Escravidão e catolicismo – 2. A Igreja e a escravidão primitiva

Uma investigação sobre a atitude histórica da Igreja Católica em relação ao negro e à instituição da escravidão não estaria completa sem o conhecimento da própria experiência da Igreja com o tráfico de escravos.

De início, devemos reconhecer que havia uma diferença entre a raiz da qual surgiu a escravidão dos dias pré-cristãos e do início do cristianismo e aquela praticada após seu renascimento no século XV. A primeira consistia na prática de escravizar cativos de guerra como indenização por perdas sofridas pelo vencedor e como espólios de guerra; a última é o resultado direto da ganância dos homens, o desejo de riqueza que poderia resultar do trabalho gratuito.

Não é necessário recorrer a fontes externas para constatar como a Igreja se relacionou com esse terrível crime de manter os seres humanos em cativeiro, mas deixemos que a Enciclopédia oficial da Igreja nos forneça alguns fatos a partir dos quais podemos conhecer sua prática e política. Ao lermos o texto a seguir, é fácil perceber que a Igreja reconheceu a necessidade de alguma explicação e pedido de desculpas por sua conduta.

"Nesse período (595), a Igreja se viu na condição de grande proprietária. Os bárbaros convertidos a dotaram amplamente de propriedades reais. Como os servos ligados ao cultivo do solo eram parte dessas propriedades, a Igreja tornou-se, por força das circunstâncias, proprietária de seres humanos, para os quais, naqueles tempos conturbados, a relação era uma grande bênção. As leis dos bárbaros, modificadas sob a influência cristã, davam aos servos eclesiásticos uma posição privilegiada; seus alugueis eram fixos; normalmente, eles eram obrigados a dar ao proprietário metade de seu trabalho ou metade de seus produtos, ficando o restante para eles. Um Concílio do século VI (Eauze. 551) ordenou aos bispos que exigissem de seus servos um serviço mais leve do que o realizado pelos servos de proprietários leigos. O Concílio de Orleans (541) declarou que, mesmo que o bispo tenha dissipado a propriedade de sua igreja, os servos que ele libertou em número razoável (numero competenti) devem permanecer livres. Os concílios espanhóis impuseram restrições maiores, reconhecendo o direito de um bispo de emancipar os servos de sua igreja sob a condição de indenizá-la com sua propriedade privada. (Concílio de Sevilha, 590; de Toledo, 633; de Mérida, 666). Mas eles tornaram obrigatória a emancipação do servo (não se tratava de negros) em quem fosse discernida uma vocação séria para o sacerdócio (Concílio de Saragoça, 593). Um concílio inglês (Celchyte, 816) determinou que, na morte de um bispo, todos os outros bispos e todos os abades devem alforriar três escravos cada um para o descanso de sua alma. O cânone do Concílio de Epone (517), que proíbe os abades de conceder privilégios a seus servos, foi promulgado para que os monges não fossem deixados a trabalhar sem assistência, e foi tomado muito literalmente. Ela é inspirada não apenas pela prudência agrícola, mas também pela consideração de que os servos pertencem à comunidade de monges, e não ao abade individualmente." (Enciclopédia Católica 1913, v. 14, p. 38). O fato de que essa proibição de alforriar "foi tomada muito literalmente" significa que, a partir de então, praticamente ninguém foi alforriado.

Isso significou a continuidade da escravidão dos brancos quando a "prudência agrícola" ou qualquer outra coisa que rendesse um dólar, ou qualquer que fosse a moeda do reino, assim o ditava.

"Por fim, [o Quarto Concílio Nacional de Orleans. 541] aperfeiçoou as medidas tomadas pelo Concílio de 511 em relação à emancipação dos escravos; os escravos emancipados pelos bispos deveriam manter sua liberdade após a morte de seus emancipadores, mesmo que outros atos de sua administração fossem revogados; declarou que os judeus que exortassem os escravos cristãos a se tornarem judeus para serem libertados deveriam ser proibidos de possuir tais escravos." – Enciclopédia Católica, vol. XI, p. 318.

Certamente a Igreja não tinha nenhuma razão para continuar mantendo esses servos e escravos em cativeiro, a não ser seu desejo por ouro. Se Jesus tivesse recebido essas doações de terras com seus escravos, será que por um momento pensaríamos que Ele as teria mantido assim? No entanto, a Igreja afirma ser Seu representante na Terra!

Uma visão da avaliação da Igreja sobre a mentalidade negra pode ser obtida a partir do seguinte:

"Nas indústrias diversificadas daquela seção (o Norte), o trabalho escravo não era considerado eficiente. No Sul, por outro lado, a vida era basicamente agrícola. Nas grandes plantações, o negro podia ser empregado com vantagem. Sua mente estava adaptada às operações simples exigidas nos campos de tabaco e arroz, enquanto seu corpo era bem adequado ao clima subtropical." – Enciclopédia Católica, vol. 15, p. 169.

É verdade que essas palavras se referem a um período de duzentos ou trezentos anos atrás, mas lembre-se de que elas foram escritas e impressas e refletem a atitude do autor do artigo em 1912 ou 1913. O escritor poderia muito bem ter dito: "Ele não tinha mente, mas isso não fazia diferença. Tudo o que era necessário era uma coluna forte, um corpo bem adaptado aos climas subtropicais".

O autor do artigo não diz que "sua educação ou treinamento foi adaptado às operações simples exigidas nos campos de tabaco e arroz", mas que "sua mente" foi adaptada.

O Dicionário Webster define "mente" como "poder de lembrar ou reconhecer", "atenção plena", "atenção", "poder intelectual ou racional", "intelecto", "razão correta", "sanidade".

Também é digno de nota o fato de o artigo não manifestar nenhuma expressão de horror, nem mesmo uma leve apreensão ou dúvida quanto ao assunto, mas explica naturalmente sua razoabilidade.

"Era opinião corrente", diz Prescott, "entre os bons católicos daquele período [final do século XV] que as nações pagãs e bárbaras eram colocadas, pela circunstância de sua infidelidade, fora do alcance dos direitos espirituais e civis". (The Negro in Maryland, de Brackett, p. 4, 5. Ref. Ferdinando e Isabella, Parte II, Cap. 8). A Enciclopédia Católica, vol. VIII, p. 2, diz: "O nome 'infiel' é atribuído àqueles que não foram batizados". Portanto, o termo "infidelidade", conforme usado acima, significa sua condição de não batizado (ver Herrera, Stephens Translation, I, 1, 14; II, 8, 6).

Essa declaração indicaria que a formação católica universal possibilitou esse consenso até mesmo entre os "bons católicos". Deve-se ter em mente que isso foi antes dos dias de Lutero, antes do início da Reforma do século XVI, quando a Igreja de Roma realmente governava o mundo (Apocalipse 17:18).

A cobiça pelo ouro é claramente vista no quadro apresentado a seguir:

"A produção de açúcar aumentou a demanda por negros. Logo, com a total simpatia da Corte e com o conselho daqueles que eram amigos dos índios, os negros foram amplamente introduzidos. O serviço dos índios foi assim suplantado por escravos africanos."

"Com a demanda por mão de obra negra no Novo Mundo, o comércio de escravos aumentou e logo se estendeu dos portugueses (católicos) e espanhóis (católicos) para os holandeses e ingleses (ambos controlados pelos católicos na época). 'Embora a servidão tenha sido deixada de lado por cerca de trezentos ou quatrocentos anos', escreveu (Jean) Bodin (católico) em 1576, 'ela agora é novamente aprovada pelo grande acordo e consentimento de quase todas as nações! – The Negro in Maryland, de Brackett, p. 7.

Os países católicos foram os principais responsáveis pelo renascimento da escravidão no Velho Mundo e pela sua introdução no Novo Mundo.

A declaração acima de um historiador católico, Bodin, escrita em 1576, mostra claramente que a escravidão havia sido extinta e permaneceu inexistente por "trezentos ou quatrocentos anos", e agora foi revivida e aprovada "pelo grande acordo e consentimento de quase todas as nações". E quais eram "todas as nações"? A Espanha católica, Portugal católico, França católica! Veja também a bula de Gregório XVI de 3 de dezembro de 1839, mencionada em outra parte.

Brackett também fornece as seguintes informações indicativas da atitude da Igreja em relação à escravidão.

"Albericus Gentilis, que foi nomeado professor de direito civil em Oxford em 1587, afirmou que não havia escravidão em conflitos cristãos, pois eram essencialmente guerras civis, com todos os indivíduos considerados irmãos em Cristo. Ele acrescentou com confiança: 'Não hesito em afirmar que a lei da escravidão é justa, pois está alinhada com os princípios do direito internacional'. Além disso, Gentilis expressou sua admiração por Tomás de Aquino, o teólogo católico, que argumentou que, embora a escravidão não seja natural no sentido original de nossa criação como seres livres, ela é justificada em um sentido secundário, pois a natureza permite a punição de malfeitores.". – Albericus Gentilis, De Juri Belli, Holland's Ed. ch. IX, p. 314, &c. Ver Slave Trade, de Bandinell, e Md. Arch. IV, p. 189, que Brackett, p. 26, cita: "Encontramos o governador Calvert (católico) barganhando com um certo armador, em 1642, para a entrega de treze escravos em St. Mary's".

Foi a formação e o pensamento católicos que se cristalizaram nas palavras da Decisão Dred Scott da Suprema Corte dos Estados Unidos, escrita pelo juiz-chefe católico Roger B. Taney em 1857 (quatro anos antes da Guerra Civil, 19 Howard, 393). Nela, ele escreveu: "Os negros não têm direitos que o homem branco seja obrigado a respeitar".

A Enciclopédia Católica, volume 14, p. 443, apresenta um artigo que orgulhosamente destaca Roger Taney como filho de "Michael Taney, um cavalheiro com herança e educação católicas", observando que sua mãe, Monica Brooks, também era católica. Entretanto, a esposa do juiz Taney nunca se converteu ao catolicismo. O caso mais notável julgado pela Suprema Corte durante o mandato do juiz Taney foi Dred Scott vs. John F. A. Sanford, cujo parecer, de autoria de Taney, foi citado erroneamente.

Essa decisão pode ser lida por qualquer pessoa que tenha acesso à biblioteca de um Tribunal Federal contendo os Relatórios da Suprema Corte, no vol. 19, Howard, p. 393. (Roger B. Taney foi presidente da Suprema Corte de 1836 a 1861. Ele morreu em 12 de outubro de 1864).

O artigo evita mencionar que o próprio Roger Taney era católico, talvez por causa de seu parecer no caso Dred Scott.

O artigo diz que "a pureza de sua vida privada nunca foi questionada", mas não foi tão pura a ponto de fazer com que sua esposa se tornasse católica.

O artigo tenta retratar a Igreja em uma perspectiva antiescravagista ao afirmar que esse seu filho emancipou os escravos que herdou de seu pai ainda jovem. Entretanto, comprovar ou refutar essa afirmação pode ser um desafio. Brotherhood of Thieves, de S. S. Foster, publicado em 1843, diz o seguinte sobre os Estados Unidos: "Sua capital nacional é um mercado de carne humana e seu principal magistrado é um criador de escravos". Aqui, a expressão "principal magistrado" se refere a Roger Taney, que atuou como presidente da Suprema Corte dos EUA. O termo "criador" denota um proprietário de escravos que mantinha mulheres escravizadas com o objetivo de gerar filhos para serem vendidos como escravos, semelhante à criação de gado.

A implicação clara é que a "formação católica" de Roger Taney o levou a libertar seus escravos. Mas a "formação católica" e a "herança católica" de seu pai não o impediram de possuir escravos que Roger Taney "herdou de seu pai". E, como será mostrado oportunamente, a escravidão, conforme praticada no Sul, foi declarada não contrária aos princípios católicos.

A Igreja Católica, numa tentativa de redimir o passado, declara orgulhosamente sobre Thomas Ewing, um de seus filhos, que "ele apresentou um dos primeiros memoriais para a abolição da escravidão" (1831, Enciclopédia Católica, vol. 5, p. 672). No entanto, isso apenas mostra como a Igreja se agarra a argumentos fracos em suas tentativas de se colocar sob uma luz favorável em relação à escravidão, pois o mesmo artigo afirma: "Em outubro de 1869 (quatro anos após a Guerra Civil e 38 anos após seu memorial contra a escravidão), Ewing sofreu uma comoção enquanto argumentava uma causa perante a Suprema Corte dos Estados Unidos e foi batizado no tribunal."

Isso serviu como uma tática eficaz de publicidade. A igreja capitaliza consistentemente os nomes de indivíduos notáveis que se juntam a ela. Por meio dessa abordagem, juntamente com uma contagem inflada de membros, a igreja transmite uma mensagem ao público: "Veja, todos os outros estão se filiando; por que não você?" Ela ignora a orientação contrária fornecida por Paulo em Romanos 12:2, que aconselha: "Não vos conformeis com este mundo". Além disso, Jesus nos lembra em Mateus 7:14: "Estreito é o caminho que conduz à vida eterna, e poucos são os que o encontram".

Seu filho, Thomas Ewing Jr., defendeu o Dr. Mudd e alguns outros condenados por conspiração no assassinato de Abraham Lincoln. A Enciclopédia Católica, vol. 5, p. 672, contém um artigo sobre Thomas Ewing, que, como mencionado acima, tornou-se católico pouco antes de morrer, aos 82 anos. Diz: "Ele se casou com Maria Wills Boyle, filha de Hugh Boyle, um católico irlandês – e todos os seus filhos foram criados na fé".

Em seguida, o artigo fala de "Philemon Beecher, filho mais velho de Thomas", "Hugh Boyle, terceiro filho de Thomas" e, de forma discreta, diz que ele era "sócio de seu irmão Thomas", "Charles, quinto filho de Thomas" e Eleanor Boyle (Sra. William Tecumseh Sherman), filha de Thomas". Portanto, a esposa de um dos maiores generais da União era católica, assim como o general Phil Sheridan e o general William S. Rosecrans, e houve muitos "vazamentos" inexplicáveis de informações importantes para os rebeldes, o que pode explicar algumas de suas surpreendentes vitórias.

A pergunta que surge agora é: por que essa tentativa de evitar até mesmo listar Thomas, Jr, entre os filhos de Thomas, Pai? Ele também era um advogado proeminente e, de acordo com a prática da Igreja Católica de chamar a atenção para seus filhos proeminentes de todas as formas possíveis, esperaríamos que ela também fizesse propaganda de Thomas Jr. Mas não é assim. Por quê? Simplesmente porque Thomas Jr. foi o advogado católico que defendeu alguns dos oito assassinos da equipe totalmente católica que assassinou o estimado Abraham Lincoln! Os nomes dos onze homens culpados pelo grande roubo de US$ 1.250.000 da Brink's se parecem com a lista de qualquer igreja católica.

Também é verdade que outras denominações grandes e populares não estavam dispostas a defender seus princípios, mas estavam divididas ao longo da linha Mason e Dixon, a "Igreja do Norte" e a "Igreja do Sul".

De fato, foram apenas algumas das seitas menores que se posicionaram firmemente contra a escravidão.

Os quakers e os menonitas parecem ter sido as únicas igrejas que se posicionaram abertamente contra o comércio de escravos, exceto pelo fato de que a Igreja Adventista do Sétimo Dia, mesmo em seu período embrionário de 1845 a 1863, denunciou-o de forma definitiva e inequívoca, como segue:

"Todo o Céu contempla com indignação os seres humanos, feitura de Deus, reduzidos pelos seus semelhantes às mais baixas profundezas da degradação e postos no nível da criação animal. Professos seguidores desse amado Salvador cuja compaixão sempre foi tocada à vista dos ais humanos, empenham-se de coração nesse enorme e sério pecado, e comerciam com escravos e almas de homens. A agonia humana é levada de lugar a lugar e comprada e vendida... Apenas um pouco mais conterá Deus a Sua ira, ira essa que arde contra esta nação e especialmente contra as corporações religiosas que têm sancionado este terrível tráfico e nele se têm empenhado. Tal injustiça, tal opressão, tais sofrimentos, são olhados com impiedosa indiferença por muitos professos seguidores do manso e humilde Jesus. E muitos deles são capazes de infligir, eles próprios, toda esta indescritível agonia com odiosa satisfação.

"Esses professos cristãos leem a respeito dos sofrimentos dos mártires, e lágrimas descem-lhes pelas faces. Espantam-se de que homens pudessem tornar-se tão endurecidos a ponto de praticarem tais crueldades para com seus semelhantes. No entanto, os que pensam e falam assim estão, ao mesmo tempo, mantendo seres humanos em escravidão. E isto não é tudo; rompem laços familiares e oprimem cruelmente os seus semelhantes. São capazes de infligir a mais desumana tortura com a mesma implacável crueldade manifestada pelos papistas e pagãos para com os seguidores de Cristo... O clamor dos oprimidos alcançou o Céu, e os anjos sentem-se espantados com os indizíveis e agônicos sofrimentos que os homens, feitos à imagem de seu Criador, causam a seu próximo." – Primeiros Escritos, por E. G. White. O prefácio desse livro diz: "Esta coleção dos primeiros escritos da Sra. E. G. White é composta de duas pequenas obras, Experience and Views, publicada pela primeira vez em 1851, e Spiritual Gifts, publicada em 1858", portanto vários anos antes da Guerra Civil.

Essas coleções de Primeiros Escritos não indicam nenhuma dificuldade e não requerem muita deliberação sobre se os negros são humanos, ao contrário do que sugere a carta do papa Paulo III, que será apresentada oportunamente.


Capítulo 3

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