Será bom, antes de dar o relato da Conferência Secreta, fazer algumas observações que possam tender, na medida do possível, a compensar o leitor pela falta daquilo que o tom e a maneira das vozes vivas deixaram para sempre presente na minha memória.
Observarei, primeiramente, que a lista mencionada pelo chefe, e na qual estavam definidos os pontos especiais a serem discutidos, prova que tudo nestas reuniões era arranjado da maneira mais precisa.
Se o leitor considerar cuidadosamente cada discurso, perceberá que cada pessoa tem o seu estilo peculiar e distinto. As vozes dos vários oradores serviram-me, em vez dos seus rostos, para os conhecer uns dos outros; cada um tinha peculiaridades que não esqueci.
Um dos padres, o segundo a falar, e que não ouvi mais depois, surpreendeu-me com uma pronúncia muito singular. Eu nunca tinha ouvido uma voz tão lenta, suave e untuosa. Ao mesmo tempo, nenhum outro orador era mais prolixo e difuso, contudo era ouvido com a maior atenção. Ele foi quase o único que se ocupou exclusivamente com o povo, mostrando por quais iscas ele pode ser fisgado. O contraste era impressionante entre este orador fleumático e todos os outros; era apenas em raros intervalos que ele ficava um pouco excitado. Por fim, no entanto, quando comunicou um diálogo de um dos seus penitentes com um companheiro, inteiramente em honra dos Jesuítas, ele se expressou com uma animação tão inesperada que suscitou uma explosão de alegria e grandes aplausos.
Outro, a quem chamo o Irlandês, é notável por um espírito cáustico e impetuoso; ele parecia possuído pela febre. O Jesuíta Romano é menos veemente, mas brusco e direto; às vezes num grau que beira a grosseria. Os dois Franceses exibem um caráter bastante diferente; um deles faz-se especialmente conhecido pelas ideias que ataca com mais avidez, pelas reminiscências que as suas alusões despertam, e pela sua maneira invariavelmente clara e precisa de se expressar. O reitor do noviciado distinguiu-se por uma certa pompa e gravidade artificiais que permeavam tudo o que dizia. Ele parecia feito de propósito para imitar a sabedoria e fazer uma exibição dela. O Padre Roothaan não teve necessidade de ser refreado de tempos em tempos, como pensei ter acontecido ocasionalmente com o Irlandês; não havia fogo, nem acrimônia, nos termos que empregava; ele se expressava com suavidade, embora ocasionalmente com calor; deve-se confessar, no entanto, que sob os seus acentos untuosos ele oculta uma propensão à violência e perseguição.
Houve uma anomalia que não sei como explicar. O indivíduo, que suponho ter sido o geral naquela época (o mesmo de quem eu disse que interrompeu subitamente a conversa promíscua), abriu a reunião com um discurso em termos muito puros e eloquentes, que a minha memória está longe de ter reproduzido fielmente; [1] contudo, quando todos estavam sentados e silenciosamente atentos ao seu redor, todas as suas expressões pareciam pesadas, túrgidas e infladas. Havia algo de falso e embaraçado na sua voz. Subsequentemente, no entanto, ele retomou toda a prontidão e facilidade que havia demonstrado no início.
Embora as pessoas presentes na conferência fossem poucas, estão prestes a aparecer perante o leitor apresentando temperamentos e caracteres essencialmente diferentes; alguns impetuosos, outros calmos, outros constantemente graves. E, no entanto, o tipo de trabalho que seria comum a todos eles, longe de tender a colocar estes diferentes caracteres em relevo proeminente, era antes calculado para fundir todas as suas características individuais e reduzi-las a um único tipo padrão. De fato, é apenas em assembleias onde existe uma oposição de princípios e interesses, que dá origem a debates livres e contraditórios, que cada um, trazido à luz pelas circunstâncias, se mostra sob as suas próprias feições peculiares. Aqui, no entanto, apesar da unanimidade da reunião, o gênio de cada um aparece suficientemente marcante para ser facilmente distinguido.
Apenas aqueles que estudaram seriamente o jesuitismo, no passado e no presente, e que conhecem o seu espírito e audácia, serão capazes de compreender plenamente todo o significado transmitido na menor das suas palavras, sem se espantar com o orgulho que os devora, ou com os esquemas que meditam. Contudo, creio que seria necessário mais do que isso para poder apreender todo o alcance dos seus desejos. Seria necessário não apenas conhecer todas as suas regras e os seus estatutos secretos, mas com todas as discussões anteriores que os levaram a retomar a tecelagem daquela teia da qual estou prestes a mostrar alguns fios, e que, nos dias de hoje, deve ter-se estendido imensamente. Seria necessário, também, considerar a educação que estes padres receberam, a influência preparatória a que foram submetidos, bem como os graus pelos quais devem ter passado antes de poderem ser julgados dignos de se tornarem membros deste comitê que pode ser considerado como o último termo da iniciação. Enfim, todos estavam sob o império de princípios e ideias que haviam sido discutidos nas três sessões anteriores, ou em conversas confidenciais. Tudo o que fizeram estava necessariamente ligado a estes antecedentes; consequentemente, sendo ignorantes destes últimos, é muito possível que confundamos certas passagens, ou as compreendamos apenas superficialmente.
Entremos finalmente na conferência. Quando todos estavam sentados e o silêncio estabelecido, o presidente começou a falar como se segue: —
I.
"Caros irmãos, as nossas armas são de uma têmpera totalmente diferente das dos Césares de todas as épocas; e não será difícil para nós manobrar de modo a nos tornarmos senhores de todos os poderes já tão enfraquecidos. Não precisamos temer a falta de soldados, basta que nos dediquemos a recrutá-los de todos os escalões e de todas as nações, e a treiná-los para um serviço pontual. Mas, ao mesmo tempo, sejamos vigilantes para que ninguém suspeite dos nossos desígnios. Que todos se persuadam, enquanto nos consagram o seu trabalho, o seu ouro ou os seus talentos, que os estão a empregar no seu próprio interesse.
"Que o conhecimento deste grande mistério seja nosso: quanto aos outros, que nos ouçam falar por parábolas, para que, tendo olhos, não vejam, e tendo ouvidos, não ouçam.
"Trabalhemos mais diligentemente do que todos os que se propuseram a erguer grandes edifícios hierárquicos, e que o nosso trabalho seja sério!
"Vós bem sabeis que o que almejamos é o império do mundo; mas como havemos de ter sucesso, a menos que tenhamos, em todo o lado, adeptos que compreendam a nossa linguagem, que deve, no entanto, permanecer desconhecida para os outros.
"Sem dúvida, não esquecestes o nosso antigo Paraguai. Foi apenas uma tentativa muito limitada do nosso sistema, num pequeno canto do globo. Nestes últimos dias, precisamos de um novo código, nós que nos propusemos a operar uma mudança tão poderosa – a fazer com que tudo se curve sob o martelo irresistível das nossas doutrinas, para que tudo se torne como pedra, ferro, ouro e diamante, para o edifício gigantesco no qual forçaremos todos os homens a entrar.
"Que cada indivíduo, portanto, preste uma obediência total. Que ele faça votos invioláveis num único convento; e que o papa – mas um papa da nossa própria formação – seja o seu abade perpétuo!
"Não; o Catolicismo não deve mais permanecer um poder mutilado: não tem ele, dentro de si, meios inumeráveis para derrubar e levantar? Não pode ele reerguer-se, conquistar, destruir, reconstruir, e assim maquiavelizar-se, de modo que o mundo não possa de modo algum escapar-lhe? Apressemos a nossa obra, antes que o povo se esclareça; enquanto eles permanecerem opacos e materiais, podemos fazer deles um instrumento de conquista. Mas não percebeis como a informação já se está a espalhar? Ai de nós se tantos países nobres não se tornarem em breve nossa conquista, e se milhões de homens, robustos e ignorantes, não nos emprestarem os seus braços hercúleos para extinguir a estrela maligna que nos ameaça! Mas quanto mais tempo perdermos, mais problemático o nosso sucesso se torna."
II.
O presidente tendo cessado, o padre com a voz suave e arrastada começou a falar:— [2]
"Sim; vamos incessante e incansavelmente propagar as nossas doutrinas entre o povo; aquecidos pelo fogo destas doutrinas, eles se transformarão para nós em raios para derrubar estes reis altivos que, em vez de inclinarem as suas cabeças perante a igreja como filhos submissos, lhe fazem o favor de a aceitar como um satélite, que só serve para os salvar de uma ruína quase inevitável.
"A este povo, descontente e nascido para sofrer, repitamos incessantemente:—
"'Vós sois miseráveis, profundamente miseráveis, nós o sabemos muito bem; e quem pode deplorar o vosso destino mais sinceramente do que nós? Não sabemos que ganhais o vosso pão com o suor do vosso rosto; mas o maior de todos os vossos males é que ignorais a sua verdadeira fonte. Oh, se soubésseis isto, um grande passo já teria sido dado para vos libertar do único inimigo que vos mergulhou neste vasto abismo de miséria. Sabei, então, que toda a vossa miséria data do dia execrável em que um monge renegado, para satisfazer as suas paixões vis, ousou – oh, horror! – unir-se a uma freira que ele arrancou do seu convento.
"'Desde então, o Todo-Poderoso não cessou de rolar as ondas da sua vingança sobre a terra; a paz fugiu; o Santo Padre, com dor e indignação, viu os seus filhos desertarem dos portais sagrados e ouviu-os exclamar insolentemente: 'Nós quebramos os teus laços, desprezamos os teus preceitos; tu não és mais o nosso mestre.' Amaldiçoados e excomungados, eles vaguearam desde então em lugares estéreis e escuros. Em vão o vigário de Jesus Cristo se esforçou para chamar de volta estes miseráveis pródigos; entregues aos seus erros e à sua obstinação, eles desprezaram as suas ofertas de perdão.
"'Contemplai o retrato destes rebeldes que rejeitaram aquele que Deus colocou no seu próprio lugar para governar todas as coisas. Escutai este salmo; Deus pergunta: 'Por que se enfurecem os gentios, e os povos imaginam coisas vãs?' E assim Deus responde a si mesmo: 'Os reis da terra se levantam, e os governantes se reúnem, contra o Senhor e contra o Seu ungido, dizendo: Rompamos os seus laços e lancemos de nós as suas algemas. Aquele que se assenta nos céus rirá: o Senhor os terá em escárnio.'
"'Se, então, a justiça de Deus visita a terra com tantos castigos, é para punir a sua antiga revolta. Não vos admireis se, para se vingar destes apóstatas e dos reis que os sustentaram, Ele excite contra eles toda a fúria dos seus súditos: pois não ignorais que durante o espaço de trezentos anos um monstro pavoroso, a hidra revolucionária, foi desencadeada e não cessa de ameaçar devorá-los.
"'Ó idade de ouro da igreja! Ó milagre surpreendente! Quem o creria, se não fosse tão verdadeiro quanto é sublime? Quando nada podia domar o orgulho daqueles soberanos que esmagavam os pobres e os fracos, tão fortemente recomendados por Jesus Cristo ao seu vigário, ele, um simples ancião, extinguiu com uma palavra todo este orgulho, como uma luz pode ser extinta com um sopro. Naqueles dias, a esposa de Jesus Cristo estava sem mácula nem ruga. Ela brilhava como o sol da primavera, que aquece e torna a terra frutífera. Foi só depois (nos dias da pretendida Reforma) que a nossa santa mãe viu os seus filhos sofrerem de indigência e de fome, e deplorou a sua incapacidade de os ajudar. Infelizmente, é demasiado verdade que esta praga mal se espalhou sobre a terra, toda a justiça, toda a caridade e toda a coisa boa diminuíram cada vez mais, na proporção em que o respeito pelo vigário de Jesus Cristo diminuiu. Não era assim nos dias da prosperidade da igreja, quando os seus pais, os seus doutores eruditos (comparados com os quais os homens mais distintos de hoje não passam de vermes), tinham sempre o cuidado de recomendar uma obediência sem limites para com o pai comum dos fiéis, o sucessor de São Pedro; e nunca pronunciavam o seu nome sem dobrar o joelho. São Bernardo, embora o papa tivesse sido seu discípulo, nunca lhe escreveu sem primeiro se ter prostrado na terra.
"'Deixai-me perguntar-vos: mostrais este respeito cada vez que falais do vigário de Jesus Cristo? Não; é demasiado claro, é demasiado verdade, que os melhores entre vós perderam a vossa reverência pelas coisas santas. Ah! se Deus vos concedesse a graça de compreender o que é ocupar, na terra, o lugar do próprio Deus, com que fogo não vos sentirieis inflamados; o que não tentaríeis e enfrentaríeis, para libertar o vosso único benfeitor do jugo dos ímpios! Sem dúvida, o Todo-Poderoso poderia fazer isto imediatamente Ele próprio; mas é Sua vontade que os vossos próprios braços direitos vos livrem dos vossos inimigos por uma vitória heróica; visto que o bem glorioso que daí resultará formará a recompensa dos pobres e dos oprimidos, e de todos aqueles que gemem em sujeição. Não vos lembrais com que constância os fiéis Israelitas resistiram aos pérfidos Cananeus? Coragem, meus filhos! pois vós também tendes de tomar posse de uma terra prometida, que derramará para vós todo o tipo de delícias para refrescar as vossas almas cansadas! Despertai! Levantai-vos! Uni-vos num laço fraternal, que vos fortalecerá contra todos os obstáculos, se de fato desejais que o futuro seja vosso. Já refletistes que, se os céus se tornaram bronze, por assim dizer, sobre as vossas cabeças, Deus o permitiu, para punir a vossa negligência culpada. Loucos e insensatos que sois! Vós permitis que Sua Santidade, aquele que representa Deus na terra, seja mantido em escravidão! Mas o dedo do vosso Pai celestial escreveu o decreto de que o vosso próprio destino degradado será prolongado enquanto durar a degradação do vosso pai terrestre, aquele a cujos pés todo aquele que espera a salvação deve prostrar-se. Em vão, estai certos, o papa procura abençoar-vos – em vão ele levanta a voz para vos fazer justiça; ele está cercado, como o próprio Cristo, por escarnecedores e pecadores endurecidos que rejeitam a sua palavra.
"'No entanto, todos estes pecadores errantes são vossos irmãos; vós não deveis odiá-los nos vossos corações – de modo algum; mas é a vontade de Deus que empregueis todos os meios para os induzir a aceitar o perdão, para os chamar de volta ao rebanho, onde, uma vez que tenham entrado, os próprios lobos se transformam em ovelhas.
"'Escutai, escutai! Dar-vos-emos olhos espirituais.
"'Onde estão os príncipes, mesmo entre aqueles da nossa religião, que ousaram, e que ainda ousam, preocupar-se com as coisas de Deus?
"'Eis por que o ímpio invadiu a igreja; eis por que ela, acorrentada e escravizada, não pode falar nem exigir obediência. O Ungido do Senhor e os outros ungidos, seus ministros, são por toda a parte tratados sem respeito e lhes é negada toda a autoridade. Os seus privilégios são suprimidos, as suas propriedades legítimas são-lhes arrancadas, a sua honra é eclipsada, o seu caráter caluniado, e eles estão quase virtualmente aniquilados.
"'A profecia está assim quase cumprida. Há já muito tempo que contemplamos o homem do pecado, o filho da perdição – o Anticristo, em suma – a ser colocado acima daquele que todos devem adorar e venerar. Ele mostra claramente pelos seus desejos, pelo seu orgulho, pela sua perseguição ao clero, e pela sua ambição insaciável, roubando o que pertence a Deus e pisoteando tudo o que é sagrado e divino – ele mostra claramente que se senta no templo de Deus, e que até gostaria de ser considerado como o próprio Deus.
"'Feliz o tempo em que este dragão coroado foi amordaçado pela igreja, quando lhe faltou força para consumar as suas devastações sacrílegas; mas, por fim, infelizmente, ele conseguiu possuir toda a terra, com a ajuda de uma trovoada de apóstatas e pelos prodígios das suas seduções infames. Eis a fonte de todos os vossos males. É desta revolta contra a igreja que tantos entre vós são incapazes de contrair um casamento sem se exporem a mil vexames. Assim se verifica, não só aquele texto que prediz que o Anticristo proibiria o casamento, mas aquele outro que diz que os fiéis seriam compelidos a abster-se de uma variedade de carnes delicadas, que Deus criou para todos, e não para o gozo de um grupo exclusivo.
"'Ó sublime instituição de Jesus Cristo! Ó confissão, fonte de tão infinito bem! É por ti que os nossos ouvidos tomam conhecimento das misérias daqueles cujo destino é o trabalho incessante, e das suas muitas privações antigas e injustas. É por isso que a confissão, que alivia para vós o peso de tantas mágoas, se torna odiada pelos vossos opressores. Eles gostariam de vos privar dela, porque é o vosso consolo e o vosso refúgio. Por meio da confissão, de fato, quantas direções somos capazes de vos dar, quantos conselhos que, se deles vos aproveitardes, vos conduzirão seguramente ao porto! Por meio dela, quantos segredos podeis depor nos nossos peitos! Segredos que não poderíeis revelar noutro lugar sem mil perigos!
"'Pobres amigos! Se apenas aderísseis às nossas instruções, se consentísseis em colocar-vos, em uníssono, como instrumentos nas nossas mãos, não teríeis mais de trabalhar para as produções da terra, a fim de que outros as desfrutem com a vossa exclusão.
"'Mas desejais verdadeiramente erguer as vossas cabeças para o céu? Se de fato o desejais, começai por impor respeito por aquele sem o qual o pobre nunca será respeitado.'
"Esta é a linguagem que emprego com eles; e depois de assim ter doutrinado os meus recrutas, dou-lhes uma história das Cruzadas, despertando-os com o quadro deste grande movimento de muitas nações; e para os vincular à nossa liga, digo-lhes:—
"'Que impulso, meus irmãos! Que sacrifícios! Que martírios! E, no entanto, não havia um destes soldados de Cristo que esperasse qualquer vantagem temporal para si mesmo. Eles tinham apenas um desejo – resgatar das mãos turcas uma simples pedra, um sepulcro vazio, e exalar o seu último suspiro em solo sagrado.
"'Pobre povo! Se tivésseis olhos para ver, perceberíeis que há agora algo pior do que infiéis turcos para combater; algo mais do que uma simples pedra para defender com os vossos peitos. Aquele em quem Jesus Cristo habita continuamente, a quem Ele estabeleceu como Seu representante, aquele a quem os anjos proclamam como o doutor dos doutores, o infalível, o chefe supremo de todos os monarcas do universo, ele reclama o vosso zelo, os vossos braços, a vossa devoção e, talvez, a vossa vida.
"'Um salmo que cantais frequentemente fala assim aos bem-aventurados que combatem pelo Eterno e destroem os seus inimigos, pela raiz e pelo ramo: 'Sede alegres, e cantando cânticos sagrados, armai-vos com a espada de dois gumes, para exercer vingança sobre as nações heréticas, para castigar os incrédulos, para algemar os seus reis e os seus nobres, para executar contra eles o juízo que está escrito; pois tal é a glória reservada para todos os santos' – isto é, para todos os bons Católicos.
"'Oh, que estas faíscas sagradas se acendam no fundo dos vossos corações! Acautelai-as para o grande dia que está, talvez, próximo; propagai-as nas mentes dos vossos filhos, dos vossos maridos, das vossas esposas; e, finalmente, estai certos de que o dia de triunfo para a santa causa de Deus será aquele em que, todas as vossas lágrimas enxugadas, fareis os próprios céus ressoarem com os vossos gritos de alegria!'
"Uma linguagem como esta nunca falhou no seu efeito: despertados e excitados por tais palavras, os ouvintes quase sempre saem a arder de indignação.
"Vou repetir-vos uma conversa que tive a satisfação de ouvir. Um penitente nosso disse ao seu camarada—
"'João, só os padres Jesuítas são homens; todos os outros são tolos estúpidos.' 'Como assim?' 'Porque só eles conseguem ver o fundo das coisas.' 'O quê! Eles entendem as nossas dificuldades e conseguem encontrar uma cura para elas?' 'Não te disse eu muitas vezes! Vai e abre-lhes o teu coração, conta-lhes tudo, escuta-os, e aprenderás certas coisas. Juro-te que em breve saberás mais do que todos estes filósofos que fazem tanto alarido.' 'O que é que eles te dizem, então?' 'Vai e pergunta-lhes tu mesmo, e em breve saberás a verdade; saberás porque o mundo anda tão mal e o que devemos fazer para o consertar.'"
III.
Foi esta anedota, contada num tom de jocosidade que contrastava fortemente com o mantido durante a outra parte do discurso, que excitou a hilaridade e os aplausos já mencionados. O próximo orador, reconheci-o pela voz, era o reitor.
"No entanto, é sobre os grandes que devemos exercer particularmente a nossa influência. Devemos levá-los a crer que, num período tão tempestuoso como este, não há segurança para eles senão através de nós. Não devemos jamais relaxar os nossos esforços para os imbuir da ideia de que só podem esperar obter quaisquer grandes resultados sujeitando-nos às consciências dos seus subordinados e as do povo comum, para que nós, ou pelo menos aqueles que seguem os nossos conselhos, os dirijamos inteiramente. Se eles estiverem satisfeitos com o serviço que está em nosso poder prestar-lhes, pela descoberta de segredos que a nossa posição peculiar nos permite só a nós penetrar, então, em troca (e que fique bem claro que é pelo seu próprio bem, e se desejam que chegue um tempo em que não haja mais revoltas e revoluções para os perturbar), que não sejam poupados em tais elogios a nós que sejam suscetíveis de causar uma impressão em membros poderosos do corpo Protestante, e levá-los a concluir que só nós possuímos a arte de consolidar governos, visto que é a nossa missão corrigir o que permaneceu imperfeito e inacabado na Idade Média, em consequência das disputas fatais entre igreja e estado.
"Mas visto que eles podem objetar certos atos nossos que não estão livres de uma aparência sediciosa, devemos fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para colorir e disfarçar estes atos, para que não sejam demasiado flagrantes. Devemos dar-lhes a entender que se agimos assim é porque estamos intimamente persuadidos de que a causa do mal, o mau fermento, permanecerá no mundo enquanto o Protestantismo existir; que o Protestantismo deve, portanto, ser inteiramente abolido, visto que a investigação em matéria religiosa cria e propaga a investigação noutras matérias. A ordem de coisas admirável que (devemos dizer-lhes) é o nosso objetivo estabelecer, só pode existir sob a condição de que o povo seja forçado a girar em torno destes dois eixos: a monarquia e a igreja. Devemos provar-lhes que só nós, com as outras ordens e o clero (o clero, entenda-se, sob certas condições), somos capazes de lhes ser mais eficazmente úteis do que todas as suas forças armadas. E por quê? Porque a compressão, longe de mudar o coração, só o inflama mais; ao passo que os mais violentos e obstinados acabam por ceder à religião, quando ela atua sobre eles com a confissão como sua auxiliar e a pompa eclesiástica como isca.
"Tomemos, além disso, todo o cuidado possível para os convencer de que não devem lamentar a riqueza possuída pelos corpos religiosos, ou a que estamos constantemente a acumular, pois estas riquezas nos são necessárias; sem elas não poderíamos executar nenhuma grande empresa.
"'Ponderai bem', digamos-lhes, 'ponderai bem as vantagens presentes que podemos oferecer, e aquelas ainda mais consideráveis que se seguirão, e vereis que cada um dos vossos favores vos será devolvido centuplicadamente no fim.'
"Mas o que devemos, acima de tudo, esforçar-nos por lhes tornar aparente é isto: que as antigas lutas entre a igreja e o estado já não são possíveis, estas duas potências tendo aprendido que não há nada a ganhar transgredindo os seus respectivos limites. De onde se segue que os governos, protegidos pelo progresso maravilhoso da diplomacia, estarão para sempre seguros de todo o abuso de anátema e de todas as tentativas de usurpação, e podem, com toda a confiança, deixar ao sacerdócio a direção inteira dos fiéis. Além disso, que os governos aprendam que todos os nossos sacramentos, confrarias, cerimônias, livrinhos, etc., etc., são infinitamente menos temíveis do que estes jornais pestilentos de todos os tipos, que só servem para excitar as piores paixões; que é infinitamente mais seguro para a multidão afundar-se de novo nas lendas da Idade Média, que acorrentarão as suas imaginações ao culto dos tempos passados; enquanto, pelo contrário, se uma vez lhes permitirmos colocar um pé no primeiro degrau da escada, eles subirão rapidamente ao topo e serão tomados pela vertigem da revolução, que imediatamente os torna ingovernáveis; eles irão inquirir e examinar, e quanto mais aprenderem, mais o seu orgulho e insubordinação aumentarão. Sim, que os governos admirem o que somos capazes de fazer com o povo por meio destas 'Vidas de Santos' e todos estes milagres; somos capazes de perpetuar a sua infância até que eles se encolham de terror perante o que outros anseiam com um frenesi quase incurável."
IV.
O estilo de pensamento e de imagens, e o sotaque do orador seguinte, denotavam evidentemente que ele era da Grã-Bretanha. Chamá-lo-ei o Irlandês.
"Na minha opinião (ele começou), não devemos sempre reprimir certas línguas ousadas que zombam das lendas; pelo contrário, é bom que haja homens que lancem algum ridículo sobre aquela imensa apoteose do Papado que estamos acostumados a fazer em linguagem Oriental. Este tipo de licença não nos faz mal, contanto que se restrinja às classes mais altas, e permaneça desconhecida do povo: uma certa tolerância neste ponto torna o mundo mais inclinado a confiar em nós, e serve para acalmar a suspeita nas mentes dos vossos fantasmas dourados (larve dorate) quanto aos nossos projetos finais. Mas se esta zombaria se manifestasse abertamente, de modo a destapar os olhos do vulgo; ou se algum espírito perspicaz e penetrante, puxando a ponta do véu, apontasse o lado corrosivo das nossas doutrinas, devemos então fazer todos os esforços para cobrir este audacioso miserável com infâmia, ou denunciá-lo como um conspirador perigoso, merecedor de castigo exemplar. Deixando de lado tais casos extremos, é mais vantajoso para nós do que de outra forma que haja aqui e ali alguns polemistas em nosso vasto sistema dogmático; pois enquanto se permite o livre curso a alguns sarcasmos (alcuni schemi) [3] sobre estas matérias, as nossas tendências são deixadas incontestadas, é-nos permitida total liberdade e oportunidade para propagar as nossas doutrinas e estender as nossas conquistas dia após dia.
"A fim de tornar o Catolicismo atraente, devemos esforçar-nos para alistar na sua causa os principais estadistas e escritores históricos dos nossos próprios tempos. Devemos empregá-los para enfeitar o passado com matizes dourados; para adoçar, para nós, as águas amargas da Idade Média; e ajudar-nos a cativar a humanidade pelas promessas mais sedutoras. Quem sabe se o dia não virá em que as canções de vanglória dos antagonistas do Catolicismo provarão ter sido música de cisne? Deixemos que todos estes vários trabalhadores continuem a trabalhar para nós; quando a noite chegar, pagar-lhes-emos, diferentemente do mestre na parábola, com boa moeda da Idade Média (buona moneta del medio evo) – daquela Idade Média que, na sua fervorosa admiração pela antiguidade, eles agora tão ansiosamente elogiam.
"Em boa verdade, os nossos tempos tornaram-se estranhamente delicados! Eles lisonjeiam-se, então, de que nenhuma faísca ainda arde nas cinzas ao redor da estaca para acender outra tocha? Tolinhos! Tudo o que podem fazer é odiar-nos! Eles estão longe de sonhar (d’aver sentore, literalmente farejar) que só nós sabemos como preparar uma revolução, comparada com a qual todas as deles foram, são e serão apenas insurreições anãs. Ao chamar-nos Jesuítas, pensam que nos cobrem de opróbrio! Eles mal imaginam que estes Jesuítas têm reservado para eles a censura, as mordaças e as chamas, e um dia serão os senhores dos seus senhores!
"Desculpem este fervor, meus caros colegas; noutra altura, alargarei sobre as causas imediatas que me enchem de indignação, e despertam todas as minhas energias contra esta raça invejosa e facciosa. Vou agora regressar ao ponto de onde me desviei.
"É altamente importante para nós que pareçamos oferecer grandes garantias a todas as classes da sociedade. À aristocracia das terras Protestantes, devemos dirigir-nos assim:—
"'A hierarquia Romana só ela é capaz de vos dar a vitória; mas isto é sob a condição de que encontre um eco nas vossas próprias almas. É pelos vossos esforços que o povo deve ser recolhido no seu antigo redil; quando lá estiver seguro, a torrente impetuosa não mais devastará os vossos domínios, vereis que a submissão será restaurada, e o mau espírito que ameaça arrancar e destruir todas as coisas, será ele próprio arrancado e destruído. Vossos pais viraram tudo de cabeça para baixo, o remédio deve ser não menos energético do que o mal. Chamai todos aqueles sobre quem tendes influência para ouvir, e dirigi-lhes audaciosamente palavras como estas:—
"'O Protestantismo é uma aberração. Ele gerou apenas misérias e inumeráveis catástrofes.
"'É uma religião amputada dos seus membros, não é sequer um esqueleto.
"'O Catolicismo só apresenta um todo harmonioso. Onde não há confissão, nem papa, nem forma de culto atraente para se dirigir aos sentidos, nem ponto de reunião, nem controle todo-poderoso e sempre ativo, tudo precisa ser disperso como areia. Oferecemo-nos ao vosso exemplo, como os primeiros a prostrar-nos perante os guias da nossa consciência, os primeiros a rejeitar a apostasia dos nossos pais! Que seja a nossa tarefa comum unir o que foi rasgado. À grande obra, então! Ajudai-nos! segui-nos!'
"'Desta forma, a massa do povo, fascinada pelas vossas palavras e pelo vosso exemplo, sentirá as suas almas agitadas dentro de si, os seus hábitos serão gradualmente mudados, e, por fim, com um impulso, cairão de joelhos diante da nossa mãe comum.'
"Além disso, caros amigos, devemos prever todas as coisas, especialmente as objeções, para que possamos estar prontos para respondê-las de improviso e sem hesitação; pois nunca poderemos ter sucesso a menos que tenhamos primeiro, individual e coletivamente, nos familiarizado completamente com o nosso assunto em todos os seus aspectos. Que cada um de nós, portanto, se considere obrigado a anotar com escrupulosa fidelidade, não só os argumentos que são trazidos contra nós, mas também a natureza dos interesses, temores, desejos e até mesmo a mistura de ideias, sérias, extravagantes ou místicas, que estão alinhadas do outro lado; para que as nossas respostas, e a nossa maneira de considerar as suas ideias, possam espantá-los e confundi-los, e assim os levar cativos à nossa causa.
"'Refleti', digamos-lhes, seguindo-os de perto, 'os senhores certamente não são tão cegos a ponto de não verem o que está a acontecer ao vosso redor. Agarrem a âncora de segurança que Roma lhes oferece, se é que acreditais que ela é forte o suficiente para resistir a tantas ondas impetuosas. A torrente está constantemente a alargar-se e a ganhar força. A perda de até mesmo um único momento pode ser, mais tarde, a fonte de arrependimento vão. Chamem aqueles que só eles são poderosos para vos salvar, levantando contra estas águas furiosas uma barreira intransponível e eterna. Sozinhos (non contando che su di voi), o que poderiam fazer contra as catástrofes iminentes? Refugiem-se, então, conosco; venham com mentes preparadas, e nós vos ensinaremos a domar esta massa diante da qual estais agora a tremer; nós vos permitiremos associar este povo à obra gigantesca da sua própria metamorfose – uma obra que nunca poderia ser executada senão com a ajuda de expedientes como os nossos.'
"Sei, por experiência, que este tipo de linguagem é de certa eficácia. Assim que alguns destes personagens se converterem, outros os imitarão; e quando houver, por estes meios, algumas brechas feitas no Protestantismo – quer estas conversões provenham de motivos genuínos, quer sejam determinadas por ofertas vantajosas, que não serão poupadas se a pessoa valer o esforço (ne val la pena) – podemos certamente contar que o povo, atraído por estas conversões, não resistirá por muito tempo ao jugo da pura autoridade, e então saberemos como fazê-los trabalhar firmemente. Pois, eu não gostaria que se perdesse de vista que a nossa principal preocupação deve ser moldar o povo aos nossos propósitos. Sem dúvida, a primeira geração não será totalmente nossa; mas a segunda nos pertencerá quase totalmente, e a terceira inteiramente. Sim, o povo é o vasto domínio que temos de conquistar; e quando estivermos livres para cultivá-lo à nossa maneira, fá-lo-emos frutificar para o proveito do celeiro empobrecido [4] da cidade santa. Saberemos, por meio de histórias maravilhosas e espetáculos magníficos, exorcizar a heresia das cabeças e corações da multidão; saberemos pregar os seus pensamentos nos nossos (inchiodare sui nostri i di lei pensieri), para que não se movam sem a nossa boa vontade. Então, a Bíblia, aquela serpente que, com a cabeça erguida e olhos a faiscar fogo, nos ameaça com o seu veneno enquanto se arrasta pelo chão, será transformada novamente num cajado assim que formos capazes de a agarrar; e que feridas não infligiremos com ela nestes Faraós endurecidos e nos seus feiticeiros astutos! Que milagres não faremos por meio dela! Oh, então, cajado misterioso, não te permitiremos novamente escapar das nossas mãos e cair por terra!
"Pois bem sabeis que, há três séculos, esta áspide cruel (crudele aspide) não nos tem dado descanso; bem sabeis com que dobras nos enlaça, e com que presas nos rói!"
Podemos reconhecer nesta linguagem uma mente amargurada e remoendo ressentimento contra as Sociedades Bíblicas Inglesas. Ele deve ter-se deparado muitas vezes com elas no seu caminho e ter-se enfurecido com a sua influência. As suas expressões selvagens foram recebidas com um riso seco e forçado, bastante diferente da espontânea alegria exibida antes.
V.
O próximo que falou parecia, pelo tom de voz, ser de idade avançada. Não consigo supor de que país era. Seu modo era grave e sóbrio.
"Meus irmãos, quanto à Bíblia, segui meu conselho. Para o nosso maior bem, evitemos – evitemos cuidadosamente – esse terreno. Se me é permitido dizer abertamente o que penso desse livro, não é de modo algum para nós; é contra nós. Não me admiro, de forma alguma, da obstinação invencível que ele gera em todos aqueles que consideram seus versículos como inspirados.
"Sabeis que, uma vez iniciados nos estudos teológicos, devemos necessariamente ter algum contato com a Bíblia. Quanto a mim, embora em companhia de numerosos colegas de estudo – meras máquinas acostumadas a confundir o texto com o comentário, como se fossem uma só e mesma coisa (ilusão que, para dizer a verdade, é-nos extremamente útil) –, ainda assim me era impossível, dotado como era de alguma capacidade de reflexão (como prova minha presença aqui, entre o pequeno número dos eleitos), era-me impossível, repito, ser tão absurdamente crédulo a ponto de não distinguir o texto do comentário, pelo qual seu sentido quase sempre é deturpado. Na simplicidade da juventude, esperava encontrar, ao abrir o Novo Testamento, ali estabelecida, totidem literis (em letras garrafais), a autoridade de um chefe supremo na Igreja e o culto da Virgem, fonte de toda graça para a humanidade. Busquei com igual ardor a missa, o purgatório, as relíquias, etc. Mas em cada página via minhas expectativas frustradas; de cada reflexão que fazia nascia uma dúvida. Por fim, depois de ter lido, pelo menos seis vezes, aquele pequeno livro que desfazia todos os meus cálculos, fui forçado a reconhecer, comigo mesmo, que ele apresenta um sistema religioso totalmente diverso daquele ensinado nas escolas, e assim todas as minhas ideias foram lançadas na confusão (ne rimasi al sommo scompaginato).
"O olhar penetrante de meu confessor percebeu a agitação de meu espírito, e fui, consequentemente, obrigado a revelar-lhe minha angústia e dificuldade. 'Ah, reverendo padre!', disse-lhe, 'eu esperava encontrar no Novo Testamento cada um de nossos diferentes dogmas plenamente desenvolvido e tratado de acordo com o valor e a importância que costumamos lhes atribuir. Qual não foi minha surpresa ao não encontrar ali absolutamente nada semelhante ao que consideramos o mais essencial de nossas doutrinas.'
"Sem me permitir prosseguir, ele perguntou: 'Comunicou seus pensamentos a algum de seus colegas de estudo?' 'Não', respondi, 'sofri muito, mas sozinho.' 'Isso é bom', disse ele.
"A partir desse momento, manteve-me separado dos demais estudantes e, após sondar repetidamente minha consciência até suas profundezas, um dia dirigiu-me esta pergunta: 'Meu filho' (eu tinha então cerca de vinte e três anos), 'se eu colocasse em suas mãos a Geografia de Ptolomeu ou a de Estrabão, que viveram há cerca de dois mil anos, e lhe dissesse: Mostre-me nesses livros o nome de uma única cidade dentre todas as que foram construídas desde então – qual seria sua resposta?' 'Eu diria que é impossível, já que tais cidades ainda não existiam.' 'Exatamente; e o caso é absolutamente o mesmo com o Novo Testamento – o livro do cristianismo primitivo – em relação à Geografia de Ptolomeu ou de Estrabão. Tudo o que você procura ali surgiu muito mais tarde.'
"Diante dessas palavras de meu superior, olhei-o atônito. Ele me apertou afetuosamente ao peito e disse: 'Não se aflija; você será um jovem posto à parte. É digno de penetrar mais fundo do que os outros. O próprio Jesus Cristo, como deve ter notado, falou à multidão apenas em parábolas; mas, em particular, interpretava-as aos apóstolos, dizendo-lhes: 'A vós é dado conhecer os mistérios do reino', ou seja, possuir a chave desses segredos; mas evitava cuidadosamente usar essa linguagem diante do vulgo. Pensa que uma criança no berço está tão avançada quanto um homem adulto? Não. Da mesma forma, este livro é apenas o embrião da Igreja. Formas, novas doutrinas, a hierarquia, o poder do papado – todas essas grandes coisas que transformaram a Igreja em um oceano, por assim dizer – foram fruto de um progresso gradual, progresso este que muitas vezes foi dificultado, muitas vezes interrompido, mas que estamos destinados a levar à consumação.'
"Depois, a fim de neutralizar minhas impressões, colocou em minhas mãos Dupuis, Boulanger, Volney, Voltaire e alguns outros escritores. Por esse meio, e pouco a pouco, uma nova ordem de ideias se estabeleceu em minha mente, e acabei por me tornar capaz de elevar-me às mais altas concepções de nossa ordem.
"Relatei essa anedota, inteiramente pessoal, apenas para adverti-los contra a confiança excessiva em apoiar-se, como fazem os hereges, em um livro que infelizmente transborda de armas contra nós, não a nosso favor.
"Consequentemente, estabeleçamos este princípio: em público, agir como se nada tivéssemos a temer de tal livro, mas antes como se fosse favorável a nós; em particular, descrevê-lo como perigoso e nocivo, ou, quando isso não for prudente, declarar que ele é o germe do qual o catolicismo é o desenvolvimento completo e majestoso. Assim, prover-nos-emos de um arsenal mil vezes mais bem guarnecido do que o arsenal bíblico do protestantismo. Assim, iludiremos uma multidão de dificuldades e, ao mesmo tempo, manteremos acesa a controvérsia entre nós e os protestantes – exatamente o que desejamos; pois, enquanto o estado atual de coisas continuar, enquanto as massas perceberem que nossas disputas não levam a nenhuma decisão conclusiva, concluem que, se houvesse realmente algo na Bíblia que nos condenasse de forma positiva, em três séculos isso já teria se tornado plenamente evidente.
"Entretanto, sejamos vigilantes em colocar nossos melhores obreiros nos pontos mais importantes. Enquanto esses bons autômatos nos ajudam a assentar pedra sobre pedra, sob a direção de nossos membros iniciados, nosso edifício se erguerá sobre fundamentos tão sólidos que resistirá a todos os abalos futuros.
"Quanto a nossos textos, escolhamos os provenientes das antigas lendas dos bolandistas. Caso certas de nossas práticas ou doutrinas sejam questionadas, então multipliquemos milagres sobre milagres; repitamos os antigos e forjemos novos, de modo a lançar um véu resplandecente sobre o papa, a Virgem, o purgatório, a missa, nossas vestes eclesiásticas, nossas medalhas, nossos rosários; que nossos milagres sejam como um curso de água inesgotável, mantendo em perpétuo movimento cada roda de nossa imensa máquina.
"Que os hereges e os filósofos gritem contra nós quanto quiserem; não faremos esforço algum para silenciá-los, não daremos resposta; assim se cansarão e, ao fim, nos deixarão em paz. Ao mesmo tempo, estou convencido de que devemos, por todos os meios possíveis, assegurar o apoio dos pensadores modernos, quaisquer que sejam suas opiniões. Se puderem ser induzidos a escrever em nosso favor, paguemo-los generosamente, seja com dinheiro, seja com elogios. Contanto que o edifício universal continue crescendo sem cessar, que nos importa quais obreiros ou quais instrumentos sejam empregados? Há aqueles que se tornaram católicos fervorosos porque, segundo dizem, sabemos, com nossas imagens, nossas pinturas, nossas velas de cera e nosso ouro, produzir um efeito altamente pitoresco em nossas capelas! Outros se convertem porque a nossa é a única igreja que possui uma piscina sempre pronta, na qual quem se mancha pelo pecado pode lavar-se limpo!
"Assim, percebeis que dispomos de um número infinito de iscas para atrair todo tipo de pessoas; cabe a nós tornar-nos peritos na escolha e no uso delas."
VI.
Ele cessou. O orador que lhe sucedeu parecia mais jovem. Não posso afirmar se era italiano ou não. Nossa língua é pronunciada de tantas maneiras diferentes, que é difícil julgar o país de origem de um orador apenas pelo sotaque, sobretudo quando não podemos observar-lhe os traços. Esse orador começou expondo algumas teorias pérfidas, e seu estilo era, a princípio, fraco e descuidado. Fiquei surpreso com sua incoerência, mas, pouco a pouco, ele foi instigado por uma interrupção, e seu estilo tornou-se de repente conciso e vigoroso.
"Sei que somos acusados de temer as Escrituras; por isso, neste exato momento, ocupo-me em compor um pequeno livro, no qual aponto um método muito fácil de enriquecer nossas instruções orais e nossos escritos com textos bíblicos. Por exemplo:
"'Quem não odeia sua mãe, seu pai, seus irmãos, suas irmãs, e quem não está disposto a sacrificar pela igreja tudo o que possui, é um discípulo indigno de Jesus Cristo.'
"'Se a igreja é um corpo visível, o mais simples bom senso exige que não lhe neguemos uma cabeça visível.'
"'O povo católico é sucessor do povo de Deus; consequentemente, hereges e filósofos são os inimigos que estamos obrigados a exterminar, e os poderes que não se submetem à Santa Sé são tantos Faraós.'
"'Assim como, no Antigo Testamento, a voz do tabernáculo era a voz de Deus, da mesma forma a voz do papa é a voz de Deus, sob a Nova Aliança.'
"Eu poderia citar-lhes mil outros exemplos, com suas respectivas aplicações; mas o exemplo que acabo de oferecer basta para provar que nós também, assim como os hereges, podemos apresentar-nos com uma fraseologia inteiramente bíblica.
"Quanto à nossa maneira de proceder com protestantes de todos os tipos, ela deve necessariamente ser muito variada. Meu conselho é este: que mantenhamos um registro dos mais obstinados e perigosos entre eles, principalmente de seus ministros. Esse registro, no qual seus caracteres individuais deveriam ser anotados, serviria para advertir nossos missionários sobre os escolhos e areias movediças em seu caminho; eles saberiam de antemão com quem tinham de lidar, a quem evitar e a quem enfrentar, de acordo com a medida ou a natureza particular de seus respectivos talentos; isso seria de utilidade admirável, poupando-nos muitas derrotas e erros lamentáveis.
"Quanto a mim, ao dirigir-me àqueles que parecem menos hostis e mais manejáveis, argumento assim:
"'Não é evidente que só nós reunimos todas as vantagens que vossas seitas possuem separadamente? Nada perdeis, portanto, com vossa conversão; ao contrário, ganhais a vantagem de tornar-vos espectadores de solenidades tão imponentes, que cedo ou tarde hão de conquistar vossos próprios corações.
"'Nossa igreja chama-se católica, ou universal; eis por que emprega veículos sensoriais proporcionados às faculdades intelectuais de cada indivíduo. Considerai, então, o catolicismo como abrindo à humanidade o mais esplêndido banquete. Sabeis em que consiste o mérito de uma mesa – em estar repleta de pratos adaptados a todos os gostos e em exibir as mais deliciosas produções da terra. Ora, os homens não são todos constituídos da mesma forma. Um homem vê a Deus através das belas-artes e da poesia; outro só pode discerni-lo sob um aspecto sombrio e austero; um terceiro o contempla em uma atmosfera doce e radiante; e outros o veem através da névoa de vagos e místicos devaneios. Para todos, contudo, há um centro de unidade, a saber, Jesus Cristo; e, nesse ponto, não temos a mínima divergência convosco. O que, então, deveria impedir-vos de entrar na mais perfeita comunhão conosco? Não seria insensatez exigir que todos os homens cheguem ao mesmo ponto por uma única estrada, quando é próprio de uma religião divina conduzi-los até lá por uma multiplicidade de caminhos diferentes? Talvez vos repugne ver a Deus no homem a quem confessais vossos pecados, para obter absolvição? Mas considerai que um povo entregue a si mesmo, sem a contenção de um poder visível que substitua o invisível, logo se embruteceria, esquecendo o horror do pecado; ou, por outro lado, desesperaria, por já não ouvir uma voz que lhe diga: 'Eu sou Deus que te absolvo.'
"'Preferiríeis, não é verdade, que um amigo fosse vosso sacerdote? As mentes esclarecidas buscam o convívio de mentes esclarecidas; ora, não duvideis de que o catolicismo vos oferece uma multidão de sacerdotes que, conhecendo com quem tratam, jamais pensariam em vos impor atos de humilhação. Quanto às nossas práticas devocionais, não é necessário participar delas, senão para a edificação dos simples (per l'edificazione dei simplici). A igreja tem demasiada perspicácia para não saber fazer uso discreto de muitas de suas diferentes regras, de modo a adaptá-las a todos os matizes da inteligência, desde as profundezas da ignorância até as alturas do gênio. Já que sua mesa é tão ricamente provida, não seria absurdo que essa mesma abundância se tornasse fonte de dissensões? Não; uma restrição desse tipo jamais entrou no espírito de nosso sistema. A unidade, esse bem inestimável, é-nos cara, mas sabemos que é preciso fazer sacrifícios para preservá-la; sabemos que é necessária uma tolerância recíproca entre os diferentes convivas sentados ao mesmo banquete religioso, onde a escolha dos alimentos é livre, sem que ninguém tenha o direito de constranger o vizinho; e, por essa indulgência tocante e amável, todos são igualmente nutridos e satisfeitos.
"'Lembrai-vos de São Paulo, que nos proíbe desprezar os fracos; que não quer que aquele que crê poder comer carne perturbe outro que crê agradar a Deus apenas comendo ervas. É a vós, protestantes, que São Paulo se dirige quando diz: ‘Não destruas, por causa da tua comida, aquele por quem Cristo morreu.' Oxalá tivesse acrescentado: 'Não o destruas exigindo, com orgulho, que ele se conforme ao teu gosto pessoal.' [5]
"'No reino de Deus encontram-se diferentes luzes – desde o pálido brilho da menor estrela até a glória fulgurante do sol.
"'Aplicai esse mesmo espírito a diferentes doutrinas; àquela, por exemplo, que tanto vos ofende por colocar todo o poder nas mãos do papa. Sem dúvida, essa doutrina pode ser explicada às mentes instruídas de forma a situá-la em um ponto mais elevado e até mesmo dar-lhe a aparência de algo racional e justo; mas, por muitas razões, deve ser pregada ao povo em toda a sua crueza (in tuttala sua crudità materiale).
"'Pouco a pouco, à medida que fordes capazes de compreender as amplas e nobres concepções de nossa igreja, também percebereis por que ela canoniza indivíduos tão totalmente dissimilares – aquele que se absorve em um misticismo excêntrico; o homem que diariamente disciplina seu corpo até que o chão se tinja de seu sangue; e aquele que se deleitou em luxos e prazeres, quando sua posição os tornava acessíveis e legítimos. A razão é simplesmente esta: a natureza humana é multiforme.
"'Todas as coisas são boas, todas as coisas são santas, quando estão em seu devido lugar, e quando os homens não procuram impor a todos seus próprios princípios exclusivos. É difícil perceber que esse modo de proceder é, ao mesmo tempo, generoso e sublime?'
"Depois de assim argumentar, mas de forma ainda mais extensa, mudo de tática; analiso o protestantismo até em seus menores detalhes. Mostro de onde ele surgiu; exponho suas vergonhosas variações, o pernicioso exemplo que deu, as consequências de sua liberdade de investigação e sua miserável secura exterior, indício de sua esterilidade interior. Então exclamo:
"'Vede uma de nossas grandes procissões! Cada um ocupa seu lugar peculiar; pois nossa igreja, mesmo em suas grandes solenidades, não gosta de eclipsar a honra devida a nenhum estado ou condição.
"'Talvez vos surpreenda ver-nos adorar a Hóstia, cercada de magnificência deslumbrante. Nós também sabemos que Deus está em toda parte; e que Ele exige somente o coração, não é uma descoberta de vossos pretensos reformadores. Mas dizei-me, rogo-vos, quando foi que o povo conseguiu compreender todas essas abstrações quiméricas? Não houve sempre necessidade de certos sinais que servissem de degraus, por assim dizer, pelos quais os homens pudessem elevar-se ao ideal da religião?
"'Assim, a igreja, percebendo que a Ceia do Senhor, em sua simplicidade primitiva e vulgar, era pouco apta a excitar a devoção do povo, decidiu, enfim, concentrar sobre a Hóstia, pela missa, como em um ponto palpável e perceptível, todo o esplendor que lhe era possível conferir. A igreja obteve um êxito notável, por meio das frequentes exposições do augusto sacramento e pelo esplendor de suas cerimônias. A multidão, arrebatada pelo que é visível, comove-se e enternece-se, e a adoração sucede à admiração.
"'Sem esses meios católicos, não é de se temer, com razão, que aumente de modo alarmante o número dos que jamais elevam o coração a Deus?
"'Por outro lado, o homem esclarecido, o verdadeiro filósofo, que de fato não tem necessidade dessas formas materiais, não tentará, certamente, impor seu próprio espiritualismo a seres cujo destino é permanecer materiais e grosseiros. Ele se contentará em admirar os engenhosos recursos do catolicismo, e agradecerá a Deus por ter permitido à igreja encontrar meios tão adequados para despertar a piedade da massa estúpida e ignorante.
"'Assim, sob os tetos de nossos templos, crianças e homens [6] tendem ao mesmo ponto, graças à fecundidade divina e inesgotável da verdadeira igreja, que, como diz São Paulo, faz-se tudo para todos, a fim de ganhar, se possível, o mundo inteiro, sem contudo sacrificar a verdade, por esse modo de transigir.'"
VII.
A partir das primeiras palavras do discurso que se segue, não tive dificuldade em reconhecer a voz untuosa que me fizera tantas perguntas insidiosas durante meu interrogatório. Era o atual geral da Companhia, o Padre Roothaan. Senti, a princípio, uma considerável agitação, de modo que perdi duas ou três frases, as quais, porém, eram de pouca importância e que acrescentei para completar o sentido.
"A coisa mais fatal que poderia nos suceder no momento presente seria a transformação de uma religião alegre, cintilante e cénica, num cristianismo argumentativo, oposto à pompa e ao espetáculo, numa espiritualidade iconoclasta; quero dizer com este termo uma fé destruidora das formas católicas. Todos vós sabeis que estas são o poderoso escudo que cobre nossos planos. Mas se o encanto poético alguma vez se romper, se o povo começar a buscar inspiração nos apóstolos ou nos apologistas primitivos, então nossa nau, açoitada por ventos impetuosos, correrá grande risco de afundar, levando consigo toda a imensidade de seus tesouros. A revolta tornar-se-ia geral. O glorioso edifício, obra de tantas eras, seria assaltado e despedaçado por milhares de mãos profanas. Seria o dia de pisotear tudo quanto pudesse ser acusado de proceder da idolatria. Desta vez, não haveria misericórdia; nada seria poupado. O desalento e o terror então percorreriam nossas fileiras, pois não poderíamos contar, para suprimir esses movimentos, com as mãos fortes de certos poderes que ainda não havíamos suficientemente empenhado em nossos interesses. Assim que a palavra fatal tivesse corrido de que nada tem valor na religião senão o que é espiritual e bíblico, a hierarquia cairia instantaneamente. Toda esperança estaria perdida para o sacerdócio, quando o povo não reconhecesse outro guia senão um livrinho. Para quem nos voltaríamos então, sobre quem fundaríamos nossas expectativas, em tão geral deserção; que remédio procuraríamos para curar tão horrível mal no sangue? (per guarir nel sagnue si oribilemale.)
"Não que exista o menor sintoma da aproximação de tal perigo. Pelo contrário, o protestantismo está-se decompondo; está-se desfazendo; começamos a obter dele alguns homens notáveis, e até há altos personagens que conseguimos convencer de que, se continuam a sustentar o protestantismo, estão perdidos.
"Mas não basta estarmos cientes de uma grande apatia entre nossos antigos inimigos; devemos fazer tudo quanto estiver em nosso poder para a aumentar.
"A prova de que a fé em um ser abstrato é incapaz de constituir uma união sólida e duradoura – de que não pode formar um vasto corpo animado, por assim dizer, por uma única mente – é que mal se passaram trezentos anos desde a primeira efervescência, e o protestantismo já se desgasta e se encaminha para a decadência. Sim, estamos destinados a insultar suas últimas agonias, a marchar sobre seu esqueleto quebrado e seus ossos dispersos! Oh! Apressemos essa dissolução por nossos fortes e unidos esforços! Preguemos aos protestantes tímidos que o deísmo e a incredulidade estão corrompendo suas várias seitas, que Deus está, finalmente, cansado das heresias, e que agora, em nossos dias, está prestes a exercer sobre elas seu terrível e último juízo.
"Entretanto, evitemos cuidadosamente entrar em um conflito aberto e sério com os protestantes. Não poderíamos senão perder terreno com isso; e isso daria demasiada atenção ao assunto. Pessoas ávidas de novidades ficariam encantadas em ver iniciado tal combate. Optemos por uma guerra secreta, que, embora menos brilhante, é mais segura para nos trazer vantagem. Evitemos luz excessiva. Contentemo-nos em derrubar as pedras da cidadela protestante, uma a uma, em vez de ousar tomá-la de assalto. Isso não seria nem prudente nem útil. Lancemos desprezo sobre essa religião inglória, nua e cadavérica; e exaltemos a antiguidade, as harmonias e a maravilhosa aperfeiçoabilidade da nossa.
"Mas devemos, acima de tudo, providenciar um estoque de argumentos para aparar as objeções que os protestantes tão prontamente levantam, e que se fundam nos vícios e crimes do clero antigo e dos papas. Um tema difícil, admito, e que merece uma teoria especial; pois afinal, o que temos para alegar com habilidade, sutileza e força, que nos permita retirar-nos com honra dessas discussões que tantas vezes nos importunam? Se pudéssemos ao menos enfrentá-los armados com boas respostas, a questão poderia, pelo menos, ser mantida em suspense. Sabeis bem que o terreno em que os protestantes mais nos atacam é a Idade Média, que lhes apraz chamar de Idade das Trevas. Infelizmente, sobre este ponto nossos melhores escritores com demasiada frequência não fazem senão fornecer aos adversários armas contra nós!
"Ó Roma! Quantos trabalhos ansiosos, quantas dores de mortificação tu nos custas! Que tarefa esmagadora é ter de sustentar um véu de bordado cintilante entre teu caos e as nações!" – (un ricamo brillante tra il tuo chaos ed i populi!)
(Essas palavras jorraram como um relâmpago. É impossível dar ideia do contraste entre esse súbito estalo e o costumeiro modo calmo e afável do Padre Roothaan.)
"Temos, contudo, uma fonte de regozijo: nutramos, no fundo de nossos corações, este princípio de que tudo quanto não se une a nós deve ser aniquilado; e consideramo-nos prontos a fazer, assim que tivermos meios, uma aplicação enérgica desse princípio. O protestantismo, pelo contrário, desarmou-se completamente quando, ao início, pregou a doutrina da tolerância e declarou que perseguir por motivo de religião é violação do evangelho. Oh sim! Isso serve bem aos que se contentam com coisas pequenas, mas não a nós que almejamos grandeza que eclipse e anule toda outra grandeza."
VIII.
O irlandês aqui retomou o discurso com tanta presteza que parecia estar esperando impacientemente por uma oportunidade para intervir. Não havia orador que eu achasse tão difícil de acompanhar.
"Digo-vos, irmãos, por quais meios podemos moldar e formar o verdadeiro católico em meio às seitas heréticas. Com bispos devotos e um clero cuja tática tenha sido aperfeiçoada por um sério curso de estudo, podemos preparar para o povo instrutores que não falharão em acelerar o progresso de nossas ideias. Tudo correrá bem conosco, contanto que consigamos que o católico, desde a sua mais tenra infância, abomine até o hálito de um herético e resista firmemente a todas as insinuações, a todos os livros e a todos os discursos de cunho religioso provenientes deles; mantendo, ao mesmo tempo, um modo cortês e gracioso para com eles. Em outras palavras, ele deve demonstrar grande sociabilidade para com os protestantes, mas deve evitar todo contato ou comunhão intelectual com eles. É isto que devemos incutir como a única condição de sucesso em todo exercício de nosso ministério, seja pelo catecismo, pela confissão ou pela conversação. Esta é a nossa única chance de reunir o que está quebrado, fortalecer o que está fraco e magnificar o que é pequeno.
"Todo bispo deve agir rigorosamente com base neste princípio: ser gentil, mas inflexível. Que ele saiba assumir o semblante de um cordeiro, se quiser espalhar ao seu redor um perfume de santidade que conquistará todos os corações; mas que saiba também agir com a ferocidade de um leão em fúria quando for chamado a proteger os direitos da igreja, ou a reivindicar aqueles dos quais ela já foi despojada pela tirania dos governos. No entanto, se os bispos e o clero souberem cumprir seu dever, todos esses direitos retomarão sua supremacia primordial.
"Um dos perigos nos quais nosso sistema pode esbarrar é a política dos governos protestantes. Eles assumiram a arte de fingir um desejo de nos fazer justiça e professam até muita condescendência para com aqueles que eles denominam, com desdém, de Papistas. É seu propósito quebrar um isolamento que nos é profundamente vital manter; se eles despertassem a simpatia e apagassem os limites da separação, nosso plano estaria arruinado em sua própria base.
"Meus irmãos, vamos derrotar tais manobras, custe o que custar, por meio de manobras mais hábeis e mais ativas. Citarei uma que por vezes vi ter sucesso e que considero eficaz. O confessionário deve ser o nosso campo de ação, onde devemos desenganar todos os que correm o perigo de serem apanhados por uma isca tão pérfida. Convençamos os fiéis de que o silêncio para conosco é um crime; que é o medo, e não a boa vontade, que move seus tiranos; que aquele que tem perspicácia suficiente para enxergar através dessas artimanhas, longe de acreditar que há afeto e bondade nelas, percebe apenas um profundo desígnio de enfraquecer a nossa força e afrouxar o nosso laço de religião. Estes governos estão bem cientes de que uma aliança com os católicos, mais cedo ou mais tarde, os capacitaria a disputar o direito dos príncipes católicos de governar populações que nada têm em comum com eles. Devemos, portanto, repetir aos fiéis no confessionário, e isto sob o selo do mais escrupuloso segredo: — 'Abstenham-se diligentemente de sacrificar todas as suas esperanças futuras a um interesse temporário e vil, ou prepararão para seus filhos uma escravidão pior do que a sua! A heresia está de vigia para vê-los curvar a cabeça sob o jugo de suas doutrinas execráveis. Lembrem-se de que, em tempos antigos, era costume cobrir com flores a vítima que era conduzida ao altar. Ai de vós se caírem na indiferença! Pois então o dique que vos protege será rompido, e vós, águas puras que sois, passareis para um lago pestilento e fétido!
"'Reflitam que, se cederem, estão perdidos. Irão mesmo permitir-se tornar os tolos de homens no poder, que buscam apenas enganá-los? O respeito exagerado que mostram por suas virtudes aparentes, a estima tola por suas pessoas que eles buscam lhes inspirar, serão a vossa ruína. Os afagos que lhes prodigalizam matam a vossa fé; pois qual é o propósito de suas intrigas? Torná-los vis e irreligiosos. Para nós, que penetramos sob a aparência exterior deles, nosso estrito dever no confessionário – neste santuário, onde nada além da verdade é falado – neste tribunal, que é o asilo inviolável da igreja e que a heresia em sua astúcia gostaria de destruir – neste lugar sagrado, onde ocupamos o lugar do próprio Deus, nosso estrito dever é iluminá-los sobre seus verdadeiros interesses, sobre seus direitos e sobre o caráter que devem assumir para escapar de suas armadilhas.'
"Sabemos muito bem, caros irmãos, quantas pedras estão espalhadas sobre estes países mistos e bastardos. Tenhamos o trabalho de procurar estas pedras e reuni-las – ainda que lenta e penosamente – em uma única pilha. Desta pilha formaremos uma massa, uma rocha enorme, que se tornará diariamente mais pesada, mais áspera, mais irresistível, até que toda a sua massa esmagadora caia sobre a cabeça da heresia!
"Enviemos também as nossas palavras misteriosas, [7] que lançarão flashes vívidos da nossa doutrina, para deslumbrar, atrair e reunir convertidos. Queremos que alguns destes tições em brasa entrem em contato com aqueles que estão quase ou totalmente extintos. Vamos multiplicar as mãos piedosas que se ocuparão em procurar estas toras sem vida, empilhá-las e reacendê-las. Foi a revolta protestante que as dispersou e as deixou esfriar. Que elas, repito, sejam novamente reunidas em pilhas, e que os bispos e o corpo do clero reanimem estes vastos braseiros católicos; que os inflamem sem cessar, pois pequenas chamas rapidamente se tornam grandes, e as grandes se tornam conflagrações temíveis! Sim, sim; que estes fogos vingadores se unam e se tornem uma vasta fornalha, até que finalmente não tenhamos mais necessidade de envolvê-los em mistério; e então o elemento destruidor purgará os ímpios e batizará apropriadamente todas as seitas, até que a igreja sozinha permaneça de pé sobre suas ruínas."
IX.
O sotaque do orador seguinte denunciava o francês.
"Tudo o que o nosso amigo tem dito é perfeitamente justo. De fato, nada deve, na aparência, distinguir-nos dos outros homens, desde que carreguemos sempre em nossos corações o programa da nossa libertação. Devemos procurar trabalhar todas as coisas em conjunto para o triunfo da nossa igreja, e assim prepararemos para os nossos descendentes um destino magnífico.
"Sim, o exterior do católico pode ser sociável, mas que ele não nutra menos, em seu íntimo, a ira concentrada e a antipatia inconquistável. Não hesito em dizer que o sucesso final da nossa obra depende da concretização deste modelo.
"Mas como encontrar homens capazes de concretizá-lo, multiplicá-los, cobrir toda a Europa com eles? Aquele que responder corretamente a esta pergunta merecerá altares e estátuas. Digno será que lhe atribuamos milagres e que o declaremos o patrono celestial do povo, o homem que resolver este árduo problema. O que devemos fazer para recrutar tal exército, organizá-lo e discipliná-lo de modo a torná-lo exclusivamente subserviente ao triunfo das nossas ideias?
"Isolar aqueles que possamos ter conquistado, não lhes permitir outro alimento senão o pão e o vinho da nossa mesa, e, gradualmente, transformá-los em leões em fúria – este deve ser o nosso principal objetivo.
"Temos, contudo, uma imensa variedade de motivos e interesses com os quais podemos trabalhar. A certos homens, devemos oferecer subornos de bens terrenos; a outros, devemos prometer coroas de vida eterna; alguns podem ser incitados pelo progresso do bem-estar geral; outros são capazes de desejar promover a glória da igreja e a expansão da verdadeira fé por toda a Terra.
"Pudéssemos apenas lisonjear-nos com a esperança de ver a alavanca política e a religiosa ambas movidas por uma só mão, como na Idade Média e na Antiguidade remota! No entanto, temos meios incontestáveis de influenciar todas as classes. De fato, que sistema já existiu, em qualquer época, tão poderoso quanto a igreja para multiplicar ou mudar meios de ação? É verdade que as ordens religiosas estão neste momento fragmentadas e quase moralmente aniquiladas; mas ainda existem como corpos, e tudo o que temos a fazer é reanimá-las com o sopro da nossa própria vida.
"É isto que também devemos fazer pela confissão! Que esta instituição perdure enquanto o sol existir! Enquanto ela continuar a existir, desafio todos os poderes terrenos unidos a desferir um golpe mortal no Catolicismo!
"Pudéssemos apenas aperfeiçoar esta instituição! Pois ela é aperfeiçoável. Por enquanto, está apenas na sua infância. Pudéssemos apenas imbuir todo o clero com o conhecimento da sua virtude secreta! Que império prodigioso ela não poderia adquirir para a igreja! Que imensa fonte de lucro! Que acúmulo de almas ela poderia ganhar para nós! Que partidários! Que tesouros! Que exército inumerável ela poderia colocar à nossa disposição, e que superioridade nos asseguraria no dia da batalha!
"Não teríamos encontrado o ponto fixo desejado pelo matemático de Siracusa?
"Confissão! Que alcance para o gênio sob o seu mistério impenetrável! A doçura e o terror ali desempenham seu papel alternadamente. Volumes poderiam ser escritos sobre o poder e os usos deste instrumento, que são tão múltiplos quanto as várias afeições e propensões do caráter humano. Deve tornar-se em nossas mãos a vara miraculosa com que aterrorizar o Egito, seus Faraós e seus ministros, até que o Protestantismo, que amputou a sua própria mão direita, caia como uma vítima fácil para nós.
"Quanto às aristocracias protestantes, não devemos ser abertos com elas, nem nos velarmos de modo a despertar suas suspeitas. Pode ser até necessário, por vezes, arriscar uma admissão, se por uma admissão, deixada escapar com destreza, pudermos encontrar meios de desferir um golpe de mestre. Por exemplo, poderíamos dirigir-nos a elas em termos como estes:—
"'Sim, certamente, nossos métodos para sondar os corações daqueles que nos são confiados, e acima de tudo para subjugar os sentimentos dos jovens, podem parecer chocantes; mas examinem o assunto um pouco, e reconhecerão que se nos imitassem, seus governos seriam mais estáveis. Apenas nos deem uma mão amiga, e lhes mostraremos como obter as estatísticas de cada cabeça individual. Pelo menos neste aspecto, somos seus mestres. Na sua religião, vocês deixam as mentes das pessoas por conta própria, o que produz, como bem sabem, todo tipo de revoluções e muitas catástrofes. Adotem confessores. Que vossos jovens submetam seus pensamentos, desde os primeiros anos, a um diretor de consciência. Pensem na imensa influência dos princípios que homens do santuário depositam em um peito juvenil! Mostrem-se favoráveis àquele clero que, curvando-se sobre uma alma assim sujeita, a lê como se fosse uma carta aberta. O clero lhes seria grato. Que ele tenha interesse em servi-los, de modo que possa avisá-los oportunamente quando a maré estiver subindo ou descendo em cada país, e lhes permita transformar eventos públicos em vosso próprio proveito. Não duvidem de que, se esta aliança entre religião e política pudesse ser posta em prática em toda a raça humana, esta se tornaria universalmente cera em suas mãos, para modelá-la como bem entendessem e carimbá-la com o vosso próprio selo.'
"É desnecessário dizer que uma linguagem como esta não deve ser proclamada dos telhados; ela deve ser habilmente insinuada nos ouvidos daqueles que poderiam ser de vasta utilidade para nós, ao serem atingidos por tais vislumbres de luz. Que eles comecem a aceitar estas ideias e a ajudar a trazê-las à moda, e então será, é claro, nossa tarefa transformar estes robustos auxiliares em nossos humildíssimos servos (in servi umilissimi).
"Em breve estarei preparado para lhes apresentar um trabalho detalhado sobre este assunto, que aqui apenas toquei superficialmente."
X.
O jesuíta que falou a seguir se expressou no mais puro italiano. Não obstante, a construção de suas frases e a lúcida precisão de seu método me induziram a pensar que ele também era francês. A estrutura de suas frases era tão à maneira francesa que mal tive esforço para traduzir seu discurso.
Os hereges de cerviz dura de quem ele fala são os protestantes das classes mais altas, não a gente comum.
"É principalmente sobre as tendências anárquicas do livre-exame que devemos atacar estes hereges de cerviz dura, e tenho-lhes falado frequentemente assim:—
"'Se há algo completamente inexplicável para pessoas razoáveis, é a vossa conduta. Vós permitis o livre-exame na religião; isto não equivale a permitir, legitimar, ou mesmo provocar o mesmo em todas as questões políticas? Se admitis uma licença tão grande num assunto inteiramente divino e imutável – um assunto tão profundo e abstruso como é a religião, mesmo para a minoria erudita – não é o auge da inconsistência esperar escravizar as mentes dos homens, proibindo-lhes toda investigação sobre um tema tão profundamente humano e variável como a política? Por um lado, esperais exercer autoridade soberana e inquestionável, enquanto, por outro, onde Deus e a igreja estão em jogo, auxiliais a sacudir o jugo de uma autoridade mil vezes mais sagrada e mais necessária! Certamente seria impossível conceber uma contradição mais palpável e absurda.
"'As suas consequências são óbvias. Quando, por meras vantagens temporais, vários príncipes encorajaram a revolta contra a igreja, o mesmo desastre logo recaiu sobre eles próprios. Tiveram de suportar, por sua vez, um exame ainda mais severo do que aquele a que Roma tinha sido sujeita – um exame dos seus direitos dinásticos, dos seus códigos, das suas ações – um exame que ocorreu sob o brilho de uma conflagração terrível, e que os enviou a perecer ignominiosamente no cadafalso como salteadores de estrada.
"'Tais são os frutos do livre-exame. Se ele multiplica por toda a parte os seus púlpitos pestilentos, os efeitos habituais se seguirão inevitavelmente. Daí eu extrair as seguintes conclusões:—
"'Se alguma vez a aristocracia da nossa igreja for derrubada, todas as outras aristocracias perecerão igualmente.
"'Se alguma vez a Igreja Católica for decapitada, todas as outras monarquias partilharão o mesmo destino.
"'Se alguma vez o púrpura dos nossos cardeais for profanado e rasgado em trapos, todos os outros púrpuras serão rasgados da mesma maneira.
"'Se alguma vez o nosso culto for despojado da sua pompa e grandeza, haverá um fim para toda outra pompa e grandeza na Terra.
"'Nós não os lisonjearemos como fazem os cortesãos; diremos toda a verdade, na esperança de que, para nosso benefício mútuo, cheguem a estas simples e seguras conclusões: se a Igreja Romana vive, todos viveremos com ela; se ela perece, nenhuma das grandezas que até agora, de fato, foram sustentadas pelo Catolicismo sobreviverá à queda daquela grandeza infinita, a principal de todas, e perante a qual o universo por tanto tempo se prostrou. Mas se, pelo contrário, fizerem causa comum conosco, no esforço para reunir o povo em torno da antiga bandeira, se os vossos braços, enquanto ainda podem, os fizerem regressar aos seus caminhos abandonados; então, em lugar de desordens infinitas, teremos a união dos dois poderes, que continuará a crescer diariamente até se consolidar perfeitamente.
"'Dêem-nos, então, as vossas simpatias; voltem os vossos rostos para nós; desacreditem o Protestantismo; e que o Catolicismo, entronizado com a vossa ajuda nas opiniões dos nossos tempos, levante a cabeça, espalhe o seu domínio sobre o mundo inteiro e o subjugue completamente. E isto ocorrerá inevitavelmente, se homens de alta posição se declararem convertidos sem temor; desde que (e isto é muito importante) a sua mudança não possa de modo algum ser atribuída a motivos de interesse.
"'Podem, de fato, negar que a atual fúria por inovação surgiu do movimento ocasionado pelo Protestantismo ao lançar a Bíblia perante a multidão insensata? A primeira coisa a fazer, portanto, é trazê-los de volta da Bíblia para a autoridade Católica, que retira deste livro apenas o que é prejudicial, permitindo a livre circulação apenas daquelas porções que garantem a boa ordem.
"'Como é que tantas mentes superficiais ousam moldar o seu próprio conjunto de opiniões? Não é porque aboliram toda a sujeição ao tribunal das consciências, que sozinho vigiava os pensamentos e punha freio nos lábios? Consequentemente, este tribunal deve ser restaurado, e para que todos o respeitem, os grandes devem ser os primeiros a curvar-se perante ele; e esta submissão não os humilhará nem os rebaixará de modo algum. Entre as preciosas vantagens a serem derivadas dela, a parte deles não é rica? Mal podem imaginar o que a igreja tem reservado para recompensar serviços de tamanha importância.'"
Neste ponto, um ligeiro murmúrio de escárnio causou uma interrupção momentânea.
"'Pois, uma vez que o nosso culto renovado tenha recuperado tudo o que a heresia lhe arrebatou, o Catolicismo, que despreza o espírito mesquinho do Protestantismo, abrirá amplamente os portões dos seus templos, para que cada posto, cada estado, possa ali brilhar no seu respetivo lugar. Sendo ela própria grande, simpatiza naturalmente com tudo o que possa acrescentar ao seu esplendor. Loucos ou insensatos são aqueles que, pelo seu plano de despojar as igrejas de tudo o que lhes poderia dar um aspecto imponente, tornaram a nudez da pobreza conducente a essa outra mania da igualdade universal.
"'Concedam-nos, imploramos, a vossa ajuda para derrubar todo obstáculo ao entendimento mútuo das duas autoridades – a igreja e o trono. É somente quando estas duas autoridades forem consideradas como dogmas divinos, e quando se sustentarem mutuamente, que terão poder suficiente para varrer todo este caos de questões perigosas que converte a sociedade num mar tumultuoso. Que resultados gloriosos se seguirão, por outro lado, desta feliz união, desta aliança fraterna! A igreja e o estado, tornados valentes por esta união, pisarão as duas hidras, mãe e filha; [8] o fogo as consumirá, e suas cinzas serão espalhadas aos quatro ventos!'"
XI.
Houve uma pausa de alguns instantes. Uma conversa se desenrolou, tão geral e desconexa que foi impossível para mim apreender o seu significado. Mas o Padre Roothaan logo retomou o discurso, e as suas primeiras palavras, sem dúvida, relacionavam-se com esta breve conversa.
"Neste sentido, eu gostaria de salientar que não estabeleceremos nada de forma firme a menos que comecemos com aqueles que devem dirigir os outros. Portanto, parece-me essencial regulamentar a iniciação, formando várias fases nela (stadii). Digo regulamentar, porque nunca devemos arriscar a nossa luz, senão em terreno seguro e após um escrutínio rigoroso das disposições da pessoa a ser iniciada. Um raio a mais, por vezes, em vez de encorajar (imbaldanzire) aquele a quem é comunicado, serve apenas para o ofuscar e desviá-lo. Perdemos assim alguns instrumentos excelentes e ativos, por termos imprudentemente tentado alargar a sua missão. Saibamos bem de antemão com quem temos de lidar.
"Não devemos, contudo, permitir que uma cautela razoável degenere em desconfiança excessiva. Que se façam ensaios frequentes para adquirir uma extrema delicadeza de tato e aquele discernimento do homem interior pelo qual possamos assegurar-nos dos pensamentos secretos de uma pessoa. É bom começar por nos queixarmos dos males que oprimem a igreja e depois insistir na necessidade de ligar fortemente o clero inferior aos seus bispos, para que possam ajudar-se mutuamente na busca de um remédio. A conversa, assim iniciada, raramente falha, se for habilmente acompanhada, em revelar o verdadeiro caráter do indivíduo em exame. Depois de o ter sondado, pode-se arriscar uma palavra sobre a urgência de unir homens distintos por posição ou talento (sempre supondo que ele próprio seja desta classe), a fim de erguer um dique contra a torrente e, por fim, pôr a igreja na posse do seu antigo cetro. E se as suas respostas indicarem que é capaz de nos compreender, os meios a empregar para alcançar este grande fim podem ser-lhe, em seguida, sugeridos. Poderá, posteriormente, ser trabalhado por meio de cartas, e se se mostrar apto, algumas faíscas da vasta ideia que nos anima podem ser-lhe transmitidas.
"Sim, há sem dúvida muitos sobre quem estas palavras: oração, religião, igreja, glória de Deus, conversão dos pecadores, exercem um poder mágico. Há outros para quem há um significado divino nas palavras: abolição da escravatura, reforma de abusos, amor à humanidade, instrução do povo, caridade universal. Pois bem, vamos cantar em todos estes tons (cantiamo su questi tuoni medesimi), e não sejamos poupados nos termos característicos da sua linguagem. Digamos que só o Catolicismo sabe inspirar filantropia e heroísmo, e não nos faltarão provas disso. Mas, sob a cobertura de todas estas formas, nunca devemos perder de vista o nosso projeto final.
"Certamente, é do nosso mais alto interesse que seja eleito um papa que seja fundamentalmente católico; mas se a maioria insistir num papa racional, que assim seja, sob a condição de que nos ajudem a colocar as rédeas nas suas mãos. [9] E não seremos poupados nos nossos elogios aos homens que lideram em quaisquer partidos, a fim de que possamos, com o tempo, convertê-los em instrumentos para o nosso próprio uso.
"Mas isto não é suficiente. Para garantir o sucesso dos nossos esforços, exigimos instrumentos bem provados e de natureza a resistir a toda sedução. Ao recrutá-los, devemos conquistá-los para as nossas doutrinas por tudo o que for mais lisonjeiro aos seus desejos. Esta é a maneira mais segura de criar propagadores zelosos e prudentes. Que todas as cortes, e particularmente as dos príncipes heréticos, sejam providas de alguns dos nossos sentinelas mais vigilantes, que devem ser inteiramente nossos, embora pertençam, na aparência, à seita Protestante; a fim de que nada nos escape, seja para o nosso lucro ou para a nossa desvantagem, de tudo o que se passa no gabinete e no consistório. Não devemos hesitar em nenhum custo quando nos importa tomar posse de um segredo.
"Eu também desejo ardentemente uma solução para este ponto dificílimo – como isolar os católicos sem que de modo algum pareçam estar isolados. Confesso que isto me parece quase impossível de alcançar entre o povo comum, porque eles não foram, como nós, desde os seus primeiros anos submetidos a uma disciplina fixa e inflexível. No entanto, podemos moldar os homens à forma que quisermos, quando interesses poderosos violentam, por assim dizer, as suas mentes. Os bispos, assim como o clero, devem aprender a necessidade de realizar este plano. Mas, uma vez que o conhecimento dos meios de execução é indispensável, deve ser nossa tarefa selecioná-los e incutir-lhes. O nosso trabalho é planejar:—
"1º, Que os católicos sejam imbuídos de ódio pelos heréticos, quem quer que sejam; e que este ódio aumente constantemente e os ligue estreitamente uns aos outros.
"2º, Que ele seja, no entanto, dissimulado, para não transparecer até ao dia em que for determinado irromper.
"3º, Que este ódio secreto seja combinado com grande atividade para tentar desligar os fiéis de todo governo que nos seja inimigo, e empregá-los, quando formarem um corpo destacado, para desferir golpes mortais na heresia.
"Vamos usar toda a nossa habilidade no desenvolvimento desta parte do nosso plano. Quanto a mim, é minha intenção dedicar-me especialmente a ela.
"Uma vez que nos familiarizemos com estes esquemas, e quando o nosso estoque de expedientes tiver sido suficientemente aumentado, não duvido que o sistema que agora parece cru e confuso, assumirá um aspecto muito diferente. Teremos trazido a um grau de perfeição tal, que as nossas noções vagas e obscuras atuais mal podem prefigurar.
"É uma sorte para nós que o catecismo de cada diocese contenha o precioso elemento sobre o qual o nosso dogma está fundado – que se deve obedecer a Deus antes que aos homens. Estas simples palavras contêm tudo o que exigimos para o papado. Se ensinarmos (e quem nos impedirá de o fazer?) que o papa é o vigário de Deus, segue-se que o papa fala absolutamente no lugar de Deus. É ao papa, então, que se deve obedecer antes que aos homens.
"Este é o laço de que todo confessor deve fazer uso, a fim de ligar indissoluvelmente os fiéis ao carro de Roma. Mesmo nos Estados Católicos não ostenta o púlpito esta inscrição de servidão: "Usque huc vienes, neque ultra?" [Até aqui virás, e não mais além?]. Mas felizmente este não é o caso do confessionário. Esse lugar não é profanado por quaisquer restrições tão insultuosas. Ali Deus reina supremo e, a partir do grande dogma, o clero (enquanto se mostrar o digno e legítimo órgão do papa) deriva o privilégio de ser obedecido como o próprio Deus.
"O catecismo assim explicado, de modo a apoiar os principais desenvolvimentos das nossas doutrinas, devemos insinuar de tempos a tempos que os direitos da Santa Sé podem ser momentaneamente esquecidos, permitindo Deus assim, a fim de punir a cegueira do povo; mas que estes direitos nunca poderão ser anulados, visto que está predito que ressurgirão um dia com maior esplendor do que nunca.
"Ora, um dos meios que julgo adequados para promover este espírito de isolamento e de orgulhosa autoconfiança que nos é tão importante, é a transmissão por participação declarada da onipotência do papado, não só ao corpo hierárquico, mas aos fiéis, nas suas relações com aqueles heréticos obstinados; com a condição, no entanto, de que nunca percam de vista a sua unidade indivisível. Que atributo lisonjeiro! Que fonte fértil de exaltação religiosa! Poderia conceber-se algo mais adaptado para unir as nossas forças e torná-las invencíveis?
"Uma coisa em que não podemos ser demasiado sérios e infatigáveis em proclamar é que só a religião Católica possui a verdade e a vida; que aquele que a detém está em paz com a sua consciência; que a sua ortodoxia não depende dos seus chefes ou dos seus padres; que, se estes fossem monstros de iniquidade, a sua vergonha e castigo devem recair sobre as suas próprias cabeças; que os seus crimes só poderiam ser vistos como aquelas nuvens que por vezes obscurecem o brilho do sol; que a estabilidade da igreja, a sua santidade e a sua virtude não dependem dos caracteres de alguns homens, mas daquela prerrogativa que só ela possui, de ser o centro da unidade; que ela apresenta o sinal da salvação, no qual devemos fixar os nossos olhos, como fizeram os Israelitas na serpente no deserto, e não nas falhas do clero! Se um licor divino é vertido de vasos de barro, em vez de vasos de ouro, é por isso menos precioso?
"Basta que tais argumentos sejam temperados com eloquência vívida, e acreditem na minha palavra que mesmo aqueles que passam por pessoas esclarecidas não deixarão de ser capturados (tolti) por eles, tal como o resto.
"Insistamos também em declarar que, se o Catolicismo vencer e se tornar livre para agir segundo o espírito de Deus, operará a felicidade da humanidade; que, consequentemente, trabalhar para quebrar as cadeias em que o mundo e os poderes do mundo o prenderam, dedicarmo-nos, corpo e alma, à sua emancipação, é fazer tantos sacrifícios pela propagação das doutrinas mais santas e pelo mais nobre progresso da humanidade. Poderá o triunfo da causa de Deus conduzir a outro fim que não o triunfo final dos princípios mais generosos que alguma vez aqueceram e agitaram o coração do homem?
"Eu também sou de opinião que é aconselhável fazer uso frequente da Bíblia. Um prisma não reflete todas as cores existentes? E poderá o nosso sistema deixar de refletir uma única ideia de todas aquelas que passam pela imaginação dos homens? Não; pôr de lado a Bíblia seria manchar o nosso belo prisma. Sugerirei alguns exemplos do modo como ela pode ser usada.
"Preguemos que da união dos filhos de Deus com os filhos dos homens, surgiram os monstros e gigantes que trouxeram o dilúvio sobre a terra. Lembremos incessantemente aos nossos ouvintes do cativeiro da Babilônia, da escravidão no Egito, da conquista da terra de Canaã, da arca, dos esplendores do templo de Salomão, da autoridade do sumo-sacerdote, dos seus vestimentas soberbas, dos dízimos, etc., etc.
"Mesmo estes poucos exemplos, notem, fornecem-nos textos inumeráveis para fomentar o espírito de antipatia e separação, e para santificar todos os desfiles sensuais e deslumbrantes da igreja.
"As alegorias cristãs podem ser aproveitadas. Podemos dizer que Deus designa para o extermínio, como os Cananeus, todas as nações que obstinadamente recusam entrar na unidade da igreja; e que o vigário de Jesus Cristo é nomeado para executar estes julgamentos no devido tempo. Que os católicos se entreguem com confiança implícita nas mãos do soberano pontífice, que é o seu único guia; Deus apressará o dia em que, para não falar da felicidade que os espera noutra vida, os fará os únicos árbitros de todas as coisas aqui em baixo.
"Em todas as ocasiões, incutamos no povo que, se eles se mantiverem unidos e obedientes, se tornarão fortes e receberão a gloriosa missão de derrubar o poder dos ímpios, e de açoitar com uma vara de ferro as nações inimigas da igreja, até que sejam levadas, por fim, a implorar a remissão dos seus pecados e o perdão pela sua revolta, através da intercessão daquele que ouvem ser tão frequentemente e blasfemamente designado como Anticristo."
Perto do final deste discurso, o Padre Roothaan pareceu-me estar em falta com a sua lucidez habitual. Havia uma falta da sua costumeira segurança. Poderia ser desatenção; poderia ser que estivesse com pressa de terminar. Mal ele o tinha feito, o irlandês retomou novamente o discurso.
XII.
"Não há razão para adotarmos uma visão demasiado pessimista da nossa posição em relação aos Estados Protestantes. Confiem em mim, a época terá de pagar caro pela sua tão amada liberdade. No entanto, reivindiquemos a nossa justa parcela nela. Aquele monstro de muitas cabeças chamado Igualdade Civil e Política, Liberdade de Imprensa, Liberdade de Consciência – quem pode duvidar que o seu objetivo, pelo menos o seu objetivo final, seja a destruição da igreja? Mas esta orgulhosa divindade jamais satisfará os votos dos seus adoradores entusiastas! Jamais será capaz de deter a nossa marcha!
"Primeiramente, esforçar-nos-emos para obter os mesmos direitos de que gozam os Protestantes: uma conquista fácil! Basta despertar o bom senso dos católicos neste ponto e repetir-lhes sem interrupção: "Que tirania! Não sois vós escravos? Atacai os seus privilégios; derrubai-os! É a vontade de Deus!" Em segundo lugar, quando este equilíbrio for obtido – visto que não avançar é recuar – elevemos os fiéis cada vez mais alto, por cima dos ombros, por cima das cabeças, destes cães de heréticos (di questi cani d’eretici). Procuremos a preponderância, e de tal forma que estejamos sempre a ganhar terreno na disputa. Em terceiro lugar, por meio de novos esforços, por uma energia irresistível, os fiéis, por fim, sairão vencedores, e colocarão na coroa de sua mãe aquela gema mais brilhante e mais rica: A Teocracia.
"Mas o que me parece mais urgente, neste momento, é criar uma linguagem cujas frases, emprestadas da Escritura ou das Bulas, não transmitam aos não-iniciados nada além do seu significado comum, mas que contenham, para os iniciados, os principais elementos da nossa doutrina. Este artifício é tanto mais especioso quanto, por seu intermédio, poderíamos propagar oficialmente as nossas ideias, sob o nariz dos governos (à la barba de' governi), sem que eles o soubessem, e sem o menor impedimento. Aqueles que estiverem munidos de uma chave serão capazes de explicar esta linguagem, em todas as ocasiões apropriadas, de modo a dar a conhecer a vontade de Roma. Geralmente, bastará, para este fim, levantar uma parte do véu com que a igreja é forçada a cobrir-se, para escapar a muitos inconvenientes no seu atual estado de escravidão. Desse modo, cada palavra pode ser transformada no invólucro de uma vasta ideia política.
"Também será muito proveitoso para a nossa causa se aumentarmos o número daqueles que nos compreendem e se conseguirmos alistar nas nossas fileiras os redatores dos briefs e decretos que emanam de Roma."
Neste momento, o padre regressou abruptamente à sua tese favorita.
"Atingí, atingí esta rocha: Independência dos Católicos em todo governo herético! Há uma sede ardente por esta independência! E vereis que esplêndidas fontes brotarão dela.
"Todos os servos Católicos devem tomar os da Irlanda como seus modelos; e a maneira como a Irlanda se comporta para com a sua madrasta cruel, a Inglaterra, lhes ensinará qual conduta seguir com as seitas e os estados Protestantes que os cercam e oprimem. Mas declaro positivamente que não temos chance de sucesso, a não ser por meio de associações, poderosamente combinadas, que tenham os seus chefes, a sua própria linguagem peculiar, uma correspondência ativa e bem organizada, e todo tipo de escritos incitantes. Para estes propósitos, não basta ter à nossa disposição homens de talento e homens de ação – devemos ter ouro para os manter firmes no seu trabalho. Sim, dêem-me ouro – muito ouro; e então, com cabeças tão hábeis e recursos como os que a igreja comanda, eu me encarregarei não apenas de dominar o mundo inteiro, mas de o reconstruir por completo."
O tom triunfante da sua voz foi subitamente contido, e ele retomou, como se estivesse a corrigir-se.
"Quando visamos resultados tão magníficos, alguma audácia pode ser-nos permitida; mas não devemos ser loucamente audaciosos.
"Sim, é justo, é necessário ter em vista que, embora haja homens prontos a dar a sua riqueza e as suas vidas pela libertação da igreja (esta palavra, a igreja, tem uma influência mágica sobre as suas mentes!), contudo, nada seria mais perigoso do que explicar demasiado claramente o que a igreja é e o que ela desejaria. A sua visão débil não suportaria o brilho total da poderosa realidade que está oculta sob tantas dobras do véu religioso. No momento em que descobrissem o elemento político, os seus braços cairiam impotentes, o seu zelo ardente desapareceria, e estes combatentes atléticos, tão prontos a servir-nos, virariam subitamente as suas armas contra nós. Não é raro testemunhar estas mudanças súbitas, quando pessoas cheias de zelo, mas ao mesmo tempo simples e de vistas limitadas, estiveram em comunicação com um dos nossos irmãos que possa ter excedido os limites da prudência. Que todos nós, então, sondemos cuidadosamente os caracteres daqueles com quem temos de lidar, e que toda tentativa que fizermos se baseie num exame rigoroso.
"A experiência de alguns anos também me ensinou que palavras sonoras vão muito mais longe com mentes vulgares do que os argumentos mais bem fundamentados. Com pessoas bem informadas e cultas, podemos aventurar-nos em abstrações de caráter sedutor, mas poupar-nos-á trabalho lembrar que o povo comum pode ser influenciado por conversas que pareceriam desprezíveis a homens de mentes cultivadas.
"E agora, aprendam qual é o batismo de fogo que, em cada confissão, eu costumava derramar sobre as cabeças dos meus penitentes na Irlanda.
"Povo pobre!' eu lhes dizia, 'como eles vos degradaram! Eles vos estimam menos do que brutos. Olhai para estes grandes proprietários! Eles se regalam em riqueza, devoram a terra, riem de vós e, em troca da riqueza que tiram de vós, vos sobrecarregam de desprezo. E, no entanto, se soubésseis como contar a vossa força, sois mais fortes do que eles. Medí-vos com eles, homem a homem, e logo vereis o que há neles. É apenas a vossa própria estupidez que os torna tão poderosos.'
"Tal era, mais ou menos, a substância de todos os meus discursos para eles. E quando a sua confissão terminava, eu acrescentava: 'Ide em paz e não vos desanimeis; sois pombas brancas em comparação com aqueles corvos pretos e imundos. Tirai-os das suas habitações luxuosas; despojai-os das suas roupas finas, e vereis que a sua carne nem sequer é tão boa quanto a vossa. Eles vos fazem uma ofensa grave de duas maneiras – mancham a vossa fé e degradam as vossas pessoas. Se falais de direitos religiosos, os direitos dos quais todos os outros dependem, os vossos vos chegam diretamente de Jesus Cristo; pois dezoito séculos – e que séculos! – estão aí para testemunhar por vós. Mas eles! – quem é o pai deles? Um Lutero, ou Calvino, ou um brutal Henrique VIII. Eles contam, no máximo, três séculos; e estes eles desonraram por incontáveis crimes e pelos mais negros dos vícios! Só os Católicos são dignos de ser livres; enquanto os heréticos, cada um deles escravo de Satanás, não têm direitos de espécie alguma. Ímpios como são! Não estigmatizaram como falsa a religião dos seus pais? Uma religião que contava mais de quinze séculos. Em outras palavras, declaram todos os seus antepassados condenados, e acreditam que só eles estão salvos.'
"Permitam-me, reverendos padres, dar-vos um resumo das máximas que estabeleci para a minha própria orientação. Digo aos Católicos que vivem em países mistos:—
"'Nada pode ser mais monstruoso do que a injustiça que suportais; não sois heréticos, logo, permitis que não só as vossas pessoas, mas a vossa fé, sejam escravizadas, ao estarem sujeitos ao domínio de príncipes heréticos. Eles não só não têm o direito de vos compelir a esta sujeição, como Deus quer que empregueis todos os vossos esforços para sacudir o jugo.
"'Desprezar o vigário de Jesus Cristo é desprezar o vosso Salvador; pois se Jesus Cristo disse dos apóstolos: ‘Aquele que os despreza, despreza-me’, quão maior é o crime de desprezar aquele por quem Cristo orou especialmente, e a quem Ele próprio comissionou para confirmar os outros apóstolos na fé.
"'Não se segue destas declarações que, enquanto toda a raça humana está envolvida em erro, só o Papa é divinamente preservado de todo erro?
"'É apenas por orgulho que a heresia persiste em manter o seu lugar além dos limites da igreja. Não lhe faltam provas para a convencer dos seus erros; há provas mais do que suficientes para a esmagar com vergonha e desgraça.
"'Sabeis por que razão o Catolicismo ainda não conseguiu tornar o mundo inteiro feliz? É porque as paixões humanas fazem guerra perpétua contra ele; é porque os próprios reis católicos amam a sua coroa mais do que a sua fé. Seja como for, é o Papa, e só o Papa, que, pela vontade de Deus, possui o segredo de pacificar e unir todos os homens.'
"No que diz respeito à Bíblia, estou totalmente preparado para sustentar a feliz ideia de a representar apenas como um esboço primitivo e inacabado; de onde podemos justamente dizer que seria loucura esperar que a igreja fosse agora o que era originalmente; seria o mesmo que esperar que um homem retrocedesse ao seu berço.
"Façamos também o nosso máximo para enfraquecer e destruir nas mentes do povo certas impressões perigosas que são suscetíveis de serem feitas pelas virtudes e pela integridade dos heréticos. Digamos-lhes:—
"'Por mais honestos que vos pareçam, é quase impossível que as suas intenções sejam puras; e quanto aos seus pecados, eles permanecem com eles e acumulam-se terrivelmente sobre as suas cabeças, privados como estão daqueles meios de salvação que só a igreja providencia, e pelos quais só nós podemos ser tornados puros à vista de Deus; enquanto os Católicos, se infelizmente continuarem de falha em falha, e até se tornarem negros como carvão, serão certamente salvos. Cercados na sua hora da morte por todo auxílio e encorajamento, eles reviverão como uma chama, desde que não persistam até ao fim (o que é quase impossível) em rejeitar a confissão, as indulgências e as missas, para a redenção das suas almas; estes são meios de graça de que a igreja, a nossa boa mãe, é liberal para com aqueles que, pela sua devoção e zelo, são dignos de ser contados entre os seus filhos.'
"Percebereis facilmente que, se é bom exaltar, na estima dos Católicos, estas preciosas prerrogativas, é bom também tirar delas toda a vantagem possível para a nossa causa. Assim, digamos-lhes que, se desejam ser absolvidos pela igreja no leito de morte, devem amá-la e fazer muito por ela, para que ela possa fazer o mesmo por eles. Digam-lhes que a única maneira de a agradar é odiar quem ela odeia, estar unido com ela, combater por ela e erguê-la do estado de humilhação em que os últimos três séculos a mantiveram.
"Padres Iniciados! Grandes são as esperanças que deposito nas energias da nossa Irlanda. Considero-a como a nossa campeã. Tenhamos apenas o cuidado de a ungir eficazmente com o nosso óleo, para que, ao lutar com a sua tirana, ela possa sempre escapar do seu aperto. Em quantas dobras ela não poderá enredar a loba Britânica, se apenas ouvir os nossos conselhos! Erguendo-se lentamente do túmulo, sob o sopro de ressurreição que já está sobre ela, estrangulará no seu forte aperto o vampiro misterioso que sugou o seu sangue por muitos anos. O que não podemos fazer com um povo idiota, rude e faminto? (d'un popolo idiota, rozzo e affamato). Provará ser o nosso Sansão; e com o seu maxilar irresistível reduzirá a pó miríades de Filisteus.
"Durante a minha residência na Irlanda, comecei um panfleto que estou agora a terminar, para o apresentar ao nosso vaso escolhido, [10] para que lhe sirva diariamente de breviário. Todas as dificuldades são ali aplainadas, todas as vantagens calculadas – o espírito da nação, as suas necessidades, os seus recursos, a sua força, o que a excita e o que a encoraja, estão ali estabelecidos e plenamente fundamentados."
O padre parecia ter terminado, pois fez uma pausa aqui; mas subitamente, com a voz totalmente mudada, de uma maneira invulgarmente deliberada, e com uma ênfase notável em cada palavra, fez esta singular profissão de fé:—
"Acredito que Deus olha com escárnio para a humanidade, depois de a ter abandonado a todas as absurdidades do seu próprio capricho.
"Acredito que a moralidade, os princípios de conduta, todas as nossas teorias e todos os nossos sistemas, são meramente efeitos de tempos e lugares, que sozinhos fazem os homens serem o que são.
"Que uma nação, ou uma casta, sinta a atração que reside na perspectiva de uma grande e magnífica vantagem, que não lhe faltem os meios para assegurar a posse desta vantagem, e imediatamente, aos olhos desta nação ou casta, a justiça deixa de usar a mesma aparência, ou de prescrever o mesmo código que antes, em qualquer fase da sua existência. Se a justiça fosse realmente tão imutável como os livros nos asseguram, ela faria as suas exigências em vão – não seria ouvida; todas as suas repreensões seriam desprezadas; cada partido, cada corpo, cada seita ater-se-ia à justiça da sua própria invenção (alla giustizia di sua invenzione). Tal sempre foi, e tal sempre será o homem. O fraco nunca deixará de ser escravo do forte. Tentemos, portanto, pertencer à última classe; fortes em inteligência e em ação, fortes em riqueza, fortes em partidários, fortes, numa palavra, em recursos de todos os tipos, pois é só assim que podemos esperar esmagar os nossos inimigos sob os nossos pés."
Os padres pareceram concordar com os princípios professados pelo irlandês, pois nenhuma objeção foi ouvida.
XIII.
Outro padre falou em seguida e, embora o seu italiano fosse correto e o seu sotaque impecável, é muito provável que fosse um Alemão. É sabido que nos seus colégios os Jesuítas exercitam os seus alunos a fazer discursos em diferentes línguas, de modo que frequentemente adquirem grande perfeição na fala e no sotaque.
"Precisamos de ter certos centros a partir dos quais os nossos devotados servos possam divergir, tanto na Inglaterra como na Alemanha. A Baviera e a Irlanda apresentam-se naturalmente como os nossos dois baluartes. Quem nos pode privar deles?
"No que respeita à Alemanha, devemos mentalizar-nos de a considerar como possuindo um caráter inteiramente peculiar, visto que a Reforma a imbuiu de preconceitos que parecem quase intransponíveis. Não podemos ter esperança de que uma igreja Romana pura consiga abrir caminho ali em breve. Quem sabe por quanto tempo teremos de nos contentar em permitir que muitas partes da nossa Igreja Católica naquele país permaneçam quase Protestantes? Que assim seja; mas, pelo menos, que permaneçam ligadas por algum laço forte a Roma. Não percamos o que é bom por nos esforçarmos com demasiada impaciência por aquilo que é melhor. Estude-se antes quais são os sinais atuais dos tempos. Dirijamo-nos a certas partes do país e esforcemo-nos por introduzir ali as nossas práticas religiosas, começando pelas menos ostensivas, se virmos uma abertura para elas; mas, ao mesmo tempo, tendo o cuidado de não as expor a um número demasiado grande de adversários.
"Há um argumento que achei singularmente eficaz para obter a anuência de homens no poder. Tenho observado que o Protestantismo é uma reação da matéria contra o espírito; pois, com que é que o Protestantismo começou? Com a eliminação da tortura voluntária do catálogo das virtudes mais heroicas e exaltadas; enquanto, sem prever as consequências terríveis, dignificou o prazer dos deleites mais sedutores desta vida, e com isso produziu um dano sem limites.
"Pela nossa parte (continuei assim), o que mostramos é Cristo nu e crucificado; declaramos que a fome, a sede, as privações, os açoites, o desprezo, o abandono, até mesmo o rebaixamento, são tantos méritos pelos quais o Céu é pródigo em recompensas. 'Felizes aqueles que sofrem!' 'Felizes aqueles que estão sem consolo cá em baixo!', repetimos continuamente aos pobres e aos desgraçados; e se, na confissão, eles se queixam da amargura do seu destino, pintamos-lhes o próprio Filho de Deus sem um lugar onde repousar a cabeça, carregando a sua cruz, coroado de espinhos, sangrando pelos açoites, levado à morte como um cordeiro para o matadouro, e ainda proibindo de odiar e de amaldiçoar.
"Tal é o modelo que colocamos perante o povo comum nos nossos sermões e no confessionário, e é assim que os transformamos de leões em fúria em ovelhas resignadas e tímidas. Além de tudo isso, nós os deslumbramos pela quantidade prodigiosa de Vidas de Santos que pomos diante dos seus olhos – santos que foram canonizados, que estão agora resplandecentes de glória celestial, que jejuaram e se mortificaram, voluntariamente submetendo-se aos mais severos sofrimentos, a fim de ganhar um lugar glorioso no céu.
"Ponderai bem tudo isso, e estareis preparados para reconhecer que só a Igreja Romana é capaz de vos garantir contra os princípios de revolta, que por meio de ensinamentos como estes pode sufocá-los e destruí-los nos seus próprios germes."
O orador fez aqui uma ligeira pausa; e depois, como se uma ideia lhe tivesse ocorrido de repente, retomou num tom mais calmo.
"E se organizássemos um comité especial para vigiar as tendências da história e da literatura da época? Poder-se-ia dar encorajamento, com destreza, a qualquer escritor que quisesse colocar algumas flores no busto de um ou outro dos nossos papas, ou que se dispusesse a defender certas partes das nossas instituições ou as nossas práticas religiosas caluniadas. Com o tempo, veríamos um grande aumento no número destas apologias; e não há dúvida de que se alguns escritores de renome abrissem o caminho nesta direção, outros seguiriam logo o seu rasto, sem exigir de nós nem pagamento nem estímulo.
"Se pudéssemos operar uma mudança na opinião pública em relação à história da igreja, aos seus dogmas e cerimônias, de modo a levar o povo a encarar estas coisas com menos repugnância, quantos obstáculos seriam assim removidos! Permitimos que ricos benefícios sejam devorados por uma hoste de sibaritas que nos fazem mais mal do que bem – por que lamentaríamos algumas somas despendidas para um propósito tão eminentemente útil?
"Quantas ruínas poderiam ser reparadas por meio da multidão de jovens entusiastas poéticos, ou daqueles literatos cuja presunção ou comichão por novidade os mantém perpetuamente a escrever."
XIV.
Nas curtas pausas que ocorriam entre os discursos, eu fazia rapidamente algumas marcas pelas quais podia distinguir os oradores. Neste ponto, porém, ao virar uma página, borrei uma linha – de modo que nada tenho a dizer sobre o jesuíta que expôs as doutrinas extraordinárias que se seguem.
"Enquanto o coração humano permanecer o que é, acreditem, caros colegas, os elementos do sistema católico jamais se esgotarão, tão abundantemente frutíferos eles são! Apresentarei uma prova convincente do que digo, embora estejam cientes de que, no que respeita ao belo sexo, sois Doutores em Israel.
"Um amigo meu teve a felicidade de ver, aos seus pés, uma senhora, ainda jovem e bonita. O marido, um homem idoso e muito rico, idolatrava-a e fazia do seu único estudo agradá-la. Ela, por outro lado, era um exemplar perfeito daquela classe de mulheres que amam a religião – mas não amam menos o prazer. Vagando de confessor em confessor, ela sempre tivera o infortúnio de cair nas mãos de jansenistas condenados. Todos estes lhe tinham ordenado que se separasse do seu querido pintor! O nosso irmão, percebendo que ela era devota ao entusiasmo, soube imediatamente como tratar o seu caso. A senhora expressou-se quase nos seguintes termos: — 'Eu não podia suportar permanecer anos inteiros sem receber os sacramentos; o meu coração continuava a dizer-me que eu era uma pagã e uma filha da perdição. Foi culpa minha se me deram em casamento numa idade em que era incapaz de refletir? Aquele que amo é o mais irrepreensível dos homens; e, para mim, este apego é o meu único defeito. De que me servem os bens da vida se tenho de ser infeliz enquanto viver? Pelo amor da Santíssima Virgem, reverendo padre! Não sejais tão duro quanto os meus antigos confessores foram! Os quadros dele [11] são quase todos sobre temas religiosos; não há uma grande cerimônia na igreja em que ele não esteja presente, assim como eu – demasiado felizes, ambos, por tomarmos parte nestas solenidades arrebatadoras! Ai! Vós não sabeis, talvez, reverendo padre, o que é sentir um amor assim!'
"O nosso amigo, depois de ter dado livre curso a esta torrente de eloquência amorosa, suavizou gradualmente a sua penitente, assegurando-lhe que a religião não é uma tirana sobre as afeições – que não exige sacrifícios senão aqueles que são razoáveis e possíveis. 'Se sois de opinião', disse ele, 'que a vossa saúde está a sofrer o efeito da melancolia, posso indicar-vos um caminho pelo qual podeis aliviar a vossa consciência. Todos aqueles padres que assim vos afligiram não compreendem nada de matérias de fé; interpretam a Escritura pela letra, ao passo que a letra mata, como diz o apóstolo; mas a interpretação, segundo o espírito, dá vida. Ouví uma parábola, que vos suavizará todas as dificuldades: —
"'Dois pais tinham cada um um filho. Estes jovens tinham paixão pela caça. Um dos pais era severo, o outro brando e indulgente. O primeiro proibiu terminantemente o filho de desfrutar da sua busca favorita; o último, chamando o filho a si, dirigiu-se-lhe assim: — 'Vejo, meu filho, que te custaria muito renunciar ao teu desporto favorito; entretanto, só há uma condição sob a qual te posso permitir que o faças; a saber, que eu possa ter a satisfação de ver que o teu afeto e zelo por mim aumentam em proporção à minha indulgência.' O que se seguiu? O jovem a quem a caça tinha sido proibida seguiu-a em segredo, e ao mesmo tempo afastou-se cada vez mais do seu pai, até que toda a relação foi interrompida entre eles; enquanto o outro redobrou as suas atenções para com o pai, e mostrou-lhe todas as marcas de dever e afeto.'
"Certamente admirareis tanto a parábola como a tática do nosso amigo. Ele concluiu assim o seu discurso à sua bela penitente: — 'Cabe-vos a vós, minha senhora, tomar o último destes dois jovens como vosso modelo. Sede sempre das primeiras nas vossas devoções; que a casa do Senhor testemunhe a vossa presença em todas as ocasiões santas; e uma vez que sois rica, que seja o vosso prazer adorná-la ricamente, como a vossa própria morada. A Madalena, a quem o Senhor perdoou muito porque muito amou, provou o seu amor pelas suas ações; ela quebrou o mais precioso dos seus vasos para o ungir com perfumes. Do mesmo modo, tomai tanto interesse pelo lugar santo onde Jesus Cristo habita corporalmente todos os dias, quanto tomais em adornar a vossa própria pessoa.'
"O deleite com que a senhora ouviu estas palavras foi ilimitado. 'Oh, sim, na verdade, na verdade', exclamou ela, 'tudo o que dizeis é mais claro do que a luz do dia. Juro que nunca mais terei outro confessor senão vós.'
"É quase inacreditável o que esta senhora depois prodigalizou à igreja em ornamentos, incensórios, coroas e vestes para a Virgem. Colocou-se à frente de diferentes confrarias; e várias outras senhoras, em circunstâncias semelhantes às dela, foram facilmente induzidas a seguir o seu exemplo.
"Que isso nos sirva de lição. O excesso de rigor seca a árvore; mas a indulgência é como a chuva que a nutre e a faz produzir frutos a cem por um (e gli fa produrre de’ frutti al centuplo)."
Aqui seguiu-se uma interrupção barulhenta de alguns minutos, e era evidente que as observações feitas eram bastante picantes. Fiquei espantado, e ainda estou espantado, que homens que afetam tanta gravidade em público possam permitir-se fazer troça da consciência desta forma. O presidente, no entanto, pôs fim rapidamente a estas manifestações de alegria, observando que o que acabara de ouvir o levava a comunicar uma ideia perfeitamente nova. Esta ideia, que estava prestes a submeter-lhes, tinha-lhe ocorrido frequentemente ao contemplar o assunto do celibato e as calamidades que a sua renúncia traria para a igreja.
Tenho a notar que o Padre Fortis, se era de fato ele quem presidia a esta conferência, e o Padre Roothaan, o seu sucessor efetivo no generalato da Companhia, pareciam ter um interesse mais vivo do que os restantes no destino da teocracia Católica; e estavam perpetuamente a arquitetar novos esquemas para garantir a sua segurança.
XV.
"Uma medida, que, de fato, eu já sugeri e que deve ser posta em discussão, é em si mesma capaz de produzir resultados admiráveis: é uma que teria por objeto aliviar os padres do fardo demasiado pesado de um verdadeiro celibato (d'un vero celibato). Bem sabeis que se alguma vez se abrir uma brecha por este lado, se alguma vez uma porção considerável do clero (impulsionada pelo poder secular que possa estar interessado em tal mudança) exigir o direito de casar, todo o edifício hierárquico desmoronaria pedra por pedra, até que nada restasse da igreja. Se esta questão chegasse a ser geralmente considerada, a disputa ficaria acalorada, e todos perguntariam: 'Quando começou o celibato eclesiástico?'. A sua história seria investigada; e o mármore que encobriu os seus mistérios por séculos seria totalmente removido. Escrúpulos, remorsos e reações surgiriam e se espalhariam como uma epidemia. Roma resistiria com certeza, pois os alicerces do Catolicismo estariam em perigo; mas uma irritação crescente encontraria um objeto para se prender em toda a parte – a investigação prosseguiria para outros assuntos além do celibato – e, com toda a probabilidade, formar-se-ia uma liga formidável que dirigiria esta pergunta ao Papa: 'Onde estão os vossos títulos para comandar a igreja e o clero?' Assim, haveria revolta sobre revolta, e a Santa Sé, sitiada por todos os lados, teria de sustentar a luta mais dolorosa que alguma vez travou.
"É, portanto, altamente conveniente que liguemos ao celibato do clero o maior número possível de interesses, como raios de uma roda em torno do seu eixo. Pois, repito-vos, irmãos, se esta instituição vier a ser derrubada, onde está o dogma que a sobreviverá por muito tempo? Assim como, num castelo de cartas, à queda de uma única carta se segue a de toda a construção, também, se o celibato cair por terra, cairão a confissão, a missa e o purgatório; toda a pompa desaparecerá do nosso culto – toda a glória se apartará do nosso sacerdócio; e as minas de onde tiramos tais ricos suprimentos estarão, a partir de então, fechadas para nós. Mantende o celibato, e o nosso curso será de um triunfo ininterrupto; permiti que caia, e que destino será o nosso! Seremos, por assim dizer, transfixados por feridas, vergonhosamente mutilados, todos os nossos projetos desfeitos nas nossas mãos! Quod absit! Devemos, no entanto, esperar tudo isso, se, por alguma medida poderosa, não prevenirmos tão grande calamidade. [12]
"Uma vez que estamos ocupados em forjar tantas revelações e milagres, não seria possível (grandes coisas procedem por vezes de pequenos inícios) compor uma pequena obra que respirasse o mais puro perfume de santidade, e que fosse circulada no início com cautela e secretamente? Poderia ser concebida em termos como estes:—
"'A Igreja está a entrar em tempos perigosos. Da sua queda, ou da sua consolidação, depende o fim ou a continuação do mundo. Uma era de glória ainda inédita se abrirá para o clero, se este der ouvidos ao que Deus lhe revela por São' – (esta revelação deve ser feita em nome de algum santo de data recente). 'A força que o clero daí derivará é imensa. Ensinar-lhes-á segredos sobrenaturais, para derrubar a heresia e edificar o sacerdócio degradado sobre as ruínas do profano, concedendo-lhe, por fim, o seu título imprescritível de real. É o próprio Jesus Cristo quem estabelece este novo pacto com os pastores do seu rebanho, a fim de os preparar, como soldados valentes e invencíveis, para a luta que se aproxima. Em tempos anteriores, o Todo-Poderoso santificou a poligamia simultânea e visível. Isto foi para povoar a Terra; era conveniente que todas as outras considerações cedessem a esta. Em tempos posteriores, Deus condescendeu em permitir que este estado de coisas continuasse, mesmo quando a Terra estava coberta de multidões de pessoas. Agora, que o tempo parece ter chegado para tornar a igreja a soberana universal e para lhe dar um triunfo glorioso sobre todos os seus inimigos – agora, o Todo-Poderoso, que faz o que quer, no céu e na terra, sem controle ou questionamento de qualquer poder humano ou divino, abole o verdadeiro celibato para o clero, para todos os monges e todas as freiras, de qualquer denominação, e por esta razão, que ele não pode deixar de ser prejudicial para aqueles que, chamados a destruir os exércitos de Satanás, exigem para o sucesso desta obra estarem tão estreita e intimamente unidos como se fossem uma só alma e um só corpo. Pelo que Deus estabelece, doravante, em vez da antiga continência, uma poligamia sucessiva e invisível (una poligamia successiva e invisibile), e requer apenas um celibato interior e espiritual. Mas uma concessão tão preciosa só é feita em favor daqueles que resolutamente empreendem a tarefa de trabalhar para o restabelecimento da igreja, e que não poupam sacrifícios para que ela seja adornada e glorificada como convém à esposa de Deus, e para que ela finalmente se posicione acima de todos os principados, dignidades e poderes, de modo que todas as coisas sejam postas debaixo dos seus pés: vendo que não há nada, pertencente a Jesus Cristo, que não seja igualmente devido à igreja.
"'Segue-se, portanto, que o direito de ter uma irmã [13] à maneira de São Paulo (pois o título de esposa pertence apenas àqueles que são casados externa e indissoluvelmente) – segue-se, digo eu, que este direito só pode ser concedido àqueles trabalhadores cujo zelo na causa santa é constante e heroico. Seria, de fato, uma injustiça monstruosa, se estes homens não pudessem desfrutar de um privilégio tão caro com uma consciência imperturbável. Mas é, ao mesmo tempo, altamente importante que todos aqueles contra quem a igreja tem qualquer motivo de queixa sejam impressionados com a convicção de que não poderiam usurpar este privilégio sem cometer pecado mortal.
"'O gole de água, que refresca e fortalece, dado àqueles que estão ativamente empenhados na colheita do Senhor, e estão a desfalecer sob o calor excessivo do sol, foi uma profecia do contrato misterioso que Deus reservou para os nossos tempos.'
"Estive absorvido neste novo e importante tema por alguns meses; estou, portanto, preparado para entrar no seu desenvolvimento com toda a seriedade que ele merece.
"Abrir uma perspectiva como essa à hierarquia da igreja fortificaria, como por uma parede tripla de bronze, um ponto do Catolicismo tão realmente fraco e tão frequentemente atacado. Não tenho a menor dúvida de que a nossa ideia ganhará terreno se conseguirmos formar uma seita, inicialmente muito secreta e seleta, que insinue habilmente esta boa notícia em conventos masculinos e femininos, e nas cabeças de certos eclesiásticos. Haverá alguma resistência, é claro, mas, finalmente, todos concordarão na propriedade do que é ao mesmo tempo tão agradável e tão vantajoso de muitas maneiras. Sabeis bem, além disso, que nada temos a inventar nesta matéria, uma vez que numerosas ligações da natureza que defenderíamos já existem. Mas, tal como existem atualmente, não trazem lucro para a igreja; pelo contrário, são prejudiciais, na medida em que perturbam muitas consciências; ao passo que a autorização que eu lhes daria afastaria todo o remorso e provocaria um aumento de zelo e diligência. Em virtude deste plano, homens e mulheres cooperariam para um único fim, cada um no seu posto, de acordo com as regras estabelecidas; enquanto, graças a esta metamorfose, o único escrúpulo que os poderia perturbar seria o medo de não se tornarem dignos de tal privilégio por uma devoção suficientemente integral à igreja.
"Se considerarem agora os resultados certos deste dogma secreto, descobrireis que são de imensa importância. Mas a prudência mais consumada será exigida na orientação e propagação do plano em questão. Os hospitais à la Saint-Roch [14] devem ser multiplicados, e monges e freiras de todos os tipos devem aprender a combinar três qualidades indispensáveis – primeiro, austeridade exterior; segundo, moderação nos seus prazeres e a mais íntima concórdia mútua; terceiro, um zelo infatigável pela conquista de almas – um zelo que nunca diz: 'É suficiente.'
"Conheceis o provérbio, Varietas delectat [A variedade deleita]. Isso apresenta mais uma garantia da imensa fecundidade e da solidez de tal teoria; especialmente se, tendo vencido toda a oposição, ela um dia obtiver um altar no santuário hierárquico. Que uma vez o obtenha, e nenhum poder na Terra poderá jamais removê-la daquele assento." [15]
XVI.
O jesuíta, cujas revelações sobre o mais delicado dos assuntos o leitor está prestes a examinar, e que, mais adiante, dará outras não menos curiosas, referentes às dignidades de Roma, tinha, com toda a probabilidade, residido longamente naquela cidade, com a qual parece estar intimamente familiarizado.
"Tudo o que acabei de ouvir é perfeitamente verdadeiro. E, para vos convencerdes de que, mesmo a este respeito, temos materiais abundantes; que, de fato, nada temos a fazer senão legalizar, ou, mais propriamente, consagrar o que já existe praticamente em toda a parte, peço-vos que fixem a vossa atenção no que tenho a sugerir.
"Sem dúvida estais todos mais ou menos a par das coisas de que vos vou falar, mas talvez alguns de vós ignorem certos pormenores.
"Refiro-me às Irmãs de Caridade; mulheres encantadoras, que nos devem o não esquecer que "a caridade bem ordenada começa pela casa". Visitei e fui íntimo de muitas delas em diferentes países. São muito acessíveis e muito confidentes; quase todas as que conheci me falaram das suas mágoas secretas. Ouvi as suas queixas contra padres e monges – como se esperassem que os nossos corações fossem tão ternos e tão ardentes como os delas! É minha opinião que este é o tipo de freiras adaptado aos nossos tempos. Desejo, de fato, que fosse possível aliviar o jugo das restantes (allegerire il giogo dell'altre), que são condenadas desnecessária e inutilmente a ver toda a vida apenas um pequeno pedaço de céu e um pequeno pedaço de terra; e o que é ainda pior, a permanecer sempre encerradas juntas, vendo as mesmas faces eternas, sem qualquer possibilidade de se mudarem para outro convento, mesmo quando tal mudança pareça razoável. Eu aboliria o claustro por completo, para que houvesse menos dificuldade, menos cerimônia em abordá-las. Que fonte de alegria para os pobres corações dessas donzelas! Que oportunidade para variarem, se não os seus prazeres, pelo menos os seus desgostos! [16] As Irmãs de Caridade têm esta vantagem.
"Sabeis que bons professores, hábeis neste tipo de caça, capturam essas pobres criaturinhas quando estão no auge do terror e da angústia. É quando se veem traídas e abandonadas, quando o chão parece faltar debaixo dos seus pés, e a vergonha e o remorso as oprimem, que elas aceitam avidamente a proposta de se tornarem Irmãs de Caridade. Jovens, na sua maioria, e tendo-se iludido por muito tempo com sonhos de amor abençoado, caem finalmente no desespero. Mas os seus olhos abrem-se rapidamente para a natureza do novo estado em que entraram; assediadas por padres de todas as idades, logo esquecem as suas belas resoluções. Estão ainda apenas na própria entrada da sua carreira espiritual, e a sua fortaleza já é abalada pelas tentações da carne. Como encontram uma espécie de prazer em se debruçar sobre os infortúnios que as decidiram a tornar-se freiras, mal acabam de despejar o seu conto romântico nos ouvidos curiosos de padres ou monges, já lançaram as bases de um novo. Desta vez, no entanto, sentem-se certas, considerando o caráter dos seus novos amigos, de que a teia que estão a tecer será de tecido dourado. [17] Se o clero fosse discreto, não faria de um prazer, que deveriam tomar levianamente como uma indulgência passageira, um objetivo capital. Juntando sempre o útil ao doce, deveriam, contudo, aproveitar estes momentos críticos para incitar a mulher a atos dos quais a igreja possa derivar vantagem indiretamente; pois as mulheres podem superar-nos em muito quando o amor e a religião aquecem as suas imaginações. É nosso dever saber como alimentar esta dupla chama. O nosso melhor plano seria incutir nas nossas irmãs que, onde há falta de constância da nossa parte, é um castigo pela sua falta de zelo. Só as montanhas são imutáveis. Devemos, além disso, nunca formar uma nova ligação sem uma condição expressa, por parte da recém-eleita, de que ela realizará prodígios. Mas acontece, infelizmente, demasiadas vezes, que os homens a quem elas calham não mostram consideração por estes vasos frágeis, e consequências inesperadas expõem-nas a inconvenientes da mesma natureza que aqueles que as levaram a refugiar-se sob o hábito religioso. Mas precauções sensatas podem manter todo o escândalo à distância; uma soma de dinheiro, um abandono temporário do traje da sua ordem e uma pronta obediência em mudar-se para outro lugar, impedirão sempre que assuntos desse tipo transpareçam. Na sua nova residência, elas terão a certeza de encontrar alguma nova irmã que as ajudará e consolará; pois onde há uma que não tenha sido, ou que não possa ser exposta às mesmas dificuldades?"
Aqui ocorreu uma interrupção. Ouvi a voz do presidente, e depois uma confusão de vozes. Parecia haver uma espécie de interpelação à questão. O orador continuou nestes termos:—
"O ponto essencial para o qual eu gostaria de chamar a vossa atenção é este. Devemos trabalhar para multiplicar em todos os lugares confessores iniciados, que sejam capazes não só de aumentar o número destas irmãs por persuasão e argumentação, mas que possam aproveitar habilmente a sua posição crítica, em casos como aqueles que tive de vos mencionar primeiro. De fato, quando elas regressam aos seus deveres religiosos, após as dores da maternidade, desgostosas, como dizem, com a ingratidão dos homens, é então que precisamos de padres idosos e experientes, que, ao provar-lhes a vaidade de todas as coisas humanas, possam mudar totalmente as suas ideias e incitá-las, com a ajuda de penitência severa e trabalhos heroicos, a adquirir méritos inauditos. Neste período, também, a leitura da vida de alguma santa feminina, que tenha sido um modelo de entusiasmo santo, que tenha estado ansiosa por incorrer em sofrimento, perda e ruína, a fim de servir os seus semelhantes, terá um efeito maravilhoso.
"Existem na nossa estranhamente complicada existência momentos que passam inutilmente, por falta de serem aproveitados oportunamente. Lembro-me com que alegria e ardor me dediquei, ainda noviço, às funções mais repugnantes dos hospitais. Confesso que agora seria totalmente incapaz destes atos de abnegação; mas não é menos verdade que, tal como eu era então, me tornei útil à Companhia. Contribuí com a minha parte para engrossar a camada de bem que nunca pode ser demasiado profunda para cobrir [18] – aquilo que um mundo cego – incapaz de apreciar a grandeza da nossa obra – sempre estigmatiza como – mau!
"Eu observei essas nossas irmãs no seu campo de ação, dedicando-se com cuidado assíduo ao alívio dos galés mais infames, e isto em lugares e cenas tão repugnantes que chegam a espantar os heréticos mais orgulhosos e os infiéis mais frios. E eu, que conhecia tão profundamente e tão bem as molas subtis que movem estas delicadas criaturas, senti algo a mexer-se no fundo do meu coração à vista da sua constância e da sua coragem.
"O segredo de todas estas coisas é este:
"A fim de as induzir a prolongar tais sacrifícios, a persuadir outras a imitá-las e a determiná-las se vacilarem, devemos aproveitar a oportunidade, quando não houver ouvidos estranhos por perto, e particularmente na confissão, para insistir em ideias como estas: — 'É verdade que tendes uma luta difícil para vencer tudo o que é mais repugnante à vossa natureza; mas os anjos, que vos observam, invejam as vossas futuras coroas no céu. Perseverai, pois mesmo que a fraqueza, ou até mesmo o crime, tenha manchado as vossas consciências, a partir do dia em que entrastes aqui, a vossa caridade, como o fogo, vos purificou totalmente. Doravante, sois brancas como a neve; Jesus Cristo olha para vós como suas esposas bem-amadas; Ele vos chama as suas pombas, as suas aperfeiçoadas; e o óleo que diariamente ardeis nas vossas lâmpadas é tão abundante que nunca vos pode faltar. Se vos julgarmos pelo vosso exterior, o que há de tão fraco quanto os vossos corpos! Se olharmos para dentro, o que há para comparar com a força do vosso espírito! Se não fosse por vossa causa, raios vingadores cairiam sobre a Terra! Mas Deus tem prazer em vós; sois os objetos mais queridos do seu amor; Ele olha para vós e se desarma. Oh! Cuidai de não encurtar um tempo tão precioso; permaneçam no vosso posto de honra, onde os heréticos vos olham com estupefação, confessando que nunca viram tal devoção na sua ímpia seita. Segui, então, a vossa carreira heroica; pois quando tiverdes cumprido o vosso generoso martírio, encontrareis em vossa posse um tesouro de méritos, que vos elevará para sempre acima das fragilidades e das faltas que são, nesta vida, inevitáveis.'
"É fácil imaginar que poder esta espécie de eloquência nos dá sobre a melhor parte daquele sexo que não é menos complexo no caráter, nem menos enigmático do que nós próprios, mas geralmente mais credível. Quando provaram o néctar destes elogios lisonjeiros, algumas das mais ardentes e impressionáveis entre estas mulheres podem ser levadas a mergulhar na intoxicação do misticismo e, por um estranho milagre, a transformar a vaga mobilidade das suas mentes em algo fixo e constante; podemos convertê-las em seres destinados a permanecer totalmente inexplicáveis para aqueles que ignoram os nossos segredos; seres que são, de fato, medalhas de honra que o Catolicismo pode colocar, com orgulho e exultação, perante os olhos dos seus inimigos silenciados e confusos.
"Se podemos extrair fogo de dois pedaços de madeira, esfregados um no outro, o que não podemos obter destas mulheres, reunidas e colocadas inteiramente e exclusivamente nas nossas mãos? Por que não nos munirmos de um grupo tão escolhido, digno de ser enviado em missões de importância, e de se tornar, pelo próprio encanto e ilusão da sua presença, um centro de atração e um meio de conquista?
"Este assunto admitiria amplificação; mas, para não perder tempo em digressão, regressarei a considerações mais imediatamente envolvidas no tema. Todos admitirão que o exemplo que devemos ao público, o nosso interesse comum, a nossa cumplicidade e o medo da observação laica, devem necessariamente forçar-nos a cobrir estas ligações com o mais impenetrável mistério. Mas de onde é que sempre houve relações deste tipo, desde que existem padres, monges e freiras? É que, no clero, se há alguns homens que fazem questão de austeridade, mesmo estes desejam munir-se nestes viveiros femininos de algum adjutorium simile sibi [auxílio semelhante a si], estando bem satisfeitos, ao mesmo tempo, em viverem afastados do mundo. Ora, é um fato que as armas que empregam para vencer estas criaturas interessantes são precisamente as mesmas que nós próprios consagraríamos para o propósito. O seu único meio, de fato, de as fazer ceder é dizer-lhes: 'Desde que a vossa queda seja compensada pela caridade, pela devoção e orações, por uma observância ativa de todos os ritos religiosos – numa palavra, desde que o bem contrabalance o mal, especialmente quando este mal, que não prejudica ninguém, é causado por uma necessidade inevitável; então, graças à quantidade de indulgências acumuladas, e à intermediação de santos, cujo favor pode ser propiciado; graças, também, a muitos outros méritos, diariamente aumentados por cuidado escrupuloso e práticas piedosas, a parte do pecado é amortecida, ou como que anulada, enquanto a parte das boas obras permanece inteira e abundante.'
"É então claro como o dia que o nosso sistema, pelo menos na sua forma rudimentar, tem estado há muito a funcionar nos hábitos e nos corações até do clero, de monges e de freiras; tudo o que temos a fazer é torná-lo completo, consagrando-o gradualmente; tal como quando um artista completa uma estátua, ela é trazida do seu ateliê profano e solenemente inaugurada."
XVII.
Aquele que designei por último como francês, falou novamente.
"As observações do nosso amigo são incontestavelmente verdadeiras; mas não devemos lisonjear-nos de que levaremos facilmente o nosso clero míope a aceitar ideias tão ousadas. Conheço milhares que ficariam encantados em pôr a nossa teoria em prática no que lhes diz respeito, mas que rejeitariam o princípio como ímpio. Admito que, se pudéssemos induzi-los a entrar intrepidamente neste caminho (quanto às mulheres, são facilmente manobradas – nunca têm outra vontade senão a dos seus diretores espirituais), não podemos calcular o imenso benefício que se seguiria para a igreja. Entretanto, deixai-me avisar-vos que estaríamos totalmente perdidos se um segredo tão grave alguma vez, por acaso, transpirasse publicamente. Agiamos, então, invariavelmente, nesta matéria, com a mais consumada prudência. Se pudermos continuar a manter os nossos corpos religiosos unidos por aqueles laços fortes, cuja agradável coerência a experiência demonstrou plenamente, o que temos a temer pelo celibato? Ele não pode perecer; e enquanto se mantiver firme, que instituição ou dogma Católico pode correr perigo?
"Isso leva-me naturalmente a falar, de acordo com a indicação do programa (l'elenco), da reforma radical do episcopado, do cardinalato e do papado, como o último termo dos nossos esforços; uma reforma sem a qual será impossível manter muitas outras que deveriam estender-se ao coração de todas as comunidades e todos os conventos.
"Visto que deve haver apenas um modelo para toda a igreja, o clero superior não se deveria sentir peculiarmente obrigado a dar-nos o seu auxílio para gravá-lo em cada coração? Mas é provável que inspiremos a este corpo alguma resolução magnânima? Pode ele compreender-nos? Em verdade, em verdade, as colunas do templo Católico não são nem preciosas nem sólidas. Tocai-lhes, e percebereis a sua falta de robustez. São ocas, e ao primeiro choque – não seria necessário um muito forte – todo o edifício cederia. O que faremos, então, para escorá-las até que tenhamos gradualmente substituído por elas uma gama de suportes mais fortes? Por outras palavras, como organizaremos um plano totalmente novo para a eleição daqueles que são aptos a sustentar-nos? Como introduziremos em toda a igreja uma regra e um conjunto de máximas melhor concebidas, mais racionais; de modo que dignidades, riquezas e honras, tudo, numa palavra, o que é digno da ambição do homem, se tornem tantas recompensas por serviços eminentes prestados à nossa causa em todo o mundo? Se pudéssemos realizar uma espécie de aliança entre o talento, a ambição e os interesses mais estimulantes, por um lado, e os interesses do nosso sistema, por outro, então, de fato, o nosso progresso tornar-se-ia triunfante! Devemos, consequentemente, escolher para o nosso propósito, não homens de uma moralidade estreita e pedante, que está sempre em guerra com os nossos grandes projetos, mas sim os mais avançados dos nossos próprios membros iniciados, que tenham fornecido, pela sua admissão no nosso laboratório misterioso, alguns novos elos à cadeia das nossas concepções criativas.
"É, portanto, conveniente que um grande número do clero superior, e alguns dos cardeais, comecem a conhecer as nossas ideias, para que se possam alimentar delas. Isso seria um meio de preparar materiais para a mudança desejada. É certo que, se pudéssemos, doravante, contar com homens dignos do nome, cujo número aumentasse diariamente, seja por contato recíproco, seja pela promoção daqueles que são capazes de os compreender (pois os que se assemelham naturalmente se reúnem), já não seria difícil, com o auxílio destas cabeças hierárquicas, e a cooperação de muitos outros suficientemente iniciados, ter sucesso na importante empreitada que nos ocupa. Ao transfundir copiosamente o nosso sangue jovem e ardente nas veias do corpo sagrado, nós o limparíamos gradualmente da borra corrupta e estéril que está a provocar a sua morte."
XVIII.
O jesuíta impetuoso que se seguiu, e que supúnhamos ser romano, não nos deixa agora margem para dúvidas de que o é.
"O que ouvi é excelente, e juro que perderia o meu... [19] para ver finalmente aniquilada, na minha própria cidade, aquela raça de seres comuns e estúpidos que foram elevados tão alto pela gratidão assídua de certas matronas. Contanto que estes eleitos de Cupido e Mamon se encontrem numa condição próspera, e depois de terem vivido de intrigas, possam desfrutar como semideuses, numa atmosfera de pompa e prazer, que lhes importa se um dilúvio vier depois deles? Quem ousaria perturbar os seus sonhos voluptuosos com presságios de catástrofes avassaladoras e iminentes? São estes os homens com cuja ajuda podemos esperar purificar a hierarquia em fogo renovador? Confesso-vos que quando examino o monaquismo dos nossos dias, nas suas celas, e quando o considero tão totalmente incapaz de algo grandioso, a raiva que sinto não é tanto contra ele, mas contra aquele colégio de cardeais, do qual nada sai senão o que é totalmente indigno, tanto da púrpura que veste, como da elevada posição que ocupa. De fato, vejo entre eles, no alto e embaixo, nada mais do que uma coleção de idiotas, que ali se sentam e engordam (che imbecilli, che s’impiguiano). É verdade que as suas línguas de vez em quando amaldiçoam a época que por vezes perturba os seus sonos voluptuosos; mas quem dentre eles se dá ao trabalho de pensar por um momento, ou de consultar aqueles que pensam, sobre os meios de extinguir o incêndio que devora tudo ao redor?
"Nós sozinhos, meus irmãos, nós sozinhos suportamos o peso do calor do verão; nós sozinhos, mergulhando fundo nos anais do mundo, estudamos as molas secretas que decidiram o destino dos impérios; e a nossa esperança e coragem ganham força com este estudo.
"Permitam-me agora oferecer-vos um conselho salutar. Que a nossa individualidade se desvaneça. Sejamos, tanto quanto possível, não homens, mas ideias. São estas que, mais cedo ou mais tarde, se apossam das coroas. Que estas sejam assiduamente incutidas nos claustros, e nas mentes de alguns cardeais e bispos; pois, apesar de tudo o que disse, existem algumas honrosas exceções. Uma vez que tenhamos conquistado até mesmo alguns daqueles que são os mais hostis aos nossos pontos de vista, não tardarão a ver-se conferências como esta nos próprios palácios das mais altas dignidades, e então é que os partidários afluirão a nós, e a nossa obra prosperará verdadeiramente. Os mais indolentes e relutantes serão então forçados a seguir-nos.
"Tenho a certeza de que todos admitiremos a necessidade de envolver o povo na rede mais espessa e mais inextricável de práticas devocionais, para que se tornem dóceis na proporção da sua estupidez. Mas tudo isto, embora não desprovido de valor, ainda não é suficiente; o que é indispensável de todas as coisas é uma concorrência ativa, infatigável, perpétua, como esta que agora nos anima coletivamente; homens de intelecto vasto e ousado, empenhados em fazer avançar continuamente o progresso da nossa obra. A menos que a igreja tenha o auxílio de um vasto cérebro para elaborar para ela um esquema verdadeiramente Católico, poderá ela esperar alguma vez ver a humanidade universalmente sujeita a um único chefe?
"É dessa forma que o nome de Roma, atualmente tão leve, recuperará toda a sua preponderância.
"Quanto a pessoas de alta linhagem, eu não lhes mostraria favor, exceto em casos em que a sua posição ou influência pudessem contribuir para o avanço mais rápido das nossas conquistas.
"A partir do momento em que vi governos heréticos estenderem a mão para ajudar no restabelecimento da Santa Sé, acreditei que estava a chegar o tempo em que, finalmente, engoliriam a isca e começariam a catolicizar os seus estados; mas é demasiado evidente que fui enganado. No entanto, há alguns anos, alguns príncipes Romanos, acompanhando um príncipe da Alemanha numa visita aos nossos monumentos mais celebrados, ao ele pedir algumas explicações sobre um assunto histórico, falou-se de certas feras ferozes serem domadas pelos seus donos a tal ponto que os ditos donos não temiam colocar as suas cabeças dentro da boca dos animais. Observei a estas personagens que um pó narcótico, frequentemente empregado, provavelmente produziria estes efeitos maravilhosos. Como esta observação foi acompanhada por um sorriso um tanto subtil, o príncipe herético me compreendeu, e respondeu: 'Reverendo padre, não tem algum pó narcótico para todas aquelas feras?' – apontando para as multidões que passavam – 'pois parecem-me muito longe de serem mansas.' Encorajado por essa observação, respondi: 'A partir do momento em que as vossas populações foram libertadas dos soníferos Católicos, e vós próprios quebrastes tantos freios salutares sobre elas, a partir desse momento elas se tornaram tão turbulentas quanto loucas. É como se os narcóticos dados àqueles animais fossem descontinuados por um tempo; a sua mansidão espantosa, que atrai tais multidões de observadores curiosos, terminaria então, e eles retomariam toda a sua ferocidade habitual.' Isto levou-nos a mais discussão, e tenho razões para acreditar que o príncipe se retirou convencido da eficácia dos nossos remédios para curar esta muito inconveniente doença popular.
"Mas para que sugestões desse tipo tenham resultados mais consideráveis, exigimos um maior número de instrumentos. Regresso, então, à necessidade de ter alguns dos nossos iniciados nos claustros, e de nos livrarmos de alguns destes cardeais sem pensamento, destes papas sem capacidade, e de uma hoste de bispos sem nervo ou energia, e que ignoram totalmente o espírito da época. Pois o nosso plano não será mais do que um sonho até que possamos realmente levar a cabo estas mudanças. Antes que a hierarquia possa exercer alguma influência imponente, ela deve ter nas suas fileiras superiores homens com poder para conceber, e com energia para pôr as suas concepções em ação; homens que sejam capazes de reduzir outros homens sob o poder de uma sabedoria política vasta e insondável. Quem ousaria então olhar o nosso sistema de frente?
"Pergunto-vos – há algo que se aproxime disso nos homens cujo ofício é guiar-nos? Tolos que são! Querem que olhemos para eles como gigantes! Toda a força do homem está no seu intelecto; mas estes pilares da igreja não têm nada de forte a não ser o seu temperamento animal. Qual seria o destino destes voluptuários podres, desses ignorantes sepultados na púrpura e no tédio (di questi voluttuosi putridi, di questi ignari sepolti nella porpora e nella noia), se não fosse pela nossa energia e intrepidez inconquistáveis?
"Temos, então, uma tarefa hercúlea a cumprir: renovar uma esfera tripla, bem como o chefe que a governa; e quando uma massa considerável tiver sofrido uma transformação completa, é então que um papa que traga dentro de si a nossa ideia, já amadurecida e desenvolvida, poderá empregar os meios e recursos que terão sido acumulados pelos nossos esforços vigorosos durante um século, talvez, ou mais. Novamente, ele poderá lançar os seus anátemas, as suas interdições e os seus decretos onipotentes, para abalar tronos e humilhar para sempre o orgulho e a insolência dos monarcas."
Após estas últimas palavras, houve uma espécie de pausa; e durante esse intervalo, vários comentaram o que tinham ouvido como apresentando dificuldades intransponíveis. Cheguei mesmo a notar um tom geral de dúvida e desânimo. Alguns, no entanto, afirmaram que, com o tempo, tudo isso poderia ser efetuado. A fim de os animar após este breve colóquio, o presidente começou a explicar qual deveria ser o propósito final de toda a obra.
XIX.
"Eu não gostaria que ninguém desesperasse do grande sucesso futuro do nosso empreendimento por causa dos nossos inícios serem pequenos. O que poderia ser mais insignificante em aparência do que foi a nossa Companhia no seu começo? Contudo, apenas alguns anos se passaram e ela provou estar cheia de vigor, e já se tinha tornado rica e poderosa. E, em tempos posteriores, que trono não reconheceu a ascendência misteriosa do nosso gênio?"
Essa breve reflexão foi feita num tom familiar; foi uma resposta concisa àqueles que tinham expressado alguma dúvida quanto ao triunfo final prometido. Então, como se fosse incitado pela descrição que acabara de ser dada dos vícios da hierarquia Romana, ou, talvez, previamente preparado para esse assunto, ele retomou após uma breve pausa, numa voz alternadamente apaixonada, orgulhosa ou exaltada, mas sempre marcada pelo autocontrole. Na sua maneira de tratar esse assunto, ele demonstrou tato, profundidade e audácia surpreendentes.
"Da revisão que foi feita da matéria, deveis perceber que a igreja, apesar do imenso agregado e do valor dos seus materiais, está longe de estar na condição de um edifício solidamente erguido sobre as suas fundações e completamente acabado. Ainda está completamente num estado tosco e desordenado. Se, então, escapou por pouco de uma derrocada ao primeiro choque, examinemos as causas da sua fraqueza. Faltou-lhe um arquiteto hábil e rigoroso, que se tivesse preocupado em examinar e provar cada pedra; que tivesse rejeitado as más de imediato; que tivesse procurado o granito mais duro para fortalecer as partes mais expostas; e que tivesse visto que o conjunto estava unido pelo cimento mais forte e tenaz. Os maiores entre os próprios Papas nunca possuíram uma luz clara e viva, apenas tatearam no escuro; e isso explica-nos por que razão uma obra, que é em si mesma gigantesca, apresenta tão pouca homogeneidade e harmonia.
"Se, quando as hordas bárbaras invadiram o nosso país e tomaram posse dele; quando o Império Romano se desfez, e o Cristianismo foi levado a mudar a sua forma abstrata por uma mais bem adaptada para fascinar as imaginações e os sentidos dos recém-chegados; se, no momento em que o papado surgiu da degradação universal, tivesse caído nas mãos de homens de vistas amplas e empreendedoras, ele teria sido capaz em tempos tão propícios de apagar, secreta e gradualmente, todos os registos do antigo estado de coisas, e de apagar todos os vestígios da transformação da aristocracia episcopal numa monarquia papal. Poderia ter efetuado isso por meio de cortes e adições aos escritos de concílios e dos pais, empregando nessa tarefa mentes capazes de a realizar; e então, que posição gloriosa para nós! A grande contenda entre Catolicismo e Protestantismo nunca teria surgido, ou pelo menos ter-se-ia confinado inteiramente à autenticidade dos escritos primitivos.
"Este trabalho de corte e adição deveria ter sido confiado a uma escola Romana, bem treinada para o propósito, de modo a imitar com destreza o estilo peculiar a cada escritor."
Aqui, algumas batidas na porta exterior, que ouvi distintamente, interromperam a minha pena. A possibilidade de que alguém me estaria, talvez, a procurar gelou-me de terror e expulsou-me todos os outros pensamentos. Não recuperei do meu alarme até perceber que a pessoa que tinha ido à porta para responder tinha regressado calmamente ao seu lugar. Provavelmente também houve uma suspensão momentânea dos trabalhos; pois, apesar da névoa em que estive envolvido por um momento, não me parece que haja qualquer lacuna sensível no meu relato do discurso.
"O que faltou no século IX foi um Papa que tivesse ofuscado a glória de Carlos Magno. Gregório VII, com as suas ideias gigantescas, mas demasiado vagas; Inocêncio III, com as suas instituições maravilhosas, confissão, inquisição e monges, chegaram tarde demais. Cinco séculos antes, algum gênio igual ao dele, e nós para o ajudar com a vasta ideia que agora nos absorve, teriam tornado a Igreja Romana o árbitro soberano do mundo inteiro. Em vez disso, os dois séculos que precederam Hildebrando forneceram Papas mais loucos do que Calígula e mais monstruosos do que Nero, de modo que é impossível para nós dar uma cor à sua história que possa ser considerada – não direi desculpável, mas até tolerável. Nem o século XIV nem o XV oferecem um único exemplo de talento e inteligência capaz de prever, e consequentemente de prevenir pela abolição dos abusos mais flagrantes na igreja, a horrível explosão do século XVI. O que é que, de fato, vemos nos dois séculos que precedem o Protestantismo? A Sé Romana ocupada ou por homens de capacidades menos do que comuns, ou por voluptuários altivos. Tais seres arruínam uma construção em vez de ajudarem a edificá-la. Não têm prudência para os guiar; exibem ao povo nas suas próprias pessoas um espetáculo de torpitude, como se o povo fossem brutos, absolutamente incapazes de reflexão. Sob tais Papas, com um clero, bispos e ordens monásticas da mesma estirpe, era de esperar que a igreja crescesse e se fortalecesse de modo a manter nações e monarcas comprimidos no seu grande abraço? Podemos ficar surpreendidos que ainda permaneça num estado de aborto apesar dos seus imensos recursos?"
Abaixando a voz para um sussurro confidencial, ele continuou:
"É meu desejo que entre nós tudo seja dito, e que a verdade nua e crua seja proferida; pois é no mais alto grau útil e necessário para nós conhecê-la e estudá-la, tal como ela é."
Retomando então a sua maneira anterior, e até com ênfase maior, ele continuou:
"Estamos tão cegos que não percebemos claramente que tudo o que foi feito então foi feito inteiramente com vistas gananciosas e interesseiras, e que a mesma observação se aplica também aos tempos presentes? Nada foi alguma vez concebido como subordinado à execução de um vasto plano. Estais familiarizados com os infames abusos do nepotismo e as suas consequências pavorosas: que degradação do papado! Aquela alta e inestimável dignidade já não era cobiçada senão como um meio de saciar a ambição louca e a avareza insaciável de algumas famílias. Entretanto, uma vasta catástrofe estava iminente, e o véu do templo estava prestes a ser rasgado em dois. Infelizmente, quando aqueles sonhadores egoístas acordaram de repente e acenderam por toda a parte fogos exterminadores para os heréticos, era demasiado tarde. Os olhos dos homens estavam abertos, tinham aprendido a pensar, a sua indignação estava despertada, o fogo dela estava nos seus corações. A morte de um grande número de heréticos apenas concedeu a um partido já forte e cheio das ideias mais perversas o perigoso prestígio de possuir os seus mártires. Assim, por um excesso de imprudência da nossa parte, a heresia se estabeleceu como um poder, ao qual a novidade e a perseguição deram atração e força. Quanto tempo foi assim perdido; e que conflitos a igreja foi obrigada a sustentar, já não para estender o seu domínio, mas simplesmente para se salvar de uma ruína iminente e total.
"Leão X – aquele Sardanápalo enervado pelo luxo Asiático – não fez senão cometer erros. Aqueles que o sucederam seguiram passos demasiado próximos dos seus. Finalmente, o furacão quase dispersou as pranchas fendidas da Nau, e ninguém podia sugerir qualquer expediente prático para as manter unidas. Todos empalideceram à exigência de um concílio ecuménico, e é certo que o de Trento teria sido o túmulo de Roma se não fosse pela habilidade da nossa Companhia. Nós, resolutos e inabaláveis, conseguimos frustrar a multidão de heréticos que estavam ansiosos por atacar os próprios fundamentos do Catolicismo. Com a História na mão, eles estavam preparados para questionar a Bíblia, os Padres, os Concílios, para rastreá-los de era em era e explorar a origem de cada instituição, dogma e prática. Que segredos teriam então vindo à luz! O símbolo da antiga fé, o modo primitivo de resolver questões, o progresso do poder papal, a data precisa de cada inovação e mudança, o imenso caos de eras passadas, tão bem coberto até então, tudo teria sido exposto à luz do dia. Peneirado dessa forma, nada teria sido preservado senão o que é expressamente apoiado por algum texto da Escritura; o resto teria sido implacavelmente queimado como restolho. Nem o Papa poderia ter-se lisonjeado com a esperança de permanecer um patriarca honrado; este mesmo título de patriarca, ter-lhe-iam dito, era apenas de invenção recente. Havia uma conspiração geral contra ele, empenhada em reduzi-lo à medida do que era quando muitos bispos do oriente e até do ocidente o desprezavam tão abertamente, e quando Cipriano, Irineu e Policarpo o tinham em tão pouca estima.
"Quantos bispos, de fato, afluíram a Trento com intenções hostis! Quão longe não teria chegado a sua audácia, se à heresia tivesse sido permitido espalhar livremente perante eles a sua perniciosa erudição? Mas nós defendemos intrepidamente a brecha, e a jovem hidra esforçou-se em vão para invadir o lugar.
"Assim, depois de três séculos de trabalho infatigável, depois de termos sido como uma couraça no peito de Roma, os seus inimigos decidiram arrancar-nos dali e quase o conseguiram, convencidos de que enquanto permanecêssemos, Roma seria invulnerável. Mas se Roma, na sua fraqueza, se curvou por um tempo como uma palmeira sob os ventos furiosos, logo levantou a cabeça novamente; e agora, confiemos, ganhou um acréscimo de força que a capacitará para o futuro a desafiar a tempestade e o trovão. Os reis chamam-nos – sentem a necessidade da nossa taça narcótica para o seu povo; mas eles beberão dela eles próprios também, e profundamente! Não nos esqueceremos, no entanto, de orvalhar o seu rebordo com mel."
A cadência dessas últimas palavras fez-me imaginar que a conferência estava encerrada, quando ouvi o mesmo chefe retomar, mas com a frieza de um homem que recapitula. A sua repetição de ideias já propostas destinava-se, sem dúvida, a dar mais destaque a certas vistas favoritas que, como o leitor viu, predominaram durante a reunião.
"Dois princípios – entre os muitos que possuímos – dois princípios de poder e atratividade inesgotáveis devem ocupar o primeiro lugar na nossa consideração; e disso devemos continuamente lembrar-nos.
"Devemos argumentar assim com os homens no poder, e especialmente aqueles na corte: — A heresia, tendo sido a causa de todas as complicações que surgiram precisamente quando a igreja e o estado estavam prestes a entrar numa aliança feliz, cujos resultados não poderiam deixar de ser sólidos e muito satisfatórios, é da maior importância que finalmente realizemos o que três séculos de anarquia adiaram. Assim que forem estabelecidas conclusões positivas, os seguintes devem ser os dois princípios principais de um novo código, concebido para a regulação e conservação dos vastos interesses dos dois poderes finalmente unidos:—
"Sempre que a heresia ousar perturbar a sagrada tranquilidade da igreja, seja qual for a natureza dos seus assaltos, sejam eles leves ou sérios, o dever do estado será puni-los com o máximo rigor, como crimes políticos.
"Reciprocamente, Sempre que a revolta ousar perturbar a sagrada tranquilidade do estado, seja qual for a natureza dos seus ataques, sejam eles leves ou sérios, o dever da igreja será estigmatizá-los perante as nações e tratá-los com o mesmo rigor que a própria heresia, que deve ser esmagada por castigos terríveis e solenes.
"Depois disso, só temos de ser logicamente consistentes, e visto que é uma máxima das escolas que qui potest majus potest minus [quem pode o maior, pode o menor], não será difícil de arranjar que o poder espiritual, a divindade onipotente da Santa Sé, absorva inteiramente o poder temporal. Apenas que nos entreguem as almas do povo, que os reis nos secundem com o seu encorajamento e a sua riqueza, e a nossa hierarquia, atualmente serpenteando como um rio, depressa se espalhará tão ampla quanto o mar e cobrirá colinas e montanhas.
"Mas é principalmente importante que saibamos como extinguir, uma por uma, a multidão de chamas fosfóricas que brilham em todas as direções. Devemos ter a arte de acostumar a massa do povo a não olhar para ninguém senão para os nossos homens (sic); e assim os treinaremos para o dia em que, excitados por alguma injustiça flagrante, um aumento de impostos, ou alguma causa de descontentamento semelhante, nos forneçam uma oportunidade para lançarmos um manifesto trovejante de Roma, um sinal da sua ruptura com todos os governos, e consequentemente de uma luta decisiva e final, na qual seremos bravamente apoiados pela inumerável e ardente hoste que nós ou os nossos sucessores teremos tão bem disciplinado.
"Gostaríamos de ter a certeza – mas pelo menos podemos esperar – que quando essa crise chegar, uma porção considerável da hierarquia terá sofrido uma mudança radical e completa; que os tronos mais altos do santuário serão inacessíveis a homens incapazes de nos compreender; que bispos e cardeais saibam seguir as suas palavras corajosas com ações mais corajosas; e finalmente, que, após tantos sacrifícios, possamos gloriar-nos num homem que incorpore, na sua própria pessoa, os Papas mais empreendedores de tempos passados, um homem que use uma daquelas cabeças, na qual a natureza expande suas bússolas até o limite máximo.
"O artesão, ao exercer o seu trabalho comum, nunca se desencoraja pela dureza da madeira ou do metal em que trabalha, porque tem à mão implementos que reduzirão estes materiais às formas que ele desejar. Cuidemos, então, de estar bem providos de implementos. Quando a efervescência que estamos a fomentar secretamente tiver atingido um ponto suficiente, a tampa será subitamente removida, e derramaremos o nosso fogo líquido sobre aqueles intrometidos políticos, que são ignorantes e irrefletidos o suficiente para servirem de ferramentas nas nossas mãos, e os nossos esforços resultarão numa revolução, digna do nome, que combinará numa conquista universal todas as conquistas que ainda não foram feitas.
"Para esse propósito, que os nossos esforços incessantes sejam dirigidos para a conversão de almas, e que preguemos de modo que os leitos de morte sejam a fonte frutífera de doações, riquezas, joias e todo o tipo de legados. Meios de ação são indispensáveis para nós, e esses meios devem ser tão vastos quanto os nossos projetos. Que nada nos resista; enquanto, envolvidos em mistério da cabeça aos pés, nós próprios permanecemos impenetráveis.
"Amigos, devemos vencer ou morrer! As classes mais altas são sempre muito inacessíveis às mais baixas; alimentemos a sua antipatia mútua. Acostumemos a plebe, que é, de fato, um implemento de poder, a olhar para nós como os seus mais calorosos defensores; favorecendo os seus desejos, alimentemos o fogo da sua ira, e abramos à sua vista uma idade de ouro; e que o Papa, Roma, o Catolicismo, ou a Igreja, que cada uma destas palavras se torne para o povo a expressão de todos os seus direitos, o ponto para onde o seu olhar está fixo, o objeto da sua devoção, a mola propulsora dos seus pensamentos e intenções. Chegará um dia – mas será demasiado tarde – em que se verá que expedientes os mais ridículos deram origem a efeitos maravilhosos, e que aqueles que se acreditavam sábios, eram tolos.
"Sim, irmãos! Nós também somos reis! O nosso arsenal é talvez tão rico quanto o deles, e até, se não me engano, mais eficiente. Os nossos terços, as nossas medalhas, os nossos milagres, os nossos santos, os nossos feriados, enfim, toda aquela imensa bateria que hoje passamos em revista, [20] valerá tanto, imagino, quanto a sua pólvora, os seus soldados, os seus canhões e as suas florestas móveis de baionetas. Tudo depende da habilidade com que combinamos esta infinidade de meios, disciplinamos as nossas tropas e, excitando o seu zelo e a sua coragem, as preparamos para o dia que deve aniquilar, ou coroar com triunfo, a longa série dos nossos trabalhos. Que escarneçam das nossas procissões em torno da Jericó profana, que zombem de nós e do som das nossas trombetas, contanto que ao sétimo circuito, e certamente será feito, as muralhas da cidade caiam, e aqueles que a habitam caiam como presa para nós.
"O que temos a fazer, então, é erguer novamente sobre o seu pedestal o colosso papal prostrado. Nós, engenheiros aqui reunidos, temos de concertar um plano especial para este propósito, apontar as máquinas a serem usadas ou inventar novas, formar operários e colocar nas suas mãos alavancas e cabos, e então, desde que o conjunto seja dirigido por inteligência superior, o sucesso será infalível.
"Tal é a nossa tarefa.
"Mas o dia está a terminar, e desejo que não abandonemos este lugar antes que alguém, que possa ter considerado o assunto mais profundamente do que eu, diga algumas palavras sobre o possível desfecho sinistro dos eventos, o que, vendo os perigos que nos rodeiam, é indispensável que consideremos friamente, enquanto as nossas mentes ainda não estão perturbadas por quaisquer apreensões imediatas de tal resultado."
XX.
Houve um breve silêncio, que o Irlandês foi o primeiro a quebrar, embora num tom menos confiante do que antes. Logo se animou, porém, e voltou a ser ele mesmo.
"Se me atrevo a responder a esse apelo, é porque estive recentemente presente numa reunião dos nossos padres, na qual o assunto agora em questão foi amplamente discutido. A conferência encerrou com a seguinte resolução.
"Se alguma vez (foi unanimemente acordado) formos abandonados por reis, ou se alguma descoberta fatal arruinar totalmente os nossos projetos; se tentarmos em vão recuperar, se não a confiança, pelo menos alguma posição compatível com a execução do nosso plano; se formos mesmo forçados a arrastar-nos (trascinarci) por um longo período, a fim de reunir os nossos muitos fios perdidos ou quebrados – mesmo nesta extremidade, aconteça o que acontecer, devemos resignar-nos a estes grilhões e submeter-nos a este atraso fastidioso. Mas se nada nos puder reconciliar com os governos Católicos ofendidos, e se até Roma, na esperança de garantir a sua própria segurança numa esfera mesquinha e estreita, consentir em imolar-nos de novo, devemos, ao preço de todas as considerações, mostrar aos reis e a Roma que, mesmo em circunstâncias tão adversas, podemos provar ser mais fortes do que todos eles: e isto, sabeis, será o mais fácil para nós de efetuar, quanto mais avançados estiverem os nossos trabalhos quando o tempo da provação chegar, se é que há de chegar. Mas não tenho dúvidas (e poderia apresentar provas autênticas em apoio disso), não tenho dúvidas de que, desta vez, Roma preferiria fazer causa comum conosco, a consentir em permanecer uma escrava degradada e algemada, sem esperança de alguma vez escapar dos limites que lhe foram impostos. Em caso de necessidade, o veneno livrar-nos-ia de um Papa com vista curta (il veleno ci liberebbe d’un papa a corta veduta), e o próximo conclave que fosse reunido estaria inteiramente de acordo com os nossos pontos de vista. [21]
"Então, irmãos, o mundo contemplará um espetáculo estranho. Tendo falhado na nossa tentativa de nos vingarmos dos reis esgotando lenta e astuciosamente a sua força, vingar-nos-emos deles de uma forma igualmente súbita e terrível. Em seis meses Roma tornar-se-ia o foco incendiário daqueles espíritos vulcânicos que são eles próprios, atualmente, objetos do nosso ódio; e uma bula na qual o sumo pontífice anunciasse ao povo que, desiludido nas suas esperanças de ver o bem prevalecer gradualmente sobre o mal, a sua paciência se esgotou – tal bula dar-nos-ia forças mais numerosas do que o exército hiperbólico do Armagedom. [22]
"Que fonte de agitação em tempos como os nossos! Certamente o Catolicismo e as suas cerimônias estariam na moda por algum tempo, mas todas as suas ilusões mais cedo ou mais tarde se evaporariam, e apenas teríamos apressado a abertura de uma era precisamente oposta do que temos estado a trabalhar para introduzir. Que importa! Que o nosso último grito de desespero, que a nossa morte seja digna de nós! Não devemos contentar-nos em desaparecer como um rio seco; sejamos antes semelhantes a uma torrente que quebra todos os diques e derruba todos os obstáculos; como os elementos da natureza, que não podem ser comprimidos sem irromperem em conflagração universal. Assim se verificaria o famoso ditado, ‘que o destino dos reis está intimamente aliado ao nosso’, pois eles desapareceriam da Terra juntamente conosco. Tal seria a vingança de Sansão, quando tosquiado, cegado e obrigado a trabalhar no moinho como um vil asno. Ele esmagá-los-ia com o último esforço da sua força enorme, e enterraria a si mesmo e a eles no mesmo túmulo.
"É muito possível, irmãos (continuou o Irlandês num tom feroz), que haja algum traidor entre nós, que, para se tornar aceitável a algum maldito Faraó, tornando-se o seu José, o seu informador, possa um dia escapar das nossas fileiras e arruinar-nos. As precauções que já tomamos contra tal contingência não me parecem suficientes, pois o miserável que desertasse do nosso corpo poderia encontrar meios de se esconder da nossa vingança, e assim em vão teria jurado que 'até ao último suspiro da vida consideraria a destruição da sua própria pessoa como santa e legítima'.
"Proponho-vos, portanto, outro meio de segurança, em adição ao anterior. Estabeleçamos esta regra: — que ninguém será iniciado a menos que tenha previamente consentido que um certo número dos nossos membros se reúna para lhe atribuir (em bases prováveis, é claro) uma correspondência ou politicamente criminosa ou monstruosamente obscena; e esta correspondência o candidato deverá transcrever e assinar fielmente, para que a nossa Companhia possa, em caso de traição, ter os meios de invalidar o seu testemunho pela produção destes preciosos manuscritos. Tais documentos seriam, facilmente compreendereis, de serviço eminente para nós, caso outros meios de vingança nos falhassem."
XXI.
O presidente falou agora nestes termos:
"Analisaremos essa sugestão mais tarde, com a devida consideração. Entretanto, agradeço-vos sinceramente por esta conferência; ela foi muito mais instrutiva do que as três anteriores, cujas atas é bom que examinem – tenho-as aqui para melhor informação vossa; e peço que cada um de vós anote as suas observações sobre elas. Permitam-me, no entanto, sugerir que, durante uma discussão sobre meros detalhes, seria aconselhável não permitir demasiada predominância aos elementos poéticos da questão. Esses elementos podem ser admitidos quando tivermos de considerar todo o nosso plano na luz mais completa, enquanto a análise de cada questão ou problema separado deve apresentar um caráter tão deliberado e frio quanto a síntese deve ser quente e entusiástica. Admiro estes dois tipos diferentes de talento, mas raramente os vi unidos no mesmo indivíduo. Quase sempre descobri que aqueles que eram eloquentes de uma forma eram mudos na outra, e vice-versa. Esforcemo-nos por combinar a calma da razão com o fogo do entusiasmo.
"Cristo, que viu o germe de tantas verdades esplêndidas, ensina-nos que, para ‘nos apossarmos do homem forte, da sua casa e dos seus bens, devemos primeiro atá-lo’. Portanto, tornemo-nos perfeitos na arte de carregar os orgulhosos e os poderosos com grilhões. Assentemos esta máxima como a regra de todos os nossos esforços: – uma única autoridade – a de Roma; uma única ordem – a dos Jesuítas. E visto que a nossa época não se vangloria de uma única mente capaz de aspirar ao império universal, pois os reis têm o suficiente para manter o controle sobre os seus reinos mesquinhos que lhes escapam, que seja nosso o objetivo aspirar tão alto, enquanto cabeças vazias estão a sonhar. Nulla dies sine lineâ [Nenhum dia sem uma linha]. Que não nos escape nenhuma oportunidade de observar quais são as tendências dos homens; quanto melhor os conhecermos, mais úteis serão como instrumentos nas nossas mãos.
"Em todo o caso, conduzam-nos de tal forma que a nossa glória futura possa compensar o nosso rebaixamento presente; pois, quer o nosso nome esteja destinado a perecer, quer finalmente a prevalecer sobre reis e nações, que ele seja, pelo menos, sinônimo do mais alto alcance de grandeza e audácia que o mundo jamais viu ou jamais verá. Sim! Quando as futuras gerações lerem a nossa história e souberem o que fomos, que sejam forçadas a assimilar-nos, não à humanidade, mas sim àquelas agências cosmogônicas que Deus só põe em movimento quando lhe agrada mudar as leis do universo."
Estas palavras – um eco e confirmação de outras não menos presunçosas, que já tinham vindo do Irlandês – mostram claramente que os jesuítas modernos estão imbuídos de uma dose considerável de orgulho. Ficará igualmente claro que o seu projeto é jesuitizar, além de todas as outras ordens, o próprio papado; e, como o nec plus ultra [o máximo] das metamorfoses que estão a efetuar pela sua misteriosa estratégia, jesuitizar o mundo inteiro.
O presidente tendo concluído, todos se levantaram e se felicitaram calorosamente. A cena então encerrou, deixaram a sala, e eu estava fora de perigo.
Notas
1. Foi visto que citei essa introdução apenas de memória.
2. Aqui segue, no original, o início obscuro e embaraçado do discurso desse padre. "Sopra le populazioni, sopra, di ette, unga giammai stancarcia operiamo per mezzo delle nostre doctrine; impeniouchè si è solo forti ficandole e scaliandole alle nostre fiamme che ce le cangieranno in fulmini."
3. Talvez ele tenha dito scherzi, brincadeiras.
4. Aqui duas palavras me escaparam. Pensei ter ouvido as duas sílabas rito, e imagino que as palavras pronunciadas devem ter sido granario impoverito. Foi um movimento de hilaridade, misturado, ao que me pareceu, com alguns murmúrios, que tornaram essas palavras ininteligíveis. Mas o irlandês, é evidente, não se esforçava muito para esconder seus pensamentos. Ele havia acabado de comparar o povo a uma vasta planície, destinada a ser conquistada e arada. Tornou-se quase um provérbio na Itália, e ouvi vários padres idosos dizerem que "o celeiro da cidade santa está empobrecido". Essa é uma alusão à enorme perda de indulgências, dispensas, etc., que o protestantismo e as ideias modernas causaram aos tesouros do Vaticano.
5. Não haveria fim se fôssemos apontar os esforços contínuos dos reverendos padres para distorcer o significado dos textos que citam. São Paulo, tendo que lidar com consciências fracas, acostumadas a máximas ascéticas, e desejando ainda respeitá-las, sem prejuízo do novo princípio que estava trabalhando para estabelecer, assim fala: "Porque um crê que pode comer de tudo; outro, que é fraco, come ervas. O que come não despreze o que não come, e o que não come não julgue o que come." – Rom. xiv. 2, 3. As coisas mudaram muito desde a época de São Paulo.
6. Sob o nome de crianças, o padre sem dúvida designa as ordens inferiores, que eles pretendem manter sob o jugo de práticas supersticiosas; enquanto que por homens ele se refere àqueles que desdenham essas práticas, mas que, habilmente ocultando isso, merecem o nome de verdadeiros filósofos. Conheci padres, e até ministros protestantes, que rejeitam muitas doutrinas que pregam publicamente; entre outras, a do castigo eterno; e eles dizem que as Escrituras os autorizam a rejeitar essas doutrinas, mas as mantêm como um controle sobre o povo.
7. Sem dúvida, ele quis dizer com essas palavras os oradores eloquentes entre eles, e acrescentou o epíteto misterioso no mesmo sentido que o presidente, que diz, um pouco mais adiante: "Inviluppati di misterio dai piè fino al capo, restiamo impenetrabili".
8. Protestantismo e revolução.
9. Todo o poder, espiritual e temporal.
10. O'Connell, sem dúvida.
11. As pinturas do querido artista.
12. Outros expressaram os mesmos temores. "A duração da confissão católica", diz o arcebispo de Pradt, "depende do celibato de seus sacerdotes; se um cair, o outro perece com ele. Seria um ato de suicídio da Igreja de Roma abrir mão dessa fortaleza." – Du Jesuitisme ancien et moderne.
13. O texto está aqui pervertido; aqui está literalmente: "Não temos nós poder para levar conosco uma irmã-esposa, como fazem os outros apóstolos, os irmãos de nosso Senhor, e Cefas?" (1 Cor. ix., 5.) Irmão e irmã eram sinônimos de cristão; quanto à palavra esposa, o próprio Papa Leão IX reconhece que aqui ela significa uma mulher casada. A palavra γυναίκα tem o mesmo significado em grego que femme em francês. (Leão IX. Dist. 31, can. omnino).
14. Foi muito antes de eu aprender o significado desse termo. Eu o explicarei em uma parte posterior desta obra.
15. O cardeal Bellarmino, um jesuíta, foi o primeiro a promulgar o germe dessa ideia audaciosa a respeito do celibato. Ele diz: "Para aqueles que fizeram um voto de continência, é um crime maior casar-se do que entregar-se à incontinência". (Bellarmino, De Monachis, lib. ii, cap. 30.) Inocêncio III (Extra. de Bigamia, cap. 34) diz a mesma coisa. São Paulo diz, ao contrário, "Honorabile connubium in omnibus: O matrimônio é honroso para todos". (Heb. xiii. 4.) "Melius est nubere quam uri: É melhor casar do que inflamar-se." (1 Cor. vii.) O apóstolo não exclui ninguém e não admite nenhuma prescrição.
16. Havia mais prudência no século V. O papa Leão, o Grande, fez um decreto, citado no Breviário Romano, um decreto que poucas pessoas conhecem e que surpreenderá a muitos: "Ele decretou", diz o Breviário, "que nenhuma freira deveria usar o véu até que tivesse dado prova de sua castidade durante quarenta anos. Sanxit ne monaca benedictun capitis velum reciperet nisi quadraginta annorum virginitatem prebasset."- (11 Api. in fest. S. Leon prim. papæ.)
17. Uma passagem, que ocupa cerca de uma linha, me escapou aqui, e não consigo supri-la.
18. Para encobrir muitos males. Essa é a palavra que naturalmente se sugere. Para evitá-la, e ainda assim sentindo-se obrigado a terminar a frase, o jesuíta alongou palavra após palavra, e seu circunlóquio foi tão desajeitado que seus colegas acharam impossível manter a seriedade.
19. Se ouvi bem, a palavra que me abstenho de traduzir aqui completa um juramento romano, que mais de uma vez escapou de lábios sagrados, em minha presença e em meu próprio país.
20. Ch'oggi abbiamo si bene analizzato; essa expressão me leva a supor que a análise de todas essas coisas foi feita na mesma manhã, em uma reunião anterior, pois parece muito precisa para se relacionar totalmente com o que foi dito na conferência que acabou de ser apresentada ao leitor.
21. Tendo Clemente VII declarado ao Cardeal Bellarmino sua resolução de condenar a doutrina do jesuíta Molina como perigosa, o jesuíta Bellarmino respondeu: "Vossa Santidade não fará tal coisa". Tendo o Cardeal Francis Marie del Monte falado desta resolução ao Cardeal Bellarmino, este respondeu: "Sei que ele o faria de bom grado; sei que ele é capaz de fazê-lo, mas não o fará. Se ele persistir em executar seu plano, ele morrerá primeiro". Jacques Tagliotti, jesuíta, em sua "Vida do Cardeal Bellarmino", liv. vii, 2.
22. Uma alusão a uma passagem do Apocalipse, ix. 16; xvi. 16.
Fim da parte 2
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