Gregório apelou para a Doação como uma concessão de poder tão óbvia e conhecida que pôs fim a todas as discussões sobre o poder temporal.

Mas os imperadores, que também cobiçavam o poder, logo argumentaram que, se a Igreja-Estado Romana havia recebido o império como um presente de Constantino, talvez um imperador posterior pudesse rescindir o presente. Para responder a esse argumento, Inocêncio IV (1243-1254), em sua encíclica Eger Cui Levia, de 1246, expandiu a reivindicação da Igreja-Estado Romana ao poder político do caso específico do Sacro Império Romano-Germânico para o princípio geral de que todo poder político pertence por direito ao papa:

"Quem quer que procure se esquivar da autoridade do Vigário de Cristo... prejudica assim a autoridade do próprio Cristo. O Rei dos reis nos estabeleceu na Terra como seu representante universal e nos conferiu plenos poderes, dando ao príncipe dos apóstolos e a nós o poder de ligar e desligar na Terra não apenas todos os homens, mas também todas as coisas.... O poder do governo temporal não pode ser exercido fora da igreja, pois não há poder constituído por Deus fora dela.... São desprovidos de perspicácia e incapazes de investigar a origem das coisas aqueles que imaginam que a Sé Apostólica recebeu de Constantino a soberania do império, quando a possuía anteriormente, como se sabe, por natureza e potencialmente. Nosso Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, verdadeiro homem e verdadeiro Deus... constituiu, em benefício da Santa Sé, uma monarquia não apenas pontifícia, mas real; confiou ao bem-aventurado Pedro e a seus sucessores as rédeas do império, tanto terrestre quanto celestial, como indica a pluralidade das chaves. O Vigário de Cristo recebeu o poder de exercer sua jurisdição por um sobre a Terra para as coisas temporais, pelo outro no Céu para as coisas espirituais. Na verdade, quando Constantino se uniu à igreja católica por meio da fé em Cristo, ele humildemente renunciou à igreja a tirania desordenada que antes exercia fora dela... e recebeu dentro da igreja do vigário de Cristo, o sucessor de Pedro, um poder devidamente ordenado de governo sagrado... e aquele que antes abusava de um poder que lhe era permitido, depois exerceu uma autoridade que lhe foi concedida.... De fato, o poder dessa espada material está implícito na igreja, mas se torna explícito por meio do imperador que o recebe da igreja." [26]

Para responder ao argumento dos imperadores, os papas afirmaram que tanto o poder político quanto o eclesiástico haviam sido dados somente a Pedro. Em suas Decretales (1250), Inocêncio IV escreveu que "o imperador é o protetor do papa e faz um juramento a ele e mantém o império dele....". [27] Além disso, "o papa, que é o vigário de Jesus Cristo, tem poder não apenas sobre os cristãos, mas também sobre todos os infiéis, pois Cristo tem poder sobre todos.... Todos os homens, fiéis e infiéis, são ovelhas de Cristo por criação.... O papa tem jurisdição e poder sobre todos de jure, embora não de facto. [28]

O cardeal Hostiensis, contemporâneo de Inocêncio IV, escreveu que, pelo fato de o papa estar para o imperador como o Sol está para a Lua, "a dignidade sacerdotal é sete mil, seiscentas e quarenta e quatro vezes e meia maior do que a real, pois lemos no quinto livro do Almagesto de Ptolomeu, Proposição 18, 'Está claro que a magnitude do sol contém a magnitude da lua sete mil seiscentas e quarenta e quatro vezes e meia'." [29]

Bonifácio VIII (1294-1303) repetiu, ampliou e declarou literal e vigorosamente essa reivindicação papal ao poder absoluto na bula Unam Sanctam (1302):

"As palavras do Evangelho nos ensinam que nesta igreja e em seu poder há duas espadas, uma espiritual e outra temporal.... Certamente, qualquer um que negue que a espada temporal está sob o poder de Pedro não prestou atenção às palavras do Senhor quando ele disse: 'Mete a tua espada na bainha' (Mateus 26:52). Ambas, portanto, estão sob o poder da igreja, as espadas espiritual e material; uma para ser manejada pela igreja, a outra para a igreja; a primeira pela mão do sacerdote, a segunda pela mão de reis e soldados, mas à vontade e sufrágio do sacerdote. Pois é necessário que uma espada esteja sob a outra e que a autoridade temporal esteja sujeita à espiritual. Pois, embora o apóstolo diga: 'Não há poder senão de Deus e os que são ordenados por Deus' (Romanos 13:1), eles não seriam ordenados a menos que uma espada estivesse sob a outra e, sendo inferior, fosse conduzida pela outra às coisas mais elevadas. Pois, de acordo com o bendito Dionísio, é a lei da divindade que o mais baixo seja conduzido ao mais alto por meio de intermediários.

"Na ordem do universo, nem todas as coisas são mantidas em ordem da mesma forma e imediatamente, mas as mais baixas são ordenadas pelas intermediárias e as inferiores pelas superiores. Mas que o poder espiritual supera qualquer poder terreno em dignidade e nobreza, devemos confessar mais abertamente na proporção em que as coisas espirituais superam as temporais.... Pois, como a verdade testifica, o poder espiritual deve instituir o poder terreno e julgá-lo se não tiver sido bom. Assim é verificada a profecia de Jeremias [1:10] a respeito da igreja e do poder da igreja: 'Eis que hoje te constituo sobre as nações e sobre os reinos', etc.

"Portanto, se o poder terreno errar, ele será julgado pelo poder espiritual; se um poder espiritual menor errar, ele será julgado por seu superior; mas se o poder espiritual supremo errar, ele só pode ser julgado por Deus, não pelo homem, como o apóstolo testifica: 'O homem espiritual julga todas as coisas e ele mesmo não é julgado por ninguém' (1 Coríntios 2:15).... Portanto, quem quer que resista a esse poder assim ordenado por Deus, resiste à ordenação de Deus, a menos que, como os maniqueístas, imagine que há dois começos, o que julgamos ser falso e herético, como testifica Moisés, pois não 'nos começos', mas 'no princípio' Deus criou o Céu e a Terra (Gênesis 1:1). Consequentemente, declaramos, afirmamos, definimos e pronunciamos que é totalmente necessário para a salvação que toda criatura humana esteja sujeita ao pontífice romano." [30]

O argumento de Bonifácio para a subordinação das autoridades civis ao papa baseava-se na unidade da igreja. A unidade organizacional da igreja exige não apenas que todas as pessoas e instituições teológicas estejam sujeitas ao papa (Bonifácio havia escrito: "se os gregos ou quaisquer outros disserem que não estão comprometidos com Pedro e seus sucessores, eles necessariamente admitem que não são do rebanho de Cristo, pois o Senhor diz em João que há um só aprisco e um só pastor"), uma posição que condenou prolepticamente a Reforma Protestante do século XVI, mas também exige a subordinação de todas as pessoas e instituições, incluindo especialmente os governantes civis, ao papa. Assim, vemos que, no pensamento papal, a unidade eclesiástica é o fundamento da unidade política – que, de fato, a unidade eclesiástica implica logicamente a unidade política, e a unidade política pressupõe uma unidade eclesiástica anterior. A teoria política católica é parte integrante da teologia católica. As duas são partes do mesmo sistema. Quando a Reforma ocorreu dois séculos depois, a Igreja-Estado Romana usou esse dogma em um esforço para restaurar sua unidade eclesiástica e política – para tornar todos os homens sujeitos ao papa – pela força das armas. No século XX, ela tentou restaurar a unidade eclesiástica tanto pela força das armas quanto por meio de aberturas ecumênicas sem precedentes, como um prelúdio para uma unidade política restaurada.

Giles de Roma (falecido em 1315) foi o teórico cuja obra De Ecclesiastica Potestate forneceu os fundamentos teóricos para as reivindicações papais totalitárias de Bonifácio VIII. Seus argumentos – algumas de suas próprias frases – foram usados por Bonifácio na Unam Sanctam. Giles, no entanto, extraiu mais das implicações lógicas da abundância de poder papal. Por exemplo, ele argumentou que o papa é dono de tudo na Terra:

"... todas as coisas temporais são colocadas sob o domínio e o poder da igreja.... O poder do sumo pontífice governa as almas. As almas devem governar corretamente os corpos.... Mas as coisas temporais servem aos nossos corpos. Segue-se, então, que o poder sacerdotal que governa as almas também governa os corpos e as coisas temporais.... Ninguém pode ter domínio justo sobre nada, a menos que tenha nascido de novo por meio da igreja.... Segue-se, então, que você deve reconhecer que sua herança, todo o seu senhorio e todo direito de posse não são mais seus do que da igreja e por meio da igreja e porque você é mais filho da igreja do que de seu pai carnal ou por meio dele ou porque você é filho dele.... Embora digamos que a igreja é mãe e senhora de todas as posses e de todos os bens temporais, não privamos assim os fiéis de seus senhores e posses, pois... a igreja e os fiéis têm, cada um, uma espécie de senhorio; mas a igreja tem um senhorio universal e superior, e os fiéis, um senhorio particular e inferior. [31]

Os fiéis detêm suas propriedades e posições apenas em função da Igreja-Estado, que tem um senhorio universal e superior. "A plenitude do poder está na espada espiritual". Os papas aplicaram esse domínio universal ao poder político e, pela mesma lógica, o domínio universal também tem implicações importantes para a teoria econômica da Igreja-Estado Romana. 

Com o passar dos séculos, outros papas reiteraram essa reivindicação de poder total, mas, em vez de prosseguirmos com a análise dessas reivindicações, vamos nos voltar para o pensamento político de Tomás de Aquino, uma vez que ele também estava escrevendo no século XIII e que suas obras foram posteriormente endossadas pelo Concílio de Trento e convertidas na filosofia oficial da Igreja-Estado Romana por Leão XIII em sua encíclica Aeterni Patris, de 1879.

Notas

1. E A. Ridley, The Papacy and Fascism, Londres: Martin, Seeker, Warburg, 1937, 31. John Henry, Cardeal Newman, referiu-se à Igreja-Estado Romana como o "legatário residual" do Império Romano.

2. Citado em Joseph S.Van Dyke, Popery the Foe of the Church and the Republic. Segunda edição, Nova York: I. K. Funk and Company, 1871, 67.

3. Consulte o Apêndice A [Não disponível nesta edição online].

4. Em nenhum lugar o autor encontrou uma admissão por parte do papado de que a Doação de Constantino é um documento forjado. Se o leitor tiver conhecimento de tal admissão, por favor, informe o autor.

5. 1 João 2:18; 4:3. É claro que somente quando o imperador romano foi removido é que o papa romano pôde surgir. Ridley comentou: "Essa queda necessária do Império Romano, que abriu o caminho para a supremacia papal no Ocidente, foi alcançada no século V..." (Ridley, The Papacy and Fascism, Londres: Martin, Seeker, Warburg, 1937 , 33).

6. O anticristo pode ser ouvido nas encíclicas do atual papa: "Dos próprios lábios de Jesus, o novo Moisés, o homem recebe mais uma vez [em Mateus 19:17] os Mandamentos do Decálogo. O próprio Jesus os confirma definitivamente e os propõe a nós como o caminho e a condição da salvação." (João Paulo II, Veritatis Splendor, 12.2).

7. 3 João 9-10.

8. Mateus 20:25-26.

9. Ver 1 João 2:18, 22; 4:3; 2 João 7.

10. "Como o papado perdeu sua inocência inicial, degenerando em um poder absoluto, temos a longa e desonesta história de falsificações e fabricações, das quais a Doação de Constantino, no século VIII, e os Decretos de Isidoro, no século IX, foram apenas os episódios mais flagrantes. Usurpando os direitos do episcopado e dos concílios gerais, o papado foi finalmente levado aos princípios e métodos da Inquisição para fazer valer suas reivindicações espúrias e à teoria da infalibilidade para elevá-lo além de qualquer controle humano. Ignaz von Dollinger, em O Papa e o Concílio, empilhou os detalhes sórdidos de invenções e textos distorcidos, de papas envolvidos em contradições e heresias, de historiadores falsificando a história e de teólogos pervertendo a teologia." (Himmelfarb, Lord Acton, 97).

11. Brian Tierney, The Crisis of Church and State, 1050-1300. Englewood Cliffs: Prentice-Hall, 1964, 21-22.

12. Tierney, The Crisis of Church and State, 1050-1300, 93-94.

13. Tierney, The Crisis of Church and State, 1050-1300, 8.

14. Tierney, The Crisis of Church and State, 1050-1300, 49-50.

15. Tierney, The Crisis of Church and State, 1050-1300, 132.

16. Tierney, The Crisis of Church and State, 1050-1300, 131.

17. Mateus 20:26.

18. Tierney, The Crisis of Church and State, 1050-1300, 132.

19. Tierney, The Crisis of Church and State, 1050-1300, 133.

20. Tierney, The Crisis of Church and State, 1050-1300, 132.

21. "Sempre que houver, ou houver razão para temer, uma opressão injusta do povo, por um lado, ou uma privação da liberdade da igreja, por outro, é lícito buscar uma mudança de governo que traga a devida liberdade de ação" para a Igreja Romana. (Leão XIII, Libertas Praestantissimum, Sobre a Liberdade Humana [1888], 51).

22. Readings in Church History, C. J. Barry, editor. Westminster, Maryland: The Newman Press, 1960, 1,438-439.

23. Barry, Readings in Church History, 1,437-438.

24. C. S. M.Walker, The Gathering Storm, 134.

25. [Referência inadvertidamente omitida na versão digital da obra]

26. Twentieth Century Encyclopedia of Catholicism. Nova York: Hawthorne Books, 1959, volume 77, páginas 37-38.

27. Tierney, The Crisis of Church and State, 1050-1300, 153.

28. Tierney, The Crisis of Church and State, 1050-1300, 155-156.

29. [Referência inadvertidamente omitida na versão digital da obra]

30. Barry, Readings in Church History, I, 466-467. Tierney, The Crisis of Church and State, 1050-1300, 188-189. A última frase, é claro, tornou essa doutrina definitiva – uma doutrina que não pode ser alterada por nenhum papa posterior.

31. [Referência inadvertidamente omitida na versão digital da obra]

Nota adicional

a. No contexto do plano divino de redenção, tal como revelado nas Escrituras, não é possível separar  evangelho e lei, graça e obediência. A graça existe para que a lei possa ser cumprida; a lei existe para que a graça possa ser requerida. Nesse sentido, a obediência à lei de Deus pela fé, e não por obras meritórias (ver Romanos 1:5; 3:31, comparar com Gálatas 3:10-11; 2:16), é uma condição de salvação, visto que, se alguém disser que tem fé, mas não tiver obras (isto é, obediência pela fé), semelhante fé não pode salvá-lo (Tiago 2:8-26). Certamente, não podemos aplicar esta compreensão bíblica do assunto aos ensinos e práticas católico-romanas, que se baseiam na justificação pelas obras.


Capítulo 11

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