A intolerância religiosa e o domingo



[Revisado em 27 de junho de 2024]

O período profético de supremacia papal iniciado em 538 d.C. foi palco de rigorosas sanções civis e eclesiásticas dirigidas contra os violadores da observância do domingo, visto ser este o sinal mais visível do poder e autoridade da Igreja.

Ellen G. White escreveu: (1)

Entre as principais causas que levaram a igreja verdadeira a separar-se de Roma estava o ódio desta ao sábado bíblico. Conforme fora predito pela profecia, o poder papal lançou a verdade por terra. A lei de Deus foi lançada ao pó, enquanto se exaltavam as tradições e costumes dos homens. As igrejas que estavam sob o governo do papado, foram logo compelidas a honrar o domingo como dia santo. No meio do erro e superstição que prevaleciam, muitos, mesmo dentre o verdadeiro povo de Deus, ficaram tão desorientados que ao mesmo tempo em que observavam o sábado, afastavam-se do trabalho também no domingo. Isso, porém, não satisfazia aos chefes papais. Exigiam não somente que fosse santificado o domingo, mas que o sábado fosse profanado; e com a mais violenta linguagem denunciavam os que ousavam honrá-lo. Era unicamente fugindo ao poder de Roma que alguém poderia em paz obedecer à lei de Deus.

De fato, o reverendo A. Urban observa que (2)

Durante os primeiros séculos do cristianismo, havia muitos cristãos que continuavam a celebrar o sábado e o domingo. Os bispos tentaram por muito tempo, em vão, suprimir essa celebração do sábado. O Concílio de Laodiceia finalmente emitiu um decreto, no ano 364, pelo qual os cristãos deveriam trabalhar no sábado judaico, mas deveriam se abster de trabalhar no domingo, que era o verdadeiro dia do Senhor.

A aversão da Igreja ao sábado bíblico cristalizou-se, portanto, nas diversas leis civis e eclesiásticas que favoreceram a observância do domingo em detrimento do sábado e de seus observadores.

Reflexos da intolerância religiosa nas leis dominicais


Desde o princípio do século IV que o domingo havia alcançado preferência oficial sobre o sábado. No ano 300 d.C., o Concílio de Elvira decretou que "Se alguém na cidade deixar de ir à igreja por três domingos, que seja excomungado por um curto período de tempo para que possa ser corrigido." (3) Quarenta anos mais tarde, o bispo Osório de Córdoba menciona essa mesma prescrição no Concílio de Sárdica. A sanção decretada pelo Concílio de Elvira foi posteriormente reiterada no sínodo imperial de Constantinopla, realizado em 692. (4)

As primeiras leis dominicais


A partir do século V, verifica-se uma crescente tendência de inserir o domingo no âmbito da moral e do direito eclesiástico, dissipando-se certos valores teológicos atribuídos ao primeiro dia e produzindo-se sua "sabatização", com uma dupla problemática, mutuamente entrelaçada: a obrigação de ouvir toda a missa e de não trabalhar no domingo - duas leis ou mandamentos da Igreja cuja infração importará numa pena de pecado mortal. Para garantir o reto cumprimento das obrigações dominicais, a autoridade da Igreja e o braço secular aparecem, em certos momentos, atuando em coalizão. (5)

Silvestre I (314-335) foi o primeiro papa a sustentar a transferência da guarda do sábado para o domingo, e sua decisão reveste-se de especial importância, visto que foi durante o seu pontificado que Constantino promulgou a primeira lei civil sobre o descanso dominical.

O bispo Eusébio, amigo do imperador e o primeiro teólogo a argumentar a favor do domingo, afirma que Constantino (6)

ordenou a todos os súditos do império romano que observassem o dia do Senhor, como um dia de descanso, e também que honrassem o dia que precede o sábado; em memória, suponho, do que o Salvador da humanidade realizou nesse dia, segundo o que foi registrado. E como seu desejo era ensinar todo o seu exército a honrar zelosamente o dia do Salvador (cujo nome deriva da luz e do sol), ele concedeu livremente àqueles dentre eles que participavam da fé divina tempo livre para assistir aos cultos da Igreja de Deus, a fim de que pudessem, sem impedimentos, realizar sua adoração religiosa.

Posteriormente, os imperadores cristãos confirmaram e ampliaram as decisões de Constantino. (7)

Todos os espetáculos públicos, exibições teatrais, danças e diversões eram estritamente proibidos. Decretos semelhantes também foram aprovados por vários conselhos, exigindo a frequência fiel ao culto público e a observância rigorosa do dia, com a suspensão solene de todas as atividades seculares e a abstinência de diversões e recreações vãs.

No ano 368, Valentiniano e Valente proibiram a cobrança de impostos e dívidas públicas "no dia do Senhor". Em 386, o termo dies dominica foi incorporado à legislação civil juntamente com a denominação pagã de "dia do sol". Três anos depois, a lei do repouso dominical foi reeditada pelos imperadores Valentiniano, Teodósio e Arcádio, e em 392 os mesmos soberanos proibiram os certames circenses aos domingos. (8) Em um concílio realizado em Cartago (399 ou 401), membros do clero insistiram quanto à proibição de diversões públicas no "dia do Senhor", embora provavelmente este tipo de interdição nunca tenha sido rigorosamente aplicada. (9)

A primeira lei eclesiástica concernente à observância do domingo foi promulgada durante o Concílio de Laodiceia, realizado em fins do século IV. O cânon 29 determinava que "Os cristãos não devem judaizar por descansarem no sábado, mas devem trabalhar nesse dia, honrando o dia do Senhor e, se puderem, descansando como cristãos. Mas se alguém for achado judaizando, seja anátema de Cristo." (10)

Note que, por meio desse decreto, o concílio permitiu que houvesse culto no dia de sábado, mas designou-o como dia de trabalho, proibindo sua observância como dia santo sob pena de anátema. Mais tarde, o papa Gregório I (590-604), dirigindo-se aos cidadãos de Roma, expressou sua indignação contra os guardadores do sábado ao declarar: (11)

Chegou aos meus ouvidos que alguns homens de espírito perverso semearam entre vós coisas erradas e contrárias à santa fé, de modo a proibir que se faça qualquer trabalho no sábado. Que outra coisa lhes posso chamar senão pregadores do Anticristo... [?]

As leis dominicais se tornam mais rigorosas


Em virtude do acesso da Igreja ao poder temporal durante este período, o sexto século é o divisor de águas a partir do qual as principais medidas para anular o sábado e promover a guarda do domingo são adotadas pelos sínodos eclesiásticos e os editos civis.

Nessa época, encontramos o bispo Cesário de Arles (470-543) "ensinando que os santos doutores da Igreja haviam decretado que toda a glória do sábado judaico havia sido transferida para o domingo, e que os cristãos deveriam santificar o domingo da mesma forma que os judeus haviam sido ordenados a santificar o dia de sábado". (12) Gregório de Tours (538-594) chega ao ponto de relatar a história de uma mulher paralisada por um castigo de Deus porque ousara pentear-se no domingo. (13)

O Terceiro Sínodo de Orleans, realizado em 538 (o mesmo ano, aliás, que assinala o início do período profético de supremacia papal), reprovou essa tendência de "judaizar" a observância do domingo, considerando tal atitude como contrária aos interesses cristãos. Todavia, é significativo que pela primeira vez um sínodo eclesiástico tenha incorporado as prescrições civis sobre o descanso dominical, acrescentando, porém, à legislação constantiniana já conhecida a proibição dos trabalhos agrícolas. (14) Os cânones 28 e 31 determinam, respectivamente: (15)

É superstição judaica não poder cavalgar ou caminhar no domingo, nem fazer nada para adornar a lar ou a si mesmo. Mas as ocupações no campo são proibidas, para que as pessoas possam ir à igreja e se dedicar à oração.

Decidimos permitir realizar no dia do Senhor o que antes era permitido. Quanto aos trabalhos do campo, como arar, ou trabalhar na vinha, colher ou fazer feno [...] julgamos necessário abster-se deles, a fim de poder frequentar mais facilmente a igreja e dedicar-se à oração.

Note-se que enquanto a lei dominical de Constantino permitia aos agricultores trabalhar no domingo, esse decreto agora os proibia especificamente. Esse foi um passo gigantesco rumo à aplicação das especificações sabáticas do Pentateuco ao domingo.

É significativo que antes de se transformarem em leis civis, as prescrições acerca da santificação do domingo procedessem das normas canônicas dos sínodos provinciais, os quais, por sua vez, originaram-se das exortações pastorais dos bispos quanto à importância do descanso dominical.

As autoridades eclesiásticas da época sempre se preocuparam em inculcar nos fiéis o respeito pelo preceito dominical, com recomendações, penas espirituais, multas pecuniárias e até castigos corporais, segundo a classe social do infrator. Assim, o Concílio de Macon, do ano 585, estabelecia multas para os homens livres, ao passo que, para os camponeses e servos, que não teriam com que pagar, previam-se chibatadas. (16)

As leis de Macon também foram publicadas em 10 de dezembro de 585 pelo rei Guntram, sob a forma de um decreto estipulando uma cuidadosa observância do domingo. Esse tipo de apoio à Igreja por parte do poder civil cresceria em magnitude e alcance durante os séculos subsequentes. (17)

Em 589, o Concílio de Narbona estabelecia para os transgressores do descanso dominical multas pecuniárias, no caso de homens livres, e castigos corporais, no caso de servos. Para assegurar essa observância, designavam-se homens zelosos para advertir os desidiosos e reportar ao sacerdote. (18)

Aumentam ainda mais as prescrições e o rigor


No século VII, as determinações sobre o descanso dominical atribuídas ao rei franco Dagoberto I estabeleciam o seguinte: (19)

Se alguém realizar obra servil no domingo, e se se tratar de um homem livre que junge seus bois ao carro e parte de viagem, perderá o boi do lado direito; se ceifar ou colher, ou realizar qualquer obra servil no domingo, será repreendido até duas vezes, e, se não se corrigir, receberá 50 golpes nas costas; se isso não o corrigir, e se continuar trabalhando no domingo, ser-lhe-á confiscada a terça parte de seus bens; no caso de novas reincidências, perderá sua liberdade, já que não quis ser livre no santo dia. Se for um servo, será esbofeteado; se for reincidente, perderá a mão direita, pois é necessário proibir absolutamente esses atos que excitam a cólera de Deus e nos atraem as pragas da miséria.

Os Ditos de São Fermin, um catecismo do século VIII destinado aos missionários e sacerdotes de paróquias, traziam estas orientações sobre o descanso dominical: (20)

Honrais os domingos; não façais nele nenhum trabalho servil, nem em vossos campos, nem em vossos prados, nem em vossas vinhas, se se tratar de trabalhos penosos. Não vos metais em processos no dia do Senhor. Na cozinha, preparai somente o necessário para vos alimentar, porque o domingo foi criado primeiro, as trevas foram expulsas, e se fez a luz.

Um sínodo realizado em 772 estabeleceu uma constituição impondo a observância do "dia do Senhor" segundo as instruções da lei civil e dos decretos de concílios precedentes. Se alguém transgredisse o descanso dominical, estaria sujeito à punição conforme a lei e os concílios haviam determinado. (21)

Que todo homem se abstenha de trabalhos profanos e se dedique ao culto a Deus. Se alguém trabalhar com sua carroça nesse dia, ou fizer qualquer outro trabalho comum, seu equipamento será confiscado para uso público e, se a pessoa persistir em sua atitude, que seja vendida como escrava.

Em 789, um decreto de Carlos Magno proibia qualquer trabalho no domingo, considerado uma violação do terceiro mandamento (do catecismo). Especificava, inclusive, quais atividades não eram permitidas nesse dia: (22)

Nós ordenamos, de acordo com o que é prescrito na Lei de DEUS, que nenhum homem faça qualquer trabalho servil no dia do Senhor...  que nenhum homem se ocupe em trabalhos de lavoura, no cuidado de suas vinhas, arando suas terras, fazendo seu feno, cercando seus terrenos, arrancando ou derrubando árvores, trabalhando em minas, construindo casas, plantando seus jardins; nem que pleiteie nesse dia, nem saia para caçar; e que não seja lícito às mulheres tecer ou vestir tecidos, fazer roupas ou trabalhar com agulhas, cardar a lã, bater o cânhamo, lavar roupas em público ou tosquiar ovelhas; mas que venham à igreja para o culto divino e glorifiquem o Senhor seu Deus pelas boas coisas que ele fez por eles nesse dia.

O papa Eugênio, num sínodo realizado em Roma por volta do ano 826, observando que havia certas pessoas, especialmente mulheres, que passavam o tempo dançando, cantando, etc., "deu instruções para que o pároco admoestasse esses infratores de tempos em tempos e os exortasse a ir à igreja e fazer suas orações, caso contrário, poderiam trazer alguma grande calamidade para si mesmos e para seus vizinhos." (23)

Três anos depois, num concílio provincial realizado em Paris, os prelados se queixaram de que (24)

o dia do Senhor não era guardado com a reverência que convém à religião e à prática de seus antepassados, razão pela qual Deus havia enviado vários juízos e, de maneira muito notável, punido algumas pessoas por seu desprezo e insulto. Pois (dizem eles) muitos de nós, por nosso próprio conhecimento, e alguns por ouvir dizer, sabem que vários compatriotas que trabalharam nesse dia foram mortos por um raio, e outros, tendo convulsões em suas articulações, pereceram miseravelmente. Assim, fica evidente quão grande foi o desagrado de Deus com a negligência deles em relação a esse dia. 

Então, para remediar o descaso para com a observância do domingo, os prelados emitiram a seguinte exortação:

Em primeiro lugar, os sacerdotes e ministros, depois os reis e príncipes, e todo o povo fiel, envidem seus maiores esforços e cuidados para que o dia seja restaurado em sua honra e, para o crédito do cristianismo, seja mais devotamente observado no futuro.

Em um sínodo realizado em Roma sob Leão IV, reafirmaram-se com maior força todas as decisões anteriores concernentes ao dever de guardar o domingo:

Que nenhum homem se atreva, a partir de hoje, a comprar ou vender no dia do Senhor, nem para o que se deve comer, nem realizar qualquer trabalho de lavoura.

Mais tarde, estas determinações foram incorporadas ao Direito Canônico e recebidas sem maiores questionamentos na maior parte da cristandade, especialmente durante o apogeu do poder papal e sua decisiva influência sobre os príncipes cristãos. (25)

Outras leis dominicais


No início do século IX, diversos concílios decretaram a proibição do comércio, das obras servis e dos litígios de toda espécie no domingo. Transcrevemos a seguir alguns desses decretos: (26)

  • Concílio de Arles: "Proibimos os mercados públicos, as disputas civis e os pleitos no dia do Senhor; como também a agricultura e todo tipo de trabalho, exceto aquele que é apropriado para o dia, destinado ao culto divino."

  • Concílio de Tours: "Que não haja mercados ou pleitos no dia do Senhor,  durante o qual os cristãos devem louvar a Deus e agradecer por suas bênçãos e continuar procedendo assim até o anoitecer."

  • Concílio de Mentz: "Decretamos que o dia do Senhor seja observado com a devida veneração. E que as pessoas, para esse fim, se abstenham de todo trabalho comum, de comprar, vender e coisas semelhantes; e que nenhuma causa criminal seja julgada, a fim de punir os malfeitores com a morte ou de outra forma."

  • Concílio de Rheims: "Em conformidade com o mandamento do Senhor, que ninguém se atreva a fazer qualquer trabalho comum aos domingos, nem a mover ações judiciais, nem a ir a feiras ou mercados; nem a distribuir dinheiro em público, embora isso seja em si uma obra de humanidade e caridade."

Durante os séculos de ferro da Igreja, o descanso dominical voltará a assumir de forma ainda mais vigorosa seu caráter penal, com as leis civis acionando todo um arsenal de penas para exigir a correta observância desse dia. Os negligentes estavam sujeitos a uma pena corporal e a ter a cabeça raspada, excetuando-se os que deviam guardar os fogos e os que moravam muito longe da igreja. Mesmo nesses casos, porém, pelo menos um membro da família devia estar presente à missa e ofertar três pães e um círio.

No século XI, aqueles que não observavam o domingo eram normalmente espancados ou tinham seus instrumentos de trabalho apreendidos. Os castigos corporais, geralmente previstos também para outros delitos, eram administrados publicamente na praça ou no átrio da igreja. Aos que confessavam ter transgredido o descanso dominical era imposta uma penitência canônica que geralmente consistia de três dias de jejum a pão e água. No século XIII, no Languedoc, a multa pecuniária substituiu o castigo corporal. (27)

No século X, Reginon de Prüm, em seu Liber de synodalibus causis, uma espécie de manual para a visita pastoral dos bispos, propõe um questionário tratando do domingo. Seguem algumas das perguntas que o bispo devia fazer a seus sacerdotes: (28)

Todos, sem exceção, assistem à missa, às matinas e às vésperas?

Os porqueiros e outros guardadores de rebanhos vêm à igreja aos domingos para ouvir a missa?

Por aqui há pessoas perversas e desviadas de Deus, que mesmo aos domingos não vêm à igreja?

Em cada localidade foram nomeados homens sinceros e tementes a Deus, para lembrar aos outros sua obrigação dominical e denunciar os faltosos ao sacerdote?

No final do século XIII, uma lista de obras permitidas ou proibidas no domingo, elaborada por Ricardo de Middleton, apresenta o seguinte: (29)

Obras material e formalmente servis: trabalho corporal executado por um salário: proibido, sob pena de pecado mortal.

Obras materialmente liberais e formalmente servis: trabalho espiritual executado por um salário, por exemplo, o ensino: proibido, sob pena de pecado venial.

Obras materialmente servis, porém formalmente liberais: trabalho corporal realizado por caridade, por exemplo, construir a casa dos pobres: permitido.

Obras materialmente servis e formalmente liberais: permitidas.

Um caso representativo


Em 1568, uma mulher foi acusada de não comer carne de porco e de trocar suas roupas brancas aos domingos. Eis um extrato do registro oficial da Inquisição que descreve o comportamento da vítima durante a tortura: (30)

Ordenou-se fosse ela colocada sobre o potro. Disse ela: 'Señores, por que não quereis dizer-me o que devo fazer? Señor, ponde-me no chão, não declarei eu que fiz tudo?' Mandaram-na contar o fato. Respondeu ela: 'Não me lembro, tirai-me daqui, eu fiz o que as testemunhas disseram'. Ordenaram-lhe que contasse detalhadamente o que as testemunhas haviam dito. Respondeu: 'Señor, conforme vos disse, não sei ao certo. Declarei que fiz tudo o que as testemunhas disseram. Señores, soltai-me, pois não me lembro do caso'. Mandaram-na contar o caso. Disse ela: 'Señores, não me adianta nada dizer que fiz aquilo, e confessei que meu ato me trouxe a este sofrimento. Señor, vós conheceis a verdade. Señores, por amor de Deus tende piedade de mim. Oh! señor, tirai essas coisas de meus braços. Señor, soltai-me, estão me matando'. Ela estava amarrada no potro com cordas, foi advertida para que dissesse a verdade e ordenou-se que apertassem os garrotes. Declarou ela: 'Señor, vede como essa gente está me matando. Eu cometi o ato. Por amor de Deus, soltai-me'.

A redefinição do cristianismo


Alfred Baudrillart, reitor do Instituto Católico de Paris, escreveu que (31)

A Igreja Católica respeita a consciência e a liberdade, como nos foi lembrado recentemente em uma linguagem clara e bela do púlpito de Notre Dame. Com São Bernardo, os Padres e outros teólogos, ela acredita e professa que 'a fé é uma obra de persuasão, não de força, fides suadenda est, non imponenda'. Ela tem 'horror ao sangue' e o proclama em alto e bom som. Contudo, quando confrontada com a heresia, ela não se contenta com a persuasão; argumentos de ordem intelectual e moral lhe parecem insuficientes e ela recorre à força, à punição corporal, à tortura. Ela cria tribunais como os da Inquisição, invoca as leis do Estado em seu auxílio, encoraja, se necessário, uma cruzada ou uma guerra religiosa e todo o seu 'horror ao sangue' praticamente culmina em incitar o poder secular a derramá-lo, procedimento que é quase mais odioso - por ser menos franco - do que derramá-lo ela mesma.

No período pós-nicênico, todos os desvios da fé da igreja estatal reinante não eram apenas abominados e excomungados como erros religiosos, mas eram tratados também como crimes contra o estado cristão e, portanto, punidos com penalidades civis; a princípio com deposição, banimento, confisco e, depois de Teodósio, até com a morte. (32)

Durante a maior parte da Idade Média, a Igreja e as autoridades seculares concentraram ingentes esforços no sentido de impor a observância do domingo. A repressão religiosa instaurada na virada do século XIII constitui, talvez, o mais trágico exemplo desse período, pois coincidiu com a prosperidade material e os sucessos externos da Igreja; o pontificado romano estava mais potente que nunca, apoiado na uniformização de crenças e ritos em todo o Ocidente.

O IV Concílio de Latrão, em 1215, foi o acontecimento decisivo que redefiniu o que era necessário para ser considerado um cristão. Todo fiel deveria frequentar a missa dominical, confessar-se todos os anos e comungar na Páscoa. (33) Os que não se enquadrassem eram considerados hereges. Dentre os desvios que estavam na mira da Igreja, a heresia representava a maior ameaça, pois a conduta de um herege, que fora um cristão e recusara a obediência, era vista como um desafio à ordem social.

A Inquisição, criada em 1231, fecharia o cerco contra os hereges e multiplicaria as perseguições. Somente no século XVIII os tribunais do santo ofício seriam abolidos na maioria dos estados italianos. A Inquisição na Espanha e Portugal só seria abolida em 1820 e 1821, respectivamente. (34)

Ellen White escreveu: (35)

O papado se tornou o déspota do mundo. Reis e imperadores curvavam-se aos decretos do pontífice romano. O destino dos homens, tanto temporal como eterno, parecia estar sob seu domínio. Durante séculos as doutrinas de Roma tinham sido extensa e implicitamente recebidas, seus ritos reverentemente praticados, suas festas geralmente observadas. Seu clero era honrado e liberalmente mantido. Nunca a Igreja de Roma atingiu maior dignidade, magnificência ou poder.

No entanto, a hegemonia papal, e com ela o domingo, não deveriam durar para sempre. A mesma profecia que indicara o início e desenvolvimento da supremacia eclesiástica e política de Roma antecipara também sua queda. Este capítulo da história da Igreja será o tema de nosso próximo post.

Notas e referências


1. Ellen G. White. O Grande Conflito, 19ª ed. Santo André, SP: Casa Publicadora Brasileira, 1978, p. 64.

2. A. Urban. Teacher's Handbook to the Catholicism, Vol. II - The Commandments. New York: Joseph P. Wagner, 1903, p. 113.

3. Thomas Slater. "Sunday". The Catholic Encyclopedia, Vol. 14. New York: Robert Appleton Company, 1912. Acesso em: 22 set. 2011, 08h42min.

4. Xabier Basurko. Para Viver o Domingo. São Paulo: Paulinas, 1999, p. 179 e 180.

5. Ibid., p. 25 e 26. Essa "sabatização" do domingo consistiu em transferir para este dia as obrigações inerentes ao sábado bíblico. Tal equiparação, contudo, além de ter sido motivada por um forte espírito farisaico, tornou-se possível somente depois do reconhecimento civil do descanso dominical no quarto século. Eusébio de Cesareia foi quem introduziu a ideia de que "o sábado foi transferido para o domingo". Em seu extenso comentário ao Salmo 91 (92), ele diz: "Sim, tudo o mais, tudo quanto se devia observar durante o sabá, nós o transferimos para o dia do Senhor, porque é mais importante, o primeiro e o que tem mais valor do que o sábado. Foi nesse dia da criação do mundo, com efeito, que o Senhor disse: Faça-se a luz; e a luz foi feita; foi também nesse dia que o sol da justiça se elevou para nossas almas. Por essa razão, a tradição manda que nos reunamos nesse dia, e prescreve que cumpramos aquilo que o Salmo anuncia." - Commentaria in Ps. 91 [92]: p. 23, 1171-1172. Citado em Xabier Basurko, Para Viver o Domingo, p. 162.

6. Philip Schaff. A Select Library of the Nicene and Post-Nicene Fathers of the Christian Church, Second Series, Vol. I. Eusebius Pamphilus: The Life of Constantine. Book IV, Chapter XVIII, p. 1371. Grand Rapids, MI: Christian Classics Ethereal Library. Acesso em: 21 dez. 2010, 08h12min.

7. Lyman Coleman. Ancient Christianity Exemplified. Philadelphia: Lippincott, Grambo & Co., 1853, p. 531.

8. Xabier Basurko, op. cit., p. 152 e 153.

9. Philip Schaff. History of the Christian Church, Vol. III: Nicene and Post-Nicene Christianity. A.D. 311-600. Grand Rapids, MI: Christian Classics Ethereal Library, 2002, p. 76. Acesso em: 10 dez. 2010, 10h47min.

10. Nicene and Post-Nicene Fathers of the Christian Church, Second Series, Vol. 14. Philip Schaff, Henry Wace (Ed.). Buffalo, NY: Christian Literature Publishing Co., 1900. Revised and edited for New Advent by Kevin Knight. Acesso em: 25 nov. 2011, 08h47min.

11. Saint Gregory the Great Epistles, Vol. 36. Book XIII, Epistle I. Acesso em: 06 fev. 2012, 10h06min.

12. Thomas Slater, op. cit.

13. Xabier Basurko, op. cit., p. 165.

14. Ibid., p. 166.

15. Philip Schaff, op. cit., p. 266; Xabier Basurko, op. cit., p. 166.

16. Ibid., p. 168. Uma parte do texto desse concílio traz a seguinte orientação sobre aqueles que desprezavam o "dia do Senhor": "Vemos que o povo cristão, por temeridade, despreza o domingo, e trabalha nesse dia como nos dias comuns. Por isso, decidimos, por esta carta sinodal, que cada um, em sua igreja, exorte o povo que lhe é confiado; se observarem nossas advertências, aproveitarão muitíssimo; caso contrário, submeter-se-ão aos castigos que lhes impomos." - Xabier Basurko, Para Viver o Domingo, p. 188.

17. Kenneth A. Strand. "O Sábado". Em Tratado de Teologia Adventista do Sétimo Dia. Raoul Dederen (Ed.). Tatuí, SP: CPB, 2011, p. 580.

18. Xabier Basurko, op. cit., p. 169. Diz o decreto de Narbona: "É proibido, tanto a livres como a servos, a godos, romanos, sírios, gregos, como judeus, executar qualquer espécie de trabalho no dia de domingo... Se alguém ousar proceder em contrário, se for livre, pagará seis solídeos aos magistrados; se for servo, receberá cem bastonadas." - Joannes Dominicus Mansi, Sacrorum Conciliorum: Nova et Amplissima Collectio, Vol. 9, "Concilium Narbonense", p. 1015, cânon IV.

19. Ibid.

20. Ibid., p. 168.

21. Thomas Morer. A Discourse in Six Dialogues on the Name, Notion, and Observation of the Lord's Day. London: Tho. Newborough, 1701, p. 268.

22. Peter Heylyn. The History of the Sabbath, Second Edition, Revised. London: Henry Seile, 1636, Part II, Chap. 5, Sec. 7, p. 256.

23. Thomas Morer, op. cit., p. 271.

24. Ibid.

25. Peter Heylyn, op. cit., p. 257 e 258.

26. Thomas Morer, op. cit., p. 269 e 270.

27. Xabier Basurko, op. cit., p. 172 e 190.

28. Ibid., p. 189.

29. Ibid., p. 174.

30. Henry Kamen. A Inquisição na Espanha. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966, p. 218 e 219. O potro consistia em ser a vítima fortemente amarrada numa armação com cordas que passavam em volta do corpo e dos membros e que eram controladas pelo carrasco, que as apertava virando as extremidades. Com cada volta, as cordas fincavam-se no corpo.

31. Alfred Baudrillart. The Catholic Church: the Renaissance and Protestantism. London: Kegan Paul, Trench, Trübner & Co. Ltd., 1907, p. 182 e 183.

32. Philip Schaff, op. cit., p. 99.

33. Em nome de Deus. Dossiê Inquisição. História Viva. São Paulo: Duetto, ano L, nº 10, agosto de 2004, p. 29.

34. Ibid., p. 30 e 31.

35. Ellen G. White, op. cit., p. 60.

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